‘Para ser antiaborto, é preciso descriminalizá-lo’, diz especialista do Uruguai

21 de outubro, 2018

De quatro países, médicos pioneiros no debate compartilham experiências

(O Globo, 21/10/2018 – acesse a íntegra no site de origem)

No próximo ano, o índice de abortos no Uruguai começará a cair, como ocorreu em muitos países europeus, afirma o ginecologista Leonel Briozzo, que era vice-ministro da Saúde do país em 2012, quando foi legalizado o procedimento. Atualmente são feitos oito mil abortos ao ano por lá, número similar ao de países escandinavos.

Briozzo e outros médicos pioneiros na discussão dos direitos das mulheres à interrupção voluntária da gravidez, mesmo antes de a prática se tornar lei em seus países, dividiram com O GLOBO motivações, agruras e esperanças. Eles vieram ao Rio na semana passada para participar do Congresso Mundial de Ginecologia e Obstetrícia (Figo). Além do uruguaio, os ginecologistas Alfonso Carrera, do México; Laura Gil, da Colômbia; e Cliona Murphy, da Irlanda, ajudam a traçar um panorama diverso dos processos de legalização do aborto na América Latina e na Europa. Leia aqui as suas entrevistas sobre a situação nos seus países.

URUGUAI

Segundo o uruguaio Briozzo, a América Latina não tem mais países em que o aborto já é regularizado por conta da forte influência de setores religiosos fundamentalistas e políticos da ala conservadora. O ginecologista, que se diz preocupado com as perspectivas sobre o tema para o Brasil, conta que a chave para levar a cabo este processo no Uruguai foi a construção de um diálogo com setores moderados que incluísse a defesa de outras práticas seguras para a saúde reprodutiva. ‘Para ser antiaborto, é preciso descriminalizá-lo’, diz o especialista.

Qual é a razão de o Uruguai ser apenas o segundo país da América Latina a legalizar o aborto em todos os casos, após Cuba?

A influência exacerbada de setores religiosos fundamentalistas e uma visão bastante conservadora dos políticos. Em grande parte dos países europeus, o aborto foi descriminalizado há 30 anos. Mas, embora nossa região tenha uma proporção de católicos até parecida com alguns países da Europa, aqui existe uma visão obscurantista em torno do tema. E muitos políticos se atêm a uma fé religiosa mal-entendida que implica a tentativa de impor sua religião aos demais. Um governante deve colocar sua conduta republicana acima das convicções pessoais.

No Brasil, o candidato à presidência líder nas pesquisas, Jair Bolsonaro, é contrário a qualquer medida em torno do direito ao aborto; seu opositor, Fernando Haddad, se comprometeu a não legalizar a interrupção da gravidez. Quais as perspectivas para o Brasil nos próximos anos?

Estou muito preocupado. Temo pelos direitos que já foram conquistados pela população brasileira, por um retrocesso. Direitos reprodutivos deveriam estar em todas as agendas de políticos, de direita ou esquerda, pois são direitos humanos básicos. Avançar nisso significa ser a favor da vida e da felicidade da população.

No Uruguai, desde 1978, houve cerca de dez projetos para a legalização do aborto, e todos fracassaram. Por que foi diferente em 2012?

O presidente à época, Pepe Mujica, foi essencial. Ele declarou ser inaceitável que morressem mais mulheres por aborto inseguro no país. Também foram cruciais o movimento social das mulheres que trabalham com o tema da saúde reprodutiva e o comprometimento de profissionais da saúde que fundaram a ONG Iniciativas Sanitárias, voltada para o direito ao acesso à saúde. Também havia um contexto muito favorável à obtenção de novos direitos no Uruguai. Assim como o direito ao aborto, também foi aprovado o direito à reprodução assistida. O mesmo para o acesso à fertilização in vitro e outras técnicas. A legalização da cannabis também se deu naquele momento.

Como foi possível driblar a resistência dos conservadores?

Estabelecemos um diálogo muito rico com os religiosos que não eram fundamentalistas. Quando conversávamos com eles, destacávamos que nós também éramos contrários à prática do aborto, e que os dados de todos os outros países mostravam que, onde ele não era legal, o número de procedimentos era maior do que onde era permitido. Nestes, há educação em saúde reprodutiva e contracepção que evita a gravidez não desejada, além de práticas seguras que evitam complicações futuras. Para ser antiaborto, é preciso descriminalizá-lo.

Houve queda no número de abortos desde a mudança na lei?

Ainda não. A descriminalização só tem cinco anos, e os registros de aborto geralmente aumentam no início porque as pessoas passam a procurar o serviço legal. Anteriormente, não existia registro quantitativo, só estimativas. Tivemos um aumento de 20% do segundo para o primeiro ano, depois de 10%, até que, de 2017 para 2018, de apenas 1%. A previsão é que, a partir do ano que vem, o índice seja negativo.

Antes da legalização, o país implementou, em 2001, uma política de redução de danos. Como funcionava?

Quando uma paciente tinha uma gravidez indesejada, eu dava informações sobre como ela mesma, em casa, poderia realizar o aborto, com medicamentos. Detalhava o que era preciso fazer, quantos comprimidos tomar, e me dispunha a tirar dúvidas, de forma técnica e humana. Os medicamentos são muito seguros; e o processo, nada invasivo. A política foi implementada em vários serviços de saúde. Com ela, muitas mulheres deixaram de fazer procedimentos inseguros, em clínicas clandestinas. Os riscos diminuíram.

Ao orientar uma mulher a fazer um aborto seguro, ainda que ilegal, o médico não corria o risco de ser denunciado ao conselho de ética médica?

Sim. Fui denunciado, mais de uma vez. Mas tínhamos como respaldo a confidenciabilidade médico-paciente. Do ponto de vista ético, sabíamos que o que fazíamos era adequado. Oferecíamos informações para evitar problemas de saúde ou até mesmo a morte das mulheres.

Muitos médicos aderiram a essa política?

A política foi ganhando adeptos à medida que os dados começaram a mostrar que ela era eficaz. Com isso, conquistamos o apoio oficial da Faculdade de Medicina do Uruguai e da Sociedade de Ginecologia.

Quais foram os resultados?

Reduzimos a mortalidade materna por aborto inseguro a zero em 2008, pela primeira vez na história do Uruguai. Também houve grande redução no número de mulheres sob cuidados intensivos por complicações e redução nos custos de saúde. Além disso, as mulheres passaram a confiar muito mais no sistema. Hoje, o Uruguai tem percentuais baixos de abortos voluntários, similares aos dos países escandinavos, que têm a prática descriminalizada há 40 anos. São registrados cerca de oito mil abortos por ano no país.

Clarissa Pains

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas