Criminalização do aborto: uma permanência indesejada, por Cláudia Maria Dadico

27 de agosto, 2021

(Brasil de Fato | 26/08/2021 | Por Cláudia Maria Dadico)

Num Estado Democrático de Direito, pluralista, necessariamente laico, como ponto de não retorno da modernidade, a criminalização do aborto ainda se sustenta, de acordo com as perspectivas contemporâneas do direito penal?

Uma das possibilidades de responder a essa pergunta é pensar-se a partir das funções ditas “preventivas” (prevenção geral e prevenção especial) das sanções penais e, com tal perspectiva, permitir que os conceitos normativos do direito penal sejam mediados por considerações de política-criminal.

Claus Roxin, um dos principais expoentes da concepção funcionalista do direito penal, afirma não ver problema algum em que, à semelhança de outras áreas do direito, tal como no direito administrativo, convivam de forma harmônica exigências garantistas e, ao mesmo tempo, categorias da teoria geral do delito constituídas, também, por considerações político-criminais.

A despeito das fundadas críticas que as concepções funcionalistas do direito penal têm recebido na atualidade, a criminalização do aborto não se sustenta, nem mesmo à luz de suas construções teóricas.

Isso porque, se a finalidade da criminalização é a diminuição ou a erradicação da incidência de abortos no Brasil, como objetivo de política criminal, dados empíricos mostram que sua manutenção contraria esse objetivo.

A Pesquisa Nacional do Aborto 2016, feita pela Anis, demonstrou que, somente em 2015, 417 mil mulheres realizaram aborto no Brasil urbano e, em extrapolação para todo o país, 503 mil mulheres, incluindo as mulheres que vivem foram dos centros urbanos. De acordo com dados do Ministério da Saúde, fornecidos durante as audiências públicas realizadas no Supremo Tribunal Federal, no bojo da ADPF 442, os procedimentos inseguros de interrupção voluntária da gravidez levam à hospitalização de mais de 250 mil mulheres por ano, cerca de 15 mil complicações e 5 mil internações de muita gravidade.

O aborto inseguro causou a morte de 203 mulheres em 2016, o que representa uma morte a cada 2 dias. Entre 2008 e 2018, foram duas mil mortes maternas por esse motivo.

Quanto a crianças e adolescentes, dados oficiais revelam que ocorrem no Brasil, em média, seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos que engravidaram após serem estupradas.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 demonstra que no ano de 2020, já sob o impacto da pandemia da covid-19 e das medidas de isolamento social, 73,7% dos estupros registrados no ano enquadram-se como “estupro de vulnerável” que têm como vítimas crianças e adolescentes. A maioria das vítimas está na faixa entre 10 a 13 anos (28,9%).

Dito isso, é possível perceber que o aborto é um fato da vida reprodutiva das meninas e mulheres brasileiras.

O que a criminalização do aborto faz é lançá-lo na marginalidade, na clandestinidade, deixando as mulheres que realizam o procedimento privadas de fiscalização sanitária e inibindo a busca por atendimento médico em caso de complicações ou sequelas.

Ou seja, a finalidade supostamente almejada pela criminalização, que é a diminuição do número de procedimentos de aborto, simplesmente não se concretiza com a proibição. Ao contrário, nos países em que as gestantes que buscam serviços públicos de aborto legal, como na Argentina e no Uruguai, as redes de apoio disponibilizam assistência psicológica, assistencial, médica e acompanhamento multidisciplinar para verificar sua real intenção, o que implica em diminuição significativa no número de procedimentos e, sobretudo, no número de mortes maternas e outras complicações e sequelas que afetam a saúde das mulheres que recorrem a procedimentos clandestinos.

Ora, uma criminalização descolada de sua finalidade expressa, pode ser compreendida como um desvio de finalidade, portanto. Se não atende a finalidades lógicas, decorrentes dos resultados da política-criminal que devem dar sustentação à proibição, a norma penal não apenas se esvazia de sentido, como passa a operar como desvio, ingressando na zona da ilicitude, da contrariedade ao direito.

Mas há ainda outros argumentos que lançam por terra a validade da criminalização do aborto, na perspectiva funcionalista do direito penal.

Alguém poderá indagar: então devemos abolir a criminalização do homicídio, já que as taxas de homicídios no Brasil não cessam de aumentar? De fato, a criminalização do homicídio não parece resultar na queda de suas taxas de incidência, o que confirma as conclusões já constatadas por sérios estudos criminológicos, como o de Albrecht, que demonstra, empiricamente, a inidoneidade da pena criminal como instrumento de prevenção de delitos. Nesse sentido, como lembra Nilo Batista, em geral, quando o direito penal entra em cena, já é tarde.

Mas, se atentarmos para a cifra oculta de homicídios – o número de ocorrências em contraste com o número de crimes que tiveram a investigação concluída com êxito e que efetivamente resultam em condenação – veremos que o déficit de eficiência do sistema penal brasileiro é enorme. Ou seja, mesmo o propalado efeito intimidador da proibição acaba sendo obscurecido pela ineficiência do sistema. Todavia, a abolição pura e simples da criminalização do homicídio, além de duvidosa constitucionalidade, diferentemente do caso do abortamento, não possui lastro em pesquisas empíricas específicas que demonstrem que a abolição do tipo penal contribua para a diminuição das ocorrências. O argumento é, portanto, falacioso.

No caso do abortamento, a permanência da criminalização, além de não contribuir para a diminuição do número de ocorrências, concretiza desvio de finalidade da norma incriminadora com consequências extremamente nefastas, colocando a vida e a saúde de milhares de mulheres em risco. Além das consequências jurídicas diretamente derivadas da condenação penal, há que se incluir nos cálculos funcionalistas efeitos secundários, tais como a dificuldade da inserção dessas mulheres no mercado de trabalho, derivada da perda da primariedade, por exemplo. Não devem ser excluídas do cálculo funcionalista, igualmente, as repercussões sociais da proibição penal.

A norma penal incriminadora, no caso, apenas por existir, já impede que as mulheres sejam adequadamente atendidas nas redes pública e privadas de saúde. Protocolos médicos são construídos a partir da proibição penal, com o intuito de dificultar o acesso ao aborto, mesmo nos casos em que a norma penal não o proíbe, como vimos recentemente no emblemático caso da menina de 10 anos no interior do Espírito Santo.

A mera existência da norma penal impede que as mulheres recebam orientação adequada e, sobretudo, gera efeito estigmatizador nas mulheres e meninas que realizam o procedimento ou que manifestam sua vontade de realizá-lo, assim como nas instituições e nos profissionais de saúde que devem prestar-lhes assistência.

Nas sábias palavras do juiz José Henrique Torres: “O abortamento deve ser enfrentado, mas fora do âmbito das políticas repressivas, e sim no âmbito das políticas públicas. Deve ser enfrentado com amor, mas não com punição”.

Nem mesmo os funcionalismos penais socorrem a criminalização do aborto.

Castanheira Neves afirma que “as sobrevivências são um fenômeno conhecido e há mortos que morrem devagar”. Já passa da hora de sepultar, de uma vez por todas, esse inconstitucional e anacrônico tipo penal.

*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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