Meninas são as que mais sofrem com falta de investimento em políticas públicas no Brasil

03 de dezembro, 2019

Pesquisa realizada pelo Cedeca Ceará mostra como a desigualdade de gênero na juventude pode ser piorada sem políticas públicas específicas

(O Povo, 03/12/2019 – acesse no site de origem)

A diminuição de investimentos em políticas públicas que ajudam a garantir direitos a crianças e adolescentes afeta principalmente meninas, aprofundando a desigualdade de gênero. É o que diz a pesquisa “Infância, gênero e orçamento público no Brasil” realizada pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca).

O estudo analisa os dados orçamentários do País levando em conta o gênero, região, classe social, entre outros fatores. Foram constatadas reduções drásticas nos gastos com ações que funcionam em combate a problemas que tem como principais vítimas as meninas, como o casamento infantil, a exploração sexual, homicídios na adolescência e evasão escolar.

Dillyane Ribeiro, técnica responsável pela pesquisa e coordenadora do núcleo de monitoramento de políticas públicas do Cedeca, explica que o Brasil adota a Convenção de Direitos da Criança, mas não segue a observação do documento que recomenda a elaboração de orçamentos públicos priorizando o direito das crianças. “O orçamento não tem servido a isso, tem ignorado as desigualdades”.

A análise mostra que gastos com cultura, educação, direitos da cidadania e saneamento vem sofrendo diminuições desde 2016, ano de forte crise financeira. A verba destinada a políticas para crianças e adolescentes em 2018 foi de 3,57% do Produto Interno Bruto (PIB), 0,05% menor que no ano anterior. Além disso, ações orçamentárias criadas para esse público deixaram de ser executadas e tiveram recursos previstos deslocados para outras áreas.

“Isso é reflexo da falta de compromisso da política de estado. O enfoque nos direitos humanos que deveria orientar [o orçamento] vem sendo renegado”. A pesquisadora expõe que a continuidade de projetos que focam na manutenção de direitos é sempre ameaçada. Mesmo estando presentes nas leis orçamentárias aprovadas, acabam sofrendo com a redestinação de verba para áreas que “a sociedade não considera prioritárias”. Ela faz uma crítica aos portais de transparência, que não disponibilizam a informação do destino do dinheiro.

Quando o orçamento deixa de priorizar educação e saúde, para Dillyane, a assistência para meninas fica mais prejudicada. Historicamente, segundo a pesquisa, o trabalho de cuidado de pessoas foi destinado às mulheres. Familiares doentes, crianças ou idosos são majoritariamente assistidos pelas mulheres, muitas vezes de forma não remunerada. Isso faz com que esse contexto seja o mais citado por jovens de 15 a 29 anos como motivo para não frequentar a escola no Nordeste, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua da Educação de 2018.

“Precisa ter creche, ter rede de saúde. Se não, sobra mais para as meninas e mulheres que ficam encarregadas dessa tarefa”, diz Dillyane. No Ceará, assim como na maioria dos estados do Nordeste, a evasão escolar é maior entre meninas de 15 a 17 anos do que entre meninos da mesma faixa etária. As horas dedicadas a cuidados e afazeres domésticos também é maior entre crianças e adolescentes do gênero feminino na região. Por ser realizado em ambientes privados e se tratar de uma tarefa esperada das mulheres, o trabalho doméstico infantil costuma ser subnotificado, de acordo com a pesquisa.

Mesmo com este cenário, os investimentos em programas de combate ao trabalho infantil têm recebido redução nos últimos anos. Em 2014, a rubrica orçamentária denominada “Ações Estratégicas ao Enfrentamento ao Trabalho Infantil” tinha destinados cerca de R$ 70 milhões, enquanto em 2018 o valor foi de menos de R$ 10 milhões. Ações importantes do governo federal como a “Concessão de Bolsa para Famílias com Crianças e Adolescentes Identificadas em Situação de Trabalho’’ e a “Fiscalização para Erradicação do Trabalho Infantil’’ tiveram zero reais disponíveis em 2018. Com isso, a pesquisa defende que a situação precária desse grupo tende a ser agravada, perdendo direitos de viver uma infância e adolescência de qualidade.

Fora da escola e em ambientes hostis de trabalho, as meninas podem entrar em contato ainda com outras vulnerabilidades, como a exploração e violência sexual e o casamento precoce, que também são estudados na pesquisa. Outro ponto levantado pelo estudo é a exposição à violência urbana dessas meninas que, nos últimos anos, se tornaram alvos mais frequentes de crimes contra a vida. “Precisamos de uma mudança radical na orientação da nossa política. Apostar e investir na vida, na geração de saúde, na diminuição das desigualdades, e não na política de morte e no encarceramento, que só aumenta a violência”, opina Dillyane.

Por que meninas são mais vulneráveis?

Para a professora do departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UNB), Hayeska Barroso, desde cedo as meninas são criadas como mais frágeis. Comportamentos ensinados dentro de casa, como falar baixo, silenciar vontades e não se posicionar, segundo ela, serão reproduzidos também fora do ambiente familiar. “O lugar imposto é o de subalternidade”, diz. Assim, elas acabam expostas à violência e à negligência.

A pesquisa

O estudo do Cedeca compõe uma pesquisa organizada pela organização não governamental Save The Children e deve ser compilado com dados da Guatemala e do Peru. Os resultados foram apresentados em outubro no Comitê de Direitos Humanos da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Pobreza na infância agrava desigualdade de gênero, diz pesquisadora

Para ganhar roupas, sapatos e o caderno da escola, Francineide dos Santos da Silva, 49, teve de começar a trabalhar ainda com 11 anos. Em casa, na cidade de Jaguaribe, interior do Ceará, sua mãe não teria condições de garantir seu acesso aos estudos, já que trabalhava lavando roupas e ainda tinha outros cinco filhos para criar sem ajuda do pai das crianças. Então, Neide precisou fazer o que muitas meninas na mesma situação também fizeram para se manter: realizar trabalhos domésticos em casas de famílias da vizinhança.

Às 5 horas, todos os dias, levantava para começar a cuidar da casa da patroa. Neide seguia lavando roupas e limpando os cômodos até a hora de dar banho na filha da mulher. “O que eu achava mais dificultoso era cuidar da especial [pessoa com deficiência]. Ela era muito violenta, batia muito em mim, eu chorava, ficava com roxo”, relatou. Os cuidados com a jovem tomavam grande parte do dia de Neide, que só depois ia à escola, no período da tarde. Ela morava na casa da família, não tendo direito a folgas no fim de semana ou em feriados.

No colégio, a maioria de suas colegas tinha rotina parecida. Todas trabalhavam desde muito novas. “A gente no interior não tem negócio de cansaço, a gente começa a trabalhar muito cedo. E eu precisava daquela roupa, precisava estudar”, disse. Se tivesse continuado na casa dos pais, Neide acredita que não conseguiria continuar nem até a quarta série, que foi quando parou de ir a escola. Os irmãos também trabalhavam ajudando a mãe a lavar roupas, mas segundo ela, tinham rotina mais tranquila.

A história de Neide, mesmo após mais de 30 anos, ainda é vivida por diversas meninas. De acordo com a Pnad Contínua de 2016, as meninas de 5 a 13 anos do Nordeste dedicam pelo menos 8 horas semanais a trabalhos domésticos, 1,7 hora a mais que meninos da mesma idade. A média da região é a maior do Brasil, que também tem o maior índice de pobreza do País. O dado evidencia, conforme a pesquisa do Cedeca, que “a pobreza não só propulsiona o uso da mão de obra infantil, mas aprofunda, sobretudo, a desigualdade de gênero”.

A professora do departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UNB), Hayeska Barroso, explica que a questão de classe influencia nos serviços básicos e oportunidades que as mulheres têm acesso, inclusive as de trabalhos dignos. Além disso, desde cedo elas são direcionadas a áreas de emprego que historicamente têm piores remunerações, enquanto os homens são instigados a buscar trabalhos com melhor status social, segundo a pesquisadora. “Não sei se poderia dizer que quanto mais pobre, maior a violência de gênero, mas eu posso dizer que a pobreza potencializa os vieses em que a violência de gênero vai chegar nessas mulheres. Assim como a pobreza, a raça e a idade também”, afirma.

Apesar do Norte e do Nordeste serem as regiões que mais têm pessoas em situação de extrema pobreza, os investimentos do governo federal em políticas públicas como educação, saúde, assistência social e cultura priorizaram o Sudeste no ano de 2018. Na cultura, por exemplo, dados do Siga Brasil colhidos pelo Cedeca mostram que a região recebeu 66,1% dos recursos, enquanto o Norte teve 1,2% dos gastos. “É possível verificar que o processo orçamentário não respeita as disparidades existentes entre as regiões, mas as exacerba”, diz o texto da pesquisa.

Verba para combate à violência sexual contra crianças e adolescentes deixou de existir no orçamento desde 2017

Desde 2014 sofrendo cortes, a única ação nacional para combate da violência sexual a crianças e adolescentes deixou de existir completamente no orçamento público do governo federal em 2017. A verba também não apareceu nas contas de 2018, segundo a pesquisa do Cedeca. Enquanto isso, o número de notificações de violência sexual contra pessoas de 0 a 19 anos, de acordo com o Ministério da Saúde, cresceu cerca de 20% de 2016 para 2017. Dos casos registrados, as vítimas do gênero feminino representam 64%.

“A não alocação orçamentária para esse programa é extremamente ruim e sintomática, principalmente porque é um programa que já teve muito recurso. E mesmo assim, já não era suficiente”, diz Lídia Rodrigues, membro da comissão de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes do Fórum Permanente de ONGs de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes do Ceará. Em 2016, o programa tinha disponíveis R$ 6,6 milhões.

Lídia acompanha as políticas desde 2004 e reconhece que o movimento já teve avanços, como a aprovação da Lei 13.431/2017 que garante direitos para crianças vítimas e testemunhas de violência sexual. No entanto, para ela, os retrocessos nas políticas de enfrentamento desse problema são perceptíveis. Ações como o programa Sentinela, que assegurava atendimento psicossocial para vítimas em âmbito federal, não são mais implementadas. No Estado, o Ceará também não tem nenhum programa parecido.

“Há um vácuo de políticas específicas para essa menina jovem”

Devido a guerra entre facções criminosas pelo domínio dos territórios do tráfico, o homicídio tem se tornado uma das principais causas de morte entre jovens na segunda década de vida. Apesar de representar um número bem menor do que as mortes de meninos, o assassinato de meninas vem aumentando. Em Fortaleza, de 2017 para 2018 o número de homicídios entre jovens do gênero feminino nessa faixa etária aumentou 90,32%, enquanto o de meninos diminuiu 34,99%. Para o relator do Comitê de Prevenção de Homicídios na Adolescência, o deputado estadual Renato Roseno, faltam políticas públicas para esse grupo.

“Há um vácuo de políticas específicas para essa menina jovem, adolescente. Opressão de gênero, vulnerabilidade socioeconômica e o território. Essas camadas se reforçam de forma a permitir que elas sejam mais vulneráveis ainda à violência letal”, afirma. Roseno explica que o comitê estuda para produzir informações sobre as vulnerabilidades particulares das meninas em contexto de violência urbana para, então, comprovar a necessidade das políticas públicas próprias para combater o problema.

Para a prevenção, o relator defende que a assistência social tem um papel importante no cuidado com os jovens e suas famílias. O serviço, segundo ele, deve encaminhar adolescentes em situações vulneráveis para projetos específicos de prevenção, bem como atender famílias e garantir que todos tenham acesso a serviços de saúde mental. De acordo com a pesquisa do Cedeca, dados do Portal da Transparência mostram que o investimento em assistência social diminuiu 66% de 2017 para 2018.

O Fundo Municipal de Assistência Social recebeu, em 2017, R$ 16,8 milhões do Tesouro Municipal. Em 2018, o valor foi de R$ 5,7 milhões. É com este dinheiro que são mantidos programas como o Centro de Referência em Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas). São esses órgãos que conseguem fazer o trabalho preventivo com os jovens e suas famílias.

Quando questionada sobre a queda na verba, a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) afirmou que os recursos federais também recebidos pelo fundo atrasaram em 2016 e 2017. A pasta só voltou a receber o dinheiro em 2018. O débito para a Prefeitura foi de R$ 12 milhões devido aos atrasos.

Por Alexia Vieira

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