‘Americanah’ é um alívio da ficção contra o racismo

18 de setembro, 2014

(Geledés, 18/09/2014) “Ela vai voltar uma tremenda americanah”, diz, em tom de brincadeira, uma colega de Ifemelu, protagonista do novo romance da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, Americanah. A frase nem é direcionada a Ifemelu – que apenas anos depois iria tomar seu rumo para a América, saindo de uma Nigéria politicamente instável e economicamente pouco estimulante. Mas poderia ser: o termo se refere aos nigerianos que viajam aos Estados Unidos para estudar e acabam “com estranhas afetações”.

A obra que chega agora ao Brasil, publicada pela Companhia das Letras com tradução de Julia Romeu, venceu o National Book Critics Circle Award e foi eleita uma das 10 melhores de 2013 pelo The New York Times Book Review – e não é pra menos. Americanah é um longo e intenso relato dividido em dois focos narrativos, o casal Ifemelu e Obinze, com grande destaque para ela, percorrendo a infância e a adolescência na Nigéria e 15 anos de Estados Unidos – tempo dividido entre empregos e amores conturbados e muita discriminação racial.

Quando questionada, em uma entrevista concedida ao Estado, por telefone, de Baltimore, se o seu objetivo era escrever um livro sem nuances e sutilezas, Chimamanda ri e discorda. Ela acha sim que a cruzada de Ifemelu contra o racismo é permeada de nuances, apenas porque, oras, a personagem não é uma pessoa perfeita.

Ifemelu vai à América estudar comunicação e, depois de muitos percalços, consegue se estabelecer ao criar um blog em que discute – sempre com uma incisiva pitada de humor (do tipo inteligente que aponta o opressor, no caso, racista) – a questão racial nos Estados Unidos. Sua história com Obinze é a outra ponta do romance, que, crítico e divertido, dosa política, música e literatura.

No momento em que a ONU reconhece o racismo institucionalizado no Brasil e após declarações infantis de astros esportivos sobre assunto tão importante, ler Americanah é um alívio momentâneo – um instante de prazer na ficção para uma reflexão continuamente necessária no País.

A primeira coisa que o leitor sabe no livro é que Ifemelu está voltando para casa. Por que você escolheu escrever sobre uma pessoa que ao longo de todo o livro está voltando?

Estou interessada na ideia do que “casa” significa. Num senso maior, eu gostaria de falar sobre uma geração em particular de africanos que está voltando. Nos anos 1960, havia muitos africanos que iam ao exterior para estudar e então voltavam. Nos anos 1970 e 1980, os africanos saíam e não retornavam, porque muitos dos países viviam sob ditaduras. Nos últimos 15 anos há, novamente, uma geração de pessoas voltando. As economias estão indo bem, os países politicamente mais estáveis. Estou tentando capturar isso no romance.

Você já disse que não é uma americanah. Mas Ifemelu é?

É uma boa pergunta. Eu acho que não. Mesmo se ela for, acho que é algo que ela desafia, não se acomoda.

Ifemelu diz que só se sentiu negra quando pisou na América. Pensando nisso, como as relações de raça acontecem de onde você vem?

Na Nigéria não temos tantas categorias, como branco, meio branco, meio negro. A discussão é étnica, não racial. Há privilégios para pessoas com um tom de pele mais claro. Infelizmente, na maior parte do mundo é assim. Nos EUA, a maior parte das pessoas negras bem-sucedidas tem tom de pele claro. Na Nigéria não é assim. Pessoas vão falar disso, mas atrizes populares são escuras. Não é tão institucionalizado.

O seu objetivo foi fazer um livro com poucas nuances e que não fosse sutil?

Eu discordo. Eu acho que ele tem, sim, nuances. As pessoas acabam pedindo por nuances quando o assunto é algo tão complicado quanto a raça. Elas querem ficar confortáveis. Pessoas que não experimentaram problemas raciais não entendem o que significa uma nuance. Ifemelu é uma pessoa muito vulnerável, e ela está longe de ser perfeita, assim como o mundo todo. Ela é capaz de apontar racistas e atos racistas, mas ela não está apontando de um lugar de perfeição, e é isso que é a nuance.

Ifemelu tenta não ser tão sutil.

Certamente no blog, sim.

Você vê alguma solução?

Gostaria de saber. No livro tem um personagem que viaja ao Brasil e as pessoas olham estranho quando ele entra na fila da primeira classe no aeroporto. Eu acho que o primeiro passo é ter consciência do problema. Ninguém quer realmente admitir que isso é um problema.

Perguntei sobre raça no Brasil e fiquei assustada com quantas pessoas me disseram que não havia problemas. Todas elas eram brancas.”

Inclusive, aqui.

Quando fui ao Brasil (em 2008), amei o país, me senti confortável. Perguntei sobre raça e fiquei assustada com quantas pessoas me disseram que não havia problemas. Todas elas eram brancas. E pessoas que pareciam negras afirmavam que sim, existia um problema. É a história que o mundo conta sobre si mesmo, que existe esse maravilhoso ponto em que todo mundo é caramelo e está tudo bem. Não está.

Dá para perceber que o Brasil é mais parecido com a Nigéria do que com os Estados Unidos. Mas na questão racial, é o contrário.

Quando eu fui ao Brasil, lembro de ter comentado com amigos que gostei do País porque me fazia pensar que eu estava na Nigéria, mas as estradas eram melhores.

Mas você não notou esse problema por aqui?

Claro. Percebi. Olhando em volta, a infraestrutura do Brasil é meio parecida com a da Nigéria. Mas na infraestrutura social, é como nos EUA, não tem nada a ver com a Nigéria.

O que aconteceu na cidade de Ferguson é um caso recorrente, inclusive no Brasil. Você vê algum movimento que pode crescer a partir desse episódio?

Eu não sei. Neste país, se você é uma pessoa negra, você tem que ser perfeito antes de obter qualquer empatia humana ou simpatia.

O Brasil me fazia pensar que eu estava na Nigéria, mas com estradas melhores”

Uma das passagens mais emocionantes do livro é a cena em que Ifemelu e seus amigos celebram a eleição de Barack Obama. Cinco anos depois, isso ainda é uma emoção para você?

Eu sou uma grande admiradora de Barack Obama. Não sou uma das pessoas que dizem estar desapontadas com ele, porque nunca imaginei que ele fosse Jesus Cristo. Não esperei esse tipo de perfeição dele. Como presidente deste país ele tem feito coisas que admiro. Os programas de saúde, por exemplo. A questão sobre a política externa americana é que as pessoas ficam desapontadas porque ele faz algumas coisas que qualquer outro presidente americano faria. A primeira responsabilidade dele é proteger os Estados Unidos. Não concordo com algumas das políticas, mas não espero nada diferente. Também quero dizer que há algo nele que é humano. Sobre o que ele pensa da humanidade das pessoas. Eu admiro isso, porque não acho que os Estados Unidos tiveram isso com frequência nos seus presidentes.

Nos últimos 10 anos no Brasil, há por aqui ações afirmativas, como cotas raciais nas universidades públicas. Embora a maioria dos brasileiros aprove [62% em uma pesquisa Ibope/Estadão de 2013], há sempre pessoas que se opõem. O que você pode dizer sobre isso?

Quando pensamos nas razões desse tipo de coisa existir, é por causa de algumas políticas do governo. Pessoas foram excluídas da educação há 100, 60 anos, porque eram negras. Isso era uma política de governo. É algo que as pessoas deram um significado ruim, quando você fala de ações afirmativas, mesmo aqui nos EUA. Mas o governo foi responsável pela exclusão, então o governo deve ser responsável pela inclusão.

As ações estão funcionando por aí?

Eu acho que sim. Ainda há um longo caminho, mas as políticas têm feito possível que empresas de afro-americanos estejam um pouco melhor, e jovens têm oportunidades de estar em escolas melhores. Não é perfeito, mas é melhor do que nada.

Ifemelu tem um blog, e alguns personagens do romance se relacionam pelo Facebook. Mas há um personagem que usa a internet como uma espécie de ferramenta do ódio. O que você pensa sobre isso?

Eu não uso redes sociais. Eu acho que a internet pode ser uma coisa maravilhosa, e sou muito grata pela internet. Quando eu penso em lugares como a Nigéria, a rede dá acesso a muitas informações que as pessoas não possuíam antes. Mas do jeito que acontece, ela permite que as pessoas sejam covardes, se escondam por trás do anonimato, e sejam más. Não sei a solução para isso, mas de fato há muito. Mas soa meio inocente para mim. Você vai ao Instagram, e as pessoas podem ver o que quer que seja. Eu nunca vou fazer isso. Tudo depende muito do caráter, da maneira como você se coloca no espaço público.

AMERICANAH

Autora: Chimamanda Ngozi Adichie

Tradutora: Julia Romeu

Editora: Companhia das Letras (520 págs., R$ 54)

Acesse no site de origem: ‘Americanah’ é um alívio da ficção contra o racismo (Geledés, 18/09/2014)

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