Igualdade de gênero no mercado de trabalho não pode ser reduzida ao salário, afirma procuradora

13 de setembro, 2018

Propostas de candidatos à Presidência da República vão de criação da “lista suja do machismo” até dizer que não é problema do presidente.

(HuffPost Brasil, 13/09/2018 – acesse no site de origem)

“Discutir a equidade de gênero no mercado de trabalho não é falar só sobre salário”. A frase é da procuradora Valdirene de Assis, coordenadora nacional de Promoção da Igualdade do Ministério Público do Trabalho (MPT), em meio ao debate entre candidatos à Presidência da República sobre diferença de remuneração entre homens e mulheres.

No debate da TV Gazeta no último domingo (9), Guilherme Boulos (PSol), prometeu uma “lista suja do machismo” que puniria empresas que pagam menos para mulheres do que para homens na mesma função. Em 17 de agosto, Marina Silva (Rede) entrou em confronto com Jair Bolsonaro (PSL) no debate promovido pela Rede TV!, após o deputado dizer que “na CLT já está garantido que a mulher deve ganhar igual ao homem, [então] não temos nos preocupar com isso”.

O artigo 461 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) prevê que se a função for idêntica, “todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade”. O conceito de igual valor corresponde a trabalho com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço para o mesmo empregador não seja superior a 4 anos e a diferença de tempo na função não seja maior que 2 anos.

De acordo com os dados mais recentes do IBGE, em 2017, o salário médio pago às mulheres foi equivalente a 77,5% do rendimento pago aos homens no Brasil. Enquanto eles receberam R$ 2.410, elas ganharam R$ 1.868. A porcentagem ficou levemente acima da registrada em 2016 (77,2%).

Uma pesquisa da empresa de anúncios de emprego Catho divulgada neste ano, por sua vez, revelou que mulheres ganham até 38% menos que colegas homens que atuam na mesma função.

Segundo o estudo, a desigualdade é maior entre os mais escolarizados. Mulheres com MBA, por exemplo, ganham cerca de R$ 5.811,80, pouco mais que a metade do que os R$ 10.106,18 que homens com o mesmo nível de instrução ganham.

Apesar de a discussão nas eleições estar centrada na diferença salarial, a procuradora Valdirene de Assis destaca que a promoção da equidade de gênero no mercado de trabalho não pode pode ser reduzida só a essa questão.

“A gente fala principalmente de mulheres que têm uma qualificação profissional extraordinária, uma história dentro da empresa de profundo respeito e que vão passar 10, 15, 20 anos naquela estrutura organizacional e não vão chegar aos cargos de mando, de direção da empresa”, aponta.

A especialista em promoção da igualdade dentro do MPT lembra também que a discussão não pode ser dissociada do plano doméstico. “Não se fala em igualdade de trabalho da mulher sem discutir sua condição de mãe, lactante, gestante, responsável primeira pelo maior número de lares no nosso País”, completa.

No âmbito da discriminação de gênero, nos últimos 5 anos, o MPT deu andamento a 534 denúncias em apuração preliminar, realizou 6.338 investigações e instaurou 101 procedimentos administrativos promocionais de políticas pública. Há também 105 TACs (termos de ajuste de conduta) firmados, mais de 11 mil TACs em acompanhamento e 62 ações civis públicas ajuizadas.

Leia os principais trechos da entrevista com a procuradora Valdirene de Assis:

HuffPost Brasil: Os dados de atuação do Ministério Público do Trabalho são de todo tipo de discriminação de gênero, não apenas diferença salarial na mesma função?

Valdirene de Assis: Quando falamos de discriminação de gênero, trazemos à luz todas as questões relativas às condições em que as mulheres são submetidas no mercado de trabalho. E aí está a situação da remuneração, da garantia dos direitos no período da gravidez, na condição de mãe; você não pode dissociar essas condições da vida profissional. É justamente esse o grande desafio que se coloca para o mercado: compreender que a responsabilidade familiar lamentavelmente ainda pesa muito mais para as mulheres do que para os homens. A força de trabalho das mulheres precisa ter um reconhecimento devido.

Esses números são relacionados a equidade de gênero e discutir a equidade de gênero não é falar só sobre salário.

Como funciona e quais são as etapas de apuração das denúncias?

Recebemos as denúncias por meio do site do Ministério Público do Trabalho e cada procuradoria regional tem um site específico, e essas denúncias podem chegar por essa via. A pessoa pode fazer a denúncia de forma anônima, pode pedir que seus dados sejam mantidos em sigilo e pode ser feita pela vítima da discriminação ou por um terceiro que tenha conhecimento da discriminação.

Uma vez recebida a denúncia por nós, procuradores, é feita uma avaliação porque as denúncias precisam ter um caráter coletivo para que o Ministério Público do Trabalho possa atuar. Quando se constata que essa situação é pertinente a todas as mulheres naquele ambiente de trabalho, é instaurado um procedimento de investigação.

Em seguida, nós fazemos a coleta de provas: vamos até o local, fazemos diligências para verificar de fato como é esse ambiente e, se constatada a ocorrência da discriminação, é aberta à empresa a possibilidade de celebrar um acordo, assumindo o compromisso de promover igualdade de tratamento entre homens e mulheres.

Eles têm o fundamento na ideia de que quando uma empresa viola direito das mulheres no seu quadro funcional, todas mulheres da sociedade se sentem atingidas porque é a posição da mulher que está vulnerabilizada.

E, para além do dano moral coletivo, há sempre uma cobrança de valores para que desde o momento em que a decisão judicial é estabelecida, a empresa passe a adotar as medidas estabelecidas na sentença. Enquanto ela não faz, responde por multas diárias pelo não cumprimento da decisão e pode, no futuro, responder por eventual reincidência, com pagamento de multas.

Mas, de qualquer forma, é sempre mais proveitoso que empresas trabalhem na fronteira do preventivo. Cuidar para que esse ambiente de trabalho seja saudável. Cuidar para que manifestações machistas e que possam resultar em prejuízos concretos para algumas mulheres que integrem esse quadro funcional sejam proibidas.

“Quando uma empresa viola direito das mulheres no seu quadro funcional, todas mulheres da sociedade se sentem atingidas porque é a posição da mulher que está vulnerabilizada”, diz procuradora. (Foto: Bruno Domingos/Reuters)

Como são apurados casos de diferença de pagamento na mesma função?

A gente trabalha segundo as denúncias que chegam e por meio de cooperações com as instituições. Embora a pessoa possa não ter uma informação precisa sobre quanto um colega em posição profissional semelhante estaria recebendo, a nossa experiência mostra que a mulher tem condições, por meio da convivência do ambiente da empresa, de saber que ela foi preterida ou não.

Considerando o histórico de um e de outro fica evidente que essa preterição dela só pode ter sido em razão da sua condição de mulher porque não existiria outro elemento para que ela não tivesse sido alçada ao cargo de gestão, de mando, como muitas vezes a gente observa na estrutura das empresas.

Às vezes, dentro de uma mesma equipe, pessoas que trabalham em funções semelhantes, em igualdade de condições de trabalho, ganham salários diferentes, sem justificativa. Nesse caso, existe um cenário em que a igualdade precisa ser conferida à pessoa em situação de desvantagem. Quando esse cenário se dá em uma comparação entre homem e mulher, a gente está no terreno de uma discriminação em função de gênero.

Como o MPT atua nesses casos?

Quando isso chega para nós, a gente trabalha, por exemplo, com instrumentos internacionais em que o Brasil é signatário e entram no nosso ordenamento com status de norma constitucional. Existe um comando constitucional pela não-discriminação no artigo V e no artigo VII da Constituição, específico sobre os direitos sociais, todos pugnando contra a discriminação, inclusive essa fundada na questão de gênero.

Para além disso, a gente tem a Convenção 111 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário. A gente tem outros instrumentos de direito internacionais ratificados e que, portanto, são invocáveis quando a gente trabalha isso do ponto de vista de uma ação judicial para defesa dos direitos das mulheres.

A legislação que protege o trabalho da mulher é farta. É uma legislação consiste. O que a gente precisa, na verdade, é que as denúncias cheguem mais.

É preciso que todas as pessoas estejam atentas à necessidade de que haja essa igualdade, de que se persiga essa oferta de igual oportunidade para as mulheres. E considerando que essa igualdade para mulheres passa por sua condição de mãe, por sua condição de gestante, lactante e é por isso que a legislação confere proteções especiais à mulher. Porque não dá para falar em igualdade de remuneração e oportunidade para pessoas que têm situações fáticas muito diferentes.

Como as empresas devem promover essa igualdade?

Para que essa igualdade concreta no mundo do trabalho se realize, alguns mecanismos de ajuste dessas desigualdades fáticas precisam ser acionados para que a gente encontre algo na prática e não só aquele texto “todos são iguais perante a lei”. As pessoas não são todas iguais.

A gente tem desigualdades fáticas que vão ter sua repercussão no mundo do trabalho em determinados grupos entendidos como vulneráveis e se não existem estratégias específicas para a proteção desses grupos, essas desigualdades perduram e a sociedade reproduz modelos discriminatórios.

Para que a gente enfrente isso da mulher, do negro, da pessoa com deficiência, das pessoas LGBT, há sempre a necessidade de políticas específicas de proteção desses grupos e, portanto, de promoção da igualdade material.

Para as mulheres, as políticas de proteção estão em entender que, em casos de gravidez, por exemplo, mulheres precisam fazer o pré-natal, o acompanhamento de acordo com suas necessidades. E que ausências relacionadas à gravidez não podem trazer nenhum prejuízo à sua condição de trabalhadora.

O fato de a mulher precisar se ausentar pelo período em que está protegida pela licença-maternidade não pode, quando ela retorna ao trabalho, significar prejuízo na sua carreira.

Existem vários pontos que precisam ser tratados com muito respeito e compreensão. Não se fala em igualdade de trabalho da mulher sem discutir sua condição de mãe, lactante, gestante, responsável primeira pelo maior número de lares no nosso País. Tudo isso tem de ser colocado numa mesma balança.

Nessas investigações do MPT não há como saber então quais casos são específicos de mulheres que ganham menos que homens na mesma função?

Essa divisão não tem lógica, não tem sentido porque quando você vai preterir a mulher por conta dessas questões que eu mencionei, isso necessariamente vai ter uma repercussão na remuneração. Porque a mulher que tem sua licença-maternidade violada, não vai ter condição de ser respeitada num processo de promoção dentro da empresa e, portanto, a remuneração dela vai ser afetada.

Os candidatos estão tratando essa questão de forma reducionista?

Com certeza. Não é uma questão de você pegar dentro do organograma das empresas os salários e fazer um cotejo puro e simples. Você tem que entender o contexto disso. Uma mulher deixou de ser promovida, não está com a sua remuneração expressa em igualdade. Mas, por quê? Ela está num patamar inferior a alguém que tem um currículo menor do que o dela e uma trajetória inferior até dentro da própria empresa que a dela porque ela se ausentou pela licença-maternidade ou porque é uma mãe e, portanto, tem que dividir sua jornada com essa responsabilidade?

Essa condição feminina é interpretada do ponto de vista da organização onde ela está prestando serviço como algo que obsta a sua promoção e tudo isso impacta na sua remuneração e numa desigualdade porque todas essas questões trabalhistas, em última análise, são traduzidas na forma como você é retribuído. Se você não tem seus direitos observados, você não vai ter, por óbvio, condições de ocupar os postos devidos.

Se você não tem seus direitos observados, você não vai ter, por óbvio, condições de ocupar os postos devidos.

Quando falamos de ausência de remuneração, não falamos só de duas pesfsoas que estão estritamente na mesma posição. Falamos, principalmente, de mulheres que têm uma qualificação profissional extraordinária, uma história dentro da empresa de profundo respeito e que vão passar 10, 15, 20 anos naquela estrutura organizacional e não vão chegar aos cargos de mando, de direção da empresa. Ao passo que colegas homens têm carreiras muito menos consistentes, currículos muito menos recomendados em comparação ao de uma mulher e chegam a esses cargos.

Por que os homens chegam com maior facilidade à situação de gestão e mando na estrutura da empresa, em detrimento de mulheres que têm trajetórias profissionais e currículos brilhantes? Isso é uma coisa que tem de ser considerada quando se fala em remuneração. Eles não estão na mesma função, mas isso não significa que não seria devido uma equidade. Deveria porque não estar na mesma função já é uma expressão da discriminação.

Marcella Fernandes

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas