STF inicia debate sobre descriminalização do aborto até 12ª semana de gravidez

03 de agosto, 2018

“A sociedade brasileira precisa dessa audiência pública também para quebrar esse tabu. A gente precisa passar a limpo esse tema”, afirma Luciana Boiteux.

(HuffPost Brasil, 03/08/2018 – acesse no site de origem)

Direito das mulheres à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à igualdade de gênero, à proibição de tortura, à saúde e ao planejamento familiar. Esses são os principais argumentos da ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O tema será debatido pela primeira vez no STF (Supremo Tribunal Federal) por especialistas selecionados pela relatora, ministra Rosa Weber. Nesta sexta-feira (3), a audiência pública reúne representantes de 28 instituições. O debate continua na próxima segunda-feira (6).

O objetivo da discussão é subsidiar o julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, proposta em março de 2017 pelo PSol em conjunto com o Anis – Instituto de Bioética. A petição inicial pede que o STF declare que os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto não estão integralmente de acordo com a Constituição de 1988. Hoje, o procedimento só é permitido no Brasil em casos de estupro, risco de vida da mãe e feto anencéfalo.

As audiências vão ocorrer das 8h40 às 12h50 e das 14h30 às 18h50 e serão transmitidas ao vivo pela TV Justiça, inclusive pelo canal no Youtube. Nos 2 dias de discussões, cada expositor terá 20 minutos de fala e ao final de cada turno haverá um debate com os presentes.

Em Brasília, as audiências também serão transmitidas no Festival Pela Vida das Mulheres, organizado pela campanha campanha “Nem Presa Nem morta”. O evento faz parte da mobilização a favor da legalização, que reúne organizações e coletivos feministas, além de mulheres autônomas. De sexta a domingo (5), serão promovidos debates sobre temas como prestação de serviços para a saúde reprodutiva, a luta pelo aborto legal na Argentina, Brasil e Uruguai e a discussão da interrupção da gravidez nas eleições de 2018. A campanha também lançou uma petição que pode ser assinada por quem apoia a descriminalização.

Do outro lado, movimentos contra a legalização também estão organizando atos em diferentes cidades. A maioria das manifestações dos grupos que se classificam como “pró-vida” será no fim de semana. Em junho, o movimento Brasil Sem Aborto reuniu cerca de 3 mil pessoas, segundo os organizadores na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. De acordo com a Polícia Militar, foram mil manifestantes.

Ministério da Saúde mostra números sobre aborto

Na audiência desta sexta, os dados do Ministério da Saúde serão apresentados por Maria de Fátima Marinho, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde da pasta, e por Mônica Almeida Neri, coordenadora-geral de Saúde das Mulheres.

Em 2017, foram feitos 1.636 abortos legais. O governo federal não tem informações sobre o número de procedimentos ilegais, mas há indicativos que ajudam a mensurar a clandestinidade. De acordo com o Datasus, no ano passado, foram registradas 177.464 curetagens pós-abortamento, um tipo de raspagem da parte interna do útero. Outro procedimento em casos de aborto é o esvaziamento do útero por aspiração manual intrauterina (AMIU). Em 2017, foram registradas 13.046. Juntas, foram 190.510 internações.

Os números incluem tanto atendimentos após abortos clandestinos quanto alguns abortos espontâneos, mas a estimativa é que ⅔ do total sejam ilegais. Justamente pela criminalização, não há dados precisos sobre o tema no Brasil. “A gente está lidando com um assunto que é tudo escondido, então é sempre assim, uma conjunção de números e hipóteses”, afirmou a médica Tânia Lago, professora na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, em entrevista ao HuffPost Brasil.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2016, quase uma em cada 5 brasileiras aos 40 anos já realizou pelo menos um abortamento. Em 2015, foram, aproximadamente, 416 mil mulheres. Como o levantamento foi apenas na área urbana, a estimativa é de 503 mil abortos.

Como a criminalização não impede a interrupção da gravidez, o sistema de saúde tem custos com as consequências de procedimentos clandestinos. Em 2017, a estimativa é de R$ 40 milhões gastos com curetagens e aspirações intrauterinas.

Legalização reduziria gastos

A estimativa de especialistas é de redução de custos, caso o aborto seja legalizado. De acordo com o estudo publicado pela Guttmacher Institute, procedimentos pós-abortamento custaram cerca de US$ 232 milhões a países em desenvolvimento em 2014.

A pesquisa “The Costs and Benefits of Investing in Sexual and Reproductive Health 2014” (Os Custos e Benefícios do Investimento em Saúde Sexual e Reprodutiva 2014, em tradução livre), destaca a precariedade no atendimento e revela que se todas mulheres que precisam desse serviço fossem atendidas, o custo seria de US$ 562 milhões.

Já se todos os abortos fossem legalizados, o valor cairia para US$ 20 milhões.

Como o procedimento legal é mais seguro, especialistas avaliam que a descriminalização salvaria a vida de milhares de mulheres. De acordo com o Ministério da Saúde, o aborto é a 5ª causa de morte materna no País. Em 2016, dos 1.670 óbitos causados por problemas relacionados à gravidez ou ao parto ou ocorridos até 42 dias depois, 127 foram devido ao abortamento. Nesse grupo, a desigualdade racial é evidente. Em 2015, por exemplo, foram registradas 559 mortes de mulheres brancas e 1.079 de mulheres negras.

Aborto no Congresso Nacional

A audiência da manhã desta sexta no STF concentra exposições de profissionais da área de saúde. Além do governo federal, serão ouvidos representantes de entidades como a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Fundação Oswaldo Cruz, além do ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão; da antropóloga Debora Diniz, uma das fundadoras da Anis; e da cientista Lenise Garcia, presidente do movimento Brasil Sem Aborto.

Em entrevista ao HuffPost Brasil, a doutora em microbiologia e professora da Universidade de Brasília (UnB) foi categórica em sua posição: “não há nenhuma justificativa científica para se colocar o início da vida humana em qualquer outro lugar que não a fecundação”. Na avaliação de Garcia, cabe ao Estado proteger os direitos do feto.

Além de ser contra a legalização, a especialista acredita que o debate deveria ser feito no Legislativo. Uma das maiores organizações civis contrárias à descriminalização da interrupção da gravidez, o Movimento Brasil Sem Aborto é presença constante nas articulações no Congresso Nacional sobre o tema. Integrantes da entidade chegaram a distribuir bonecos de fetos com 10 semanas em audiência pública na Câmara dos Deputados sobre a ADPF 442, em 30 de maio.

Entre deputados e senadores, o debate tem sido sistematicamente dominado por parlamentares contrários aos direitos reprodutivos, integrantes das bancadas católica e evangélica. Uma demonstração evidente foi a PEC [Proposta de Emenda à Constituição] 181de 2015, apelidada de Cavalo de Tróia. O texto define que a vida começa “desde a concepção” e, se aprovado, pode inviabilizar inclusive as previsões de aborto legal no Brasil. O texto-base foi aprovado por 18 homens a favor e uma mulher contra em uma comissão especial da Câmara em novembro de 2017, mas faltam votar os destaques.

Em entrevista ao HuffPost Brasil, a advogada e professora de direito penal Luciana Boiteux, uma das 4 autoras da ADPF, argumentou que o Judiciário tem ocupado o espaço na discussão devido ao perfil do Legislativo atual. “O Supremo está sendo chamado a ocupar um espaço político, justamente pelo nível baixíssimo de parlamentares, com honrosas exceções. Um Parlamento desacreditado, conservador, misógino, que tem posições absolutamente anti-democráticas”, afirmou.

Candidata à deputada federal pelo Psol, a advogada destacou que um projeto de lei do deputado Jean Wyllys (PSol-RJ) sobre o tema não avançou na Câmara dos Deputados devido à atuação da bancada religiosa. Para a especialista, o debate no STF é um passo determinante para tratar a discussão no sentido de preservar a vida das mulheres.

[A legalização do aborto] É urgente não só por princípio, por ser uma pauta feminista, ou por ser um compromisso com a liberdade das mulheres. Mas por ser uma pauta de saúde pública.
Luciana Boiteux

A advogada também destacou a importância do debate no Supremo. “Eu acho que a sociedade brasileira precisa dessa audiência pública também para quebrar esse tabu. A gente precisa passar a limpo esse tema do aborto”, afirmou.

O que o STF já decidiu sobre aborto

Se a discussão do aborto por vontade própria da mulher é inédita no STF, o debate sobre o início da vida já ocorreu em 2007. Neste ano, foram realizadas audiências públicas na ADPF 54. No julgamento do processo, em 2012, o plenário da Corte decidiu pela permissão da antecipação do parto em casos de fetos anencéfalos. Até então, o aborto só era permitido nas hipóteses previstas pelo Código Penal: em caso de estupro ou risco de vida da mãe.

Além do relator, ministro Marco Aurélio Mello, votaram a favor da ampliação dos direitos reprodutivos os ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Ricardo Lewandowski e o então presidente da corte, ministro Cezar Peluso, votaram contra a liberação e Dias Toffoli se declarou impedido.

Na época, Mauro Aurélio sustentou não haveria um conflito de fato entre os direitos das mulheres e o direito à vida do feto porque a anencefalia inviabiliza a vida fora do útero. “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é incompatível com a vida”, afirmou o relator. Ele argumentou que o início da vida não pode pressupor apenas a fecundação, como também a viabilidade da existência desse ser humano.

Em novembro de 2016, o STF deu outro passo sobre o tema. Ao julgar o caso de uma clínica clandestina no Rio de Janeiro, a 1ª turma da Corte decidiu que a conduta não deveria ser considerada crime. Em seu voto, o relator, ministro Luis Roberto Barroso, afirmou que a criminalização é incompatível com direitos sexuais e reprodutivos e com a autonomia da mulher, além de ir contra a integridade física e psíquica da gestante e a igualdade, “já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.

O voto foi seguido pelos ministros Rosa Weber, Edson Fachin. Marco Aurélio e Luiz Fux também concordaram que os acusados não deveriam ser presos, mas não votaram sobre a questão do aborto. Apesar de o julgamento se limitar a um caso específico, ele provocou reação em setores contrários à legalização. A comissão da PEC 181 foi instalada na Câmara um dia após a decisão do STF.

Direitos reprodutivos no mundo

As duas decisões do STF, além do processo sobre a constitucionalidade da pesquisa com embriões são citados como argumentos a favor da legalização. “A presente ADPF deve, portanto, ser entendida como resultado de um processo cumulativo, consistente e coerente desta Suprema Corte no enfrentamento da questão do aborto como uma matéria de direitos fundamentais”, diz a petição inicial da ADPF 442.

O documento também cita referências internacionais, como o julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre um caso de reprodução in vitro de El Salvador em 2012. Na ocasião, o tribunal fez um interpretação do Pacto de São José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos.

O artigo 4º do tratado diz que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Na interpretação da CIDH, o Pacto a expressão “em geral” seria incompatível com a proteção do direito à vida de maneira absoluta absoluta e “o objeto direto de proteção [do artigo do pacto] é fundamentalmente a mulher grávida”.

O panorama internacional também estará em debate nesta sexta. À tarde, algumas das organizações expositoras são a Human Rights Watch, Women on Waves, International Women’s Health Coalition – IWHC e o Consórcio Latino-Americano contra o Aborto Inseguro (Clacai).

Foram as legislações estrangeiras que motivaram a escolha pelo marco de 12 semanas. Essa é a referência no Uruguai e na cidade do México, por exemplo. O período também tem relação com o início da formação do sistema nervoso central, o que serve de paralelo, uma vez que o entendimento da Medicina de que o fim da vida é atribuído à morte cerebral.

Entre as organizações internacionais presentes na audiência, a Clacai foi a responsável por viabilizar o aborto legal da paulistana Rebecca Mendes na Colômbia em dezembro de 2017, após a relatora da ADPF 442, ministra Rosa Weber, negar o pedido feito em caráter liminar. A negativa foi por questões processuais. “O pedido (…) por sua natureza subjetiva individual, não encontra guarida no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, que serve como instrumento da jurisdição constitucional abstrata e objetiva”, escreveu a magistrada.

Mãe solo de dois filhos, com emprego temporário, aluguel para pagar e à época grávida de 6 meses, Rebecca se tornou um dos símbolos da luta pelo aborto legal no Brasil. Em carta à Rosa Weber, à época, a universitária afirma que não queria recorrer à clandestinidade por medo de riscos à saúde e de ser presa.

O medo do procedimento não funcionar e acarretar má-formação ou o remédio causar uma hemorragia causando a minha morte e, ser levada para um hospital e chegando lá ser levada para delegacia. Não quero ser presa e muito menos morrer. Não parece ser justo comigo.
Carta de Rebecca Mendes a Rosa Weber

Marcella Fernandes

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