30/06/2013 – Ministério da Saúde abre debate sobre redução da idade para mudança de sexo

30 de junho, 2013

(O Globo) Um tema potencialmente incandescente, discutido à margem do bloco de reivindicações que veio às ruas do país nas últimas manifestações, deve levar o governo federal a enfrentar um novo round de polêmicas. A minuta que trata da redução da idade para o processo de mudança de sexo, divulgada em abril pelo Ministério da Saúde, está sendo analisada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e, em dois meses, se tornará portaria do governo para regular o rígido protocolo que envolve a cirurgia de transexualização. Há controvérsia quanto à mudança, de 18 para 16 anos, da idade mínima para o início do tratamento, prevista no texto da minuta — a cirurgia seria feita a partir dos 18 anos. Em uma frente paralela, parecer do CFM, de 20 de fevereiro, autoriza o bloqueio hormonal em adolescentes a partir dos 12 anos, o que significa liberar o uso de medicamentos que impedem o desenvolvimento, na adolescência, das características sexuais.

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A discussão está acontecendo a portas fechadas entre representantes do Ministério da Saúde, do CFM e do Ministério Público (MP). Na portaria não deverá ser incluída a questão do bloqueio hormonal. A redução da idade para o tratamento pré-cirúrgico também enfrenta resistência, mas tende a ser mantida. A assistência médica garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) deve começar a ser oferecida a partir dos 16 anos (hoje, é a partir dos 18). Para casos excepcionais, em que o adolescente já tome hormônio ou faça tratamento de forma clandestina, a hormonização deverá ser autorizada.

Robertta Prata, hoje aos 18 anos, começou a tomar hormônio há cerca de três anos, escondido dos pais. Os contornos femininos logo apareceram e ela abriu o jogo para a família: desde os 14 anos sentia-se uma menina presa a um corpo de menino. Ao contrário de grande parte dos adolescentes transexuais, ela tem o apoio dos pais. Para ela, a antecipação da idade para o tratamento que leva à cirurgia de mudança de sexo seria um conforto.

— É o sonho de muitas pessoas da minha idade. Tenho certeza da minha decisão. É exatamente na adolescência que a descoberta sobre a sexualidade fica mais clara — diz Robertta, que trabalha com a mãe, ajudando a fazer bordados em sua loja, em Uberaba, no Triângulo Mineiro.

O Ministério da Saúde, que chegou a divulgar detalhes da minuta há um mês, confirmou que está em fase de diálogo com MP e CFM. O promotor Diaulas Ribeiro, do MP do Distrito Federal, um dos precursores da defesa dos direitos dos transexuais, conta os argumentos técnicos que usou na reunião para se posicionar contra a minuta:

— Saímos de lá com um acordo que não tem força jurídica, de que o adolescente transexual a partir dos 16 anos terá acompanhamento do SUS. Um outro ponto de consenso é: os que já fazem o uso dos hormônios ou mesmo se mutilam e têm menos de 16 anos não podem ser abandonados pelo sistema — afirma. — A questão é que temos uma lei de laqueadura tubária que proíbe qualquer procedimento de esterilização em homens e mulheres com menos de 25 anos, salvo se tiverem mais de dois filhos vivos. Essa lei proíbe laqueadura e vasectomia. Eu disse que, por vias tortas, estaríamos causando infertilidade em homossexuais — diz.

Nome de um projeto de lei de autoria do deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ) que se baseia em uma lei argentina e permite a mudança de nome dos transexuais, mesmo sem a cirurgia ou o uso de hormônios, o psicólogo transexual João W. Nery defende a suspensão da puberdade:

— A adolescência é o período mais difícil, começa-se a produzir estrogênio e, no caso dos homens transexuais, a tomar testosterona. Existe um choque, por isso há necessidade dos bloqueadores. E quanto mais cedo esses bloqueadores forem utilizados, melhor, para evitar os caracteres sexuais secundários — explica João, que foi Joana até os 27 anos e, ainda este ano, lança a terceira edição do seu livro “Viagem solitária, memórias de um transexual”.

A pesquisadora da área de bioética Miriam Ventura, da Uerj, argumenta que grande parte da batalha para a mudança corporal dos transexuais é fruto da falta de espaço social que o grupo tem. Portanto, avalia, as políticas públicas deveriam se concentrar em criar mecanismos de integração — entre eles a desburocratização da mudança da identidade civil.

— Essa definição na adolescência ainda não é clara. Tudo o que puder ser feito para não transformar de forma radical é melhor. O objetivo final do tratamento não deve ser a transformação corporal. E, sim, a integração da pessoa socialmente na identidade de gênero — diz Miriam, autora do livro “Transexualidade, Saúde e Cidadania”.

‘Eu me sinto menino desde os 3 anos’

Aos 3 anos João W. Nery lembra de ter se identificado como menino, mas viveu como mulher por mais 24 anos, quando fez a cirurgia de remoção dos seios e a histerectomia. Ele mudou a identidade civil por contra própria, abriu mão dos títulos que garantiam sua profissão de professor universitário e cometeu um crime frente às nossas leis, ao falsificar um documento. Aos 63 anos, João defende a antecipação do tratamento para adolescentes transgêneros, o que, segundo ele, ajudaria a evitar o mercado negro de hormônios.

Quando você se lembra de ter se reconhecido como transexual?

Eu me sinto menino desde os 3 anos. Só que, naquela época, não existia nem a palavra transexual. A primeira cirurgia ocorreu na Dinamarca, dois anos antes de eu nascer. Mas só na década de 60 é que se começou a falar sobre o assunto. Eu era um menino que sofria discriminação em todos os níveis, na escola primária eu sofria.

O que era mais sofrido?

Na hora de receber o presente do Dia das Crianças era uma pulseirinha, não a bola de gude que eu queria. Eu vivia sempre num mundo obrigatoriamente feminino (ele tem três irmãs). E eu sempre me sentia um ser diferente.

Como foi a adolescência?

Aos 16 anos, pela pressão social, pela baixa autoestima, e por eu ser uma mulher bonita, resolvi experimentar o que era esse mundo de mulher. Aí recebi todos os aplausos: roupas, presentes, salto alto. Ninguém me cobrava hora para chegar em casa, todos felicíssimos. Me arranjam um namorado, só que no primeiro beijo o namoro terminou. Nunca transei com nenhum homem. Quando ele tirou a roupa na minha frente, eu disse: ele é tudo o que eu quero ser. Eu sabia que era um teatro, é como se eu tivesse vivido meu momento de travesti. Eu queria dar um refresco, saber o que era ser aplaudido, sempre fui vaiado.

Como foi a sexualidade nesse período?

Minha primeira relação sexual foi com 19 anos. Os dois eram virgens, ninguém sabia o que fazer. Participei de todas as passeatas, fui enquadrado no AI-5. Aos 24 anos, eu dava aulas em três universidades e fazia mestrado na Gama Filho quando descobri que tinha uma equipe no Instituto de Endocrinologia, na Moncorvo Filho, que tinha começado a estudar transexualidade. Eu arrumei cirurgião para fazer a histerectomia, fiz seis meses de terapia, no fim ele não quis me dar um laudo. Minha mãe disse que era uma loucura: “Por que você não fica apenas como homossexual?” Minha mãe é uma mulher esclarecida, não é religiosa, é muito amorosa. Meu pai ficou sem falar comigo um mês. Eles estão vivos, com 90 e 95 anos e nunca deixaram de me apoiar. Eles me dão uma grana, porque estou desempregado até hoje.

O que acha das propostas em estudo?

No Brasil os hormônios são de forma injetável: são três marcas, sendo que duas, as mais baratas, estão em falta há três meses. O tratamento não deve ser interrompido porque isso causa problemas no metabolismo, quem faz fica desesperado e compra no mercado negro. A maioria dos pais não admite (a transexualidade). Muitas vezes o psicólogo não sabe tratar o que é. Ninguém entende nada, a ignorância é total.

Onde está a Joana, que nasceu há 63 anos?

A Joana não morreu, está sem pagar Imposto de Renda há 30 anos, sem votar há 30 anos. Está viva, mas como se estivesse desaparecida. Todos os meus documentos agora estão nesse novo nome masculino, que não tem qualquer currículo, qualquer histórico escolar.

Acesse o pdf: Por uma questão de liberdade de gênero (O Globo – 30/06/2013)

 

 

 

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