Buscas na internet tornam alvo mulher que pesquisa por aborto, por Giulliana Bianconi

04 de agosto, 2019

A HeartBeat International, organização antiaborto, vem usando programas desenvolvidos para coletar dados de mulheres que pesquisam na internet sobre clínicas de aborto

(Época, 04/08/2019 – acesse no site de origem)

Enquanto você lê esta coluna, há pessoas no Brasil pesquisando na internet sobre como interromper uma gravidez. Isso não é palpite, é uma afirmação embasada na observação de dados disponíveis no site de tendências de busca do Google (Google Trends), onde é possível ver o interesse por um determinado tema nas buscas gerais feitas por usuários em diferentes períodos de tempo.

Ao digitar “aborto” e selecionar os filtros “Brasil” + “última hora”, surge um gráfico que confirma que houve interesse no assunto. Se você fizer o teste agora mesmo, a linha vai estar lá, oscilando, ora mais alta, ora mais baixa, mas informando que há pesquisas sobre aborto na última hora. A observação desses dados, quando feita para períodos mais longos, pode trazer evidências importantes sobre o que se busca sobre o tema “aborto”.

No dia 02 de agosto, ao selecionar “período de 30 dias”, as quatro consultas relacionadas a “aborto” em destaque eram: “aborto com cytotec”, “como fazer um aborto”, “formas de aborto”, “chá de aborto”. Já ao buscar o termo para o período de sete dias, o resultado dos termos relacionados indicava o que pode ser um tanto da angústia e do risco que mulheres vivem ao procurar formas de interromper uma gestação num país que criminaliza essa escolha: “aborto com cabide” era o primeiro termo em ascensão relacionado.

Todos os dias, no Brasil e mundo afora, mulheres de diferentes classes, raças, idades e religiões decidem sobre seguir ou interromper uma gravidez indesejada. Como mostrou a Pesquisa Nacional do Aborto (2016) , interromper não é a escolha de poucas: 1 a cada 5 mulheres de até 40 anos já realizou aborto, e existe um perfil predominante, que são as mulheres de menor escolaridade, negras e indígenas.

Na busca por informações relevantes sobre o assunto, elas deixam rastros na internet. Se no site de tendências do Google os resultados das buscas feitas são anonimizados para o público geral, a depender do link que as mulheres cliquem enquanto estão pesquisando elas deixam ali dados de navegação e até mesmo dados pessoais que podem ser capturados. É o suficiente para que as organizações antiaborto passem a atuar, como revelou dias atrás uma importante investigação da Privacy International , organização não-governamental que tem base em Londres.

A Privacy mostrou que a HeartBeat International, organização antiaborto com imenso poder de lobby junto ao governo norte-americano, vem usando programas desenvolvidos para coletar dados de mulheres que pesquisam na internet sobre clínicas de aborto, rastreá-las e, na sequência, distribuir informações a uma rede de estabelecimentos que se fazem confundir com locais que realizam o procedimento clínico do aborto.

As mulheres são atraídas por anúncios ou mesmo por e-mails que chegam na sua caixa de entrada, com informações falsas relacionadas a esses estabelecimentos. Ao chegarem ao destino, encontram uma rede de disposta a dissuadi-las da decisão. Ao fazer uma pesquisa de centros referenciados pelo HeartBeat no Brasil, encontra-se 14 unidades do CAM (Centro de Referência e Atendimento à mulher) listadas, embora não apareçam como “filiados”. Em 2018, a repórter Andrea Dip revelou na reportagem publicada pela Agência Pública, “Armadilha para as mulheres”, a conexão do CAM com clínicas antiaborto.

Agora, a atuação do HeartBeat, com a lógica do uso do big data, traz um novo elemento sobre essa rede, a ser investigado. O contexto é problemático porque, primeiro, há questões de transparência e violação de privacidade a serem levadas em conta, assunto que no Brasil pode ser discutido à luz da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais . Segundo, a articulação pode ser considerada um ataque mediado por algoritmos aos direitos reprodutivos das mulheres. É que a autonomia para decidir pelo procedimento do aborto sem colocar em risco a própria vida é diferente entre mulheres, independentemente de quem está em países com leis que proíbem ou não o aborto.

No contexto brasileiro, as mulheres são atravessadas por questões objetivas, como ter ou não dinheiro para arcar com medicações abortivas ou com procedimento em clínica particular – todas as clínicas atuam na clandestinidade, mas existem umas com mais estrutura – e por questões subjetivas, como opressões sofridas no ambiente familiar ou social quando a possibilidade é refutada veemente, por crenças religiosas, principalmente. Quando a mulher é atraída, com informações falsas, a um estabelecimento antiaborto devido o alcance de uma estratégia de marketing amparada na coleta de dados pessoais, é hora de conectar os debates sobre direitos digitais e direitos reprodutivos.

Por Giulliana Bianconi

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