Ex-BBB Felipe Prior foi acusado de estupro. Entenda o que diz a lei sobre esse crime e por que muitas mulheres demoram para denunciar

04 de abril, 2020

Advogada criminalista Clara Masiero responde dez dúvidas sobre o caso, revelado pela revista Marie Claire

(Celina/O Globo, 04/04/2020 – acesse no site de origem)

RIO –  Eliminado do “Big Brother Brasil 20” num paredão históricoFelipe Prior deve enfrentar uma acusação criminal fora da casa. Usando pseudônimos para proteger suas identidades, três mulheres deram depoimentos à revista Marie Claire, acusando o ex-BBB de estupro e tentativa de estupro entre os anos de 2014 e 2018. Em suas redes sociais, Prior negou as acusações.

De acordo com a revista, os depoimentos das vítimas estão na notícia crime protocolada no Departamento de Inquéritos do Fórum Central Criminal em 17 de março de 2020. Segundo a coluna da jornalista Patrícia Kogut, o Ministério Público do Estado de São Paulo já solicitou a abertura de inquérito policial para apurar as denúncias contra o ex-participante do reality show.

Em suas redes sociais, Prior informou, por meio de sua assessoria, que não tomou conhecimento do teor das acusações “de crimes que jamais cometeu, e que jamais cometeria.” A nota diz ainda que, por enquanto, Prior repudia as informações que considera “levianas” sobre supostos fatos ocorridos há anos e que, “somente agora, depois de ter adquirido visibilidade pública, são manobrados.” A nota assinada pelos advogados afirma que o ex-BBB está à disposição das autoridades para qualquer tipo de questionamento.

O assunto foi um dos mais comentados nas redes na sexta-fera. A hashtag #PriorEstuprador passou boa parte do dia entre as mais comentadas no Twitter. Muita gente resolveu opinar sobre o que é ou não é estupro, relativizar o crime e desacreditar a palavra das vítimas entrevistas pela reportagem.

CELINA conversou com a advogada criminalista Clara Masiero, coordenadora de cursos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, para esclarecer algumas dúvidas. A jurista explicou o que, pela lei, é considerado estupro, e porque muitas vezes as mulheres demoram para denunciar esse tipo de crime.

Ela explica que não é preciso que haja penetração para que o ato seja considerado estupro. Além disso, afirma que, mesmo que inicialmente a vítima tenha concordado em ter uma relação sexual, pode mudar de ideia a qualquer momento e por qualquer motivo e, se não houver mais consentimento de ambas as partes, está configurado o crime. Masiero diz ainda que muitas mulheres demoram para se perceber como vítimas de estupro e temem denunciar e ser culpabilizadas pela sociedade.

Veja abaixo dez perguntas e respostas sobre o que define um estupro e porque é tão difícil denunciá-lo.

1) O que a lei define como estupro e tentativa de estupro?

Estupro é o ato de constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a praticar ato libidinoso. O sujeito que pratica o estupro tem a intenção de satisfazer a lascívia dele, ou seja, tem uma intenção sexual sobre a vítima, e para satisfazer essa intenção, usa de violência ou grave ameaça. Há uma grande discussão filosófica se o estupro é de fato motivado por uma intenção sexual ou se é uma intenção de imposição de poder do masculino sobre o feminino.

Pela lei brasileira, não é necessária a conjunção carnal para configurar o crime de estupro. Ela já foi necessária, até 2009, mas, hoje em dia, não. Qualquer ato que tenha essa intenção de satisfação de lascívia é considerado estupro. Lembrando que tem que haver o constrangimento, a imposição de uma vontade sobre a vontade da outra pessoa mediante violência ou grave ameaça.

Na tentativa de estupro, o sujeito tem a intenção de praticar estupro, inicia a execução do ato, mas não consegue satisfazer a lascívia por circunstância alheia a sua vontade. Está cada vez mais difícil configurar tentativa de estupro, porque basta qualquer ato libidinoso com violência ou grave ameaça para configurar estupro consumado.

2) Então não é preciso ter penetração para ser considerado estupro?

Não. Pode ser qualquer ato libidinoso. É aquele ato entendido como ato sexual voltado para uma satisfação da lascívia, como o Código Penal chama.

3) Quando a vítima inicialmente concordou em ter a relação sexual, mas mudou de ideia e expressou que não queria continuar, o ato ainda é considerado como estupro?

É importante ficar claro isso. Se a vítima estiver consentindo, iniciou uma prática sexual com alguém, então não tem violência, não tem grave ameaça. Mas em qualquer momento ela pode dizer que não quer mais. No momento que ela diz ‘não quero mais’, cessou o consentimento. Se o outro não aceitar o não e quiser continuar algo que iniciou, usando de constrangimento ou imposição violenta, teremos a configuração do estupro. Se a pessoa ficar forçando a barra e usando força, é violência. Força física é violência. Se eu digo não e ele segura meus braços e continua fazendo, mesmo eu dizendo que não quero, é estupro.

4) Em um dos relato das mulheres que acusam o ex-BBB, a vítima diz que tinha concordado em transar, mas mudou de ideia porque não tinha preservativo. Isso também pode ser considerado estupro?

Isso é muito comum. É comum a mulher iniciar a execução de ato e se dar conta de que não quer mais, pode ser porque não tinha preservativo, porque mudou de ideia, não importa o motivo. O que importa é que, obviamente, no momento em que cessa o consentimento, cessa vontade de um lado, tem que cessar o ato. Se não cessar, se o outro lado forçar para continuar, vai estar usando de violência para satisfação de lascívia, portanto é estupro.

5) Nos casos relatados, e outros tantos muito comuns no ambiente universitário, a vítima está em ambiente de festa, costuma estar embriagada. Essa vulnerabilidade é levada em conta na hora de tipificar o crime?

Pode ser levada em conta. Se houver vulnerabilidade a ponto de a vítima não ter condições de consentir — que pode ser a idade, ou o estado de embriaguez — o Código Penal dispensa a necessidade de haver violência ou grave ameaça. Isto é, se eu tiver relação com outra pessoa que está em estado de vulnerabilidade, eu já consumo estupro de vulnerável, independentemente da utilização de violência. A violência nesse caso é presumida, porque a pessoa não tem como oferecer resistência.

5) Quais são as punições previstas para estupro e tentativa de estupro?

O estupro tem pena de 6 a 10 anos de reclusão. Se for estupro de vulnerável é 8 a 15 anos. E, na tentativa, a pena é reduzida em um ou dois terços. Quanto mais perto o sujeito ficou de consumar o ato, menor a redução.

6) Por que muitas mulheres levam tanto tempo para denunciar?

É uma questão da sociedade machista e patriarcal. As mulheres, muitas vezes incluídas num pensamento machista, não se enxergam como vítimas. Ficam na dúvida. E, historicamente, no próprio Judiciário, os agentes do direito julgavam as vítimas e não os estupradores. Por muito tempo se questionou se a vítima não era culpada, se ela que não olhou o estuprador de uma forma diferente, se não estava com uma saia muito curta, se não se passou. O julgamento volta para a mulher. Então a mulher pode ter medo dessa dupla vitimização que o estupro gera. A mulher é vítima de um crime e, depois, quando denuncia, é revitimizada, sofre novamente. Isso prejudica bastante a mulher a se enxergar como vítima e ter coragem de falar. Ela sente vergonha, porque sabe que, no fundo, vai ser julgada por aquilo. As pessoas vão pensar que ela tem culpa. E isso é muito grave. Então, às vezes, deixar de denunciar, é uma forma de preservação.

8) Também pesa o fato da palavra das mulheres sempre ser relativizada nestes casos?

Isso é muito presente. Nem sempre a voz da mulher recebe o crédito devido. A mulher tem sua comunicação muitas vezes relativizada pela sociedade. Há uma tendência em acreditar no homem e não na mulher. Isso é outro fato que vai se somar aos demais para dificultar a decisão de denunciar um estupro.

9) O crime de estupro é difícil de provar? Como o sistema judiciário lida com isso?

É um crime difícil de provar porque nem sempre deixa marca, mesmo que seja denunciado logo. Isso acontece sobretudo nessas hipóteses em que a gente vê que houve um consentimento prévio, mas que deixou de existir em determinado momento. Então, se não houver uma violência muito grave, uma marca, é difícil de comprovar dessa forma. É um crime que acontece num âmbito muito privado. Muitas vezes é só a palavra da vítima contra a palavra do estuprador. A Justiça, cada vez mais, tem percebido que muitas vezes a única prova vai ser a palavra da vítima. Aí vai tentar combinar a palavra dela com algum outro elemento de corroboração. Às vezes, a própria narrativa do autor pode corroborar a da vítima, trazer verossimilhança e convencer o juízo.

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10) É comum que mais vítimas venham à tona no momento em que as denúncias ganham visibilidade?

Sim, quando mais mulheres falam, isso fortalece a vítima, à medida que ela vê que isso não aconteceu só com ela. É uma forma também das vítimas se apoiarem, de dividirem as tensões da revitimização que vai acontecer quando a denúncia vier a público. Isso fortalece a própria conscientização, se entender como vítima. Ela consegue perceber: se isso é estupro, eu também fui estuprada. Há uma dúvida da mulher, de entender que foi vítima de estupro. Ela sabe que aquilo não foi certo, ficou com um sentimento ruim, mas não sabe se aquilo foi estupro, pensa se não era culpa dela. Até no caso do João de Deus, eu tive contato com um caso de uma menina que sabia que tinha algo errado, mas só se deu conta que tinha sido violentada depois que leu as notícias. Isso acontece também, de se perceber vítima, de cair a ficha, quando vê outra pessoa denunciando.

Por Leda Antunes

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