Além dos mosquitos, as mulheres, por Debora Diniz

16 de maio, 2016

(Brasil Post, 16/05/2016) Géssica e Conceição vivem em uma cidade miúda da Paraíba, Juazeirinho. A região é do Seridó, nem tanto o Cariri ou o Sertão. Em 2015, as duas tiveram zika durante a gravidez e se atormentaram pela saúde dos filhos que esperavam. Géssica guarda o enxoval do filho morto. Conceição cuida da filha nascida com a síndrome congênita do zika, conjunto de problemas visuais, auditivos e neurológicos que vão além da microcefalia. Géssica e Conceição foram as primeiras mulheres a doar-se para a ciência. Se, hoje sabemos que o vírus zika causa essa síndrome congênita, um passo decisivo para esta descoberta foi dado pela solidariedade dessas duas mulheres.

Conheci Géssica para o documentário Zika, filme em que conto a história de cinco mulheres sobreviventes da epidemia em cantos remotos da Paraíba. Elas chegam aos montes para o já conhecido ambulatório de microcefalia do Hospital Pedro I em Campina Grande. A sala de espera das breves sessões de estimulação precoce reúne crianças resmungando, cansadas da viagem, e mulheres conversando sobre o impacto do zika em seus filhos. É um ambiente sempre carregado de muita angústia. A cada mês surge uma nova inquietação sobre os sinais e sintomas da doença: algumas crianças apresentam convulsões, outras não parecem enxergar ou ouvir bem. Aquilo que antes era “só a microcefalia” passou a ganhar corpo como uma “síndrome do zika”.

Antes de chegar na Paraíba, o zika era mais um vírus transmitido pelo mosquito que já faz parte da história do Brasil há muito tempo, o Aedes aegypti. Há quarenta anos convivemos com a dengue como parte de nossa vida. Avós e mães das mulheres agora com zika sentiram as dores da dengue ou do chikungunya. Sou nordestina de origem e conheci mosquiteiro como sinônimo de incômodo do sono na infância. Mas a tragédia da epidemia do vírus zika vai muito além do mosquiteiro, da bacia de água parada do vizinho, das camisas de manga longa ou do repelente. É sobre mulheres angustiadas com a maternidade.

Há uma tragédia humanitária em curso cujas vítimas são as mulheres nordestinas e rurais. Há meses deixamos de falar da epidemia. É como se não houvesse mais o espanto com os números da vigilância epidemiológica: são quase 7 mil crianças notificadas com microcefalia ao nascer, mais de mil delas com diagnóstico confirmado para a síndrome congênita do zika. São números aterrorizantes, mas as histórias individuais devem nos indignar pela injustiça que carregam. Alessandra casou-se aos 11 anos, tem quatros filhos e o mais novo, Samuel, nasceu com a síndrome do zika. O marido de Alessandra é auxiliar de pedreiro e os dois vivem na pobreza, desamparados pelas políticas sociais. No documentário, Alessandra esbanja maternidade, mas conta que pensou em “colocar ele para fora” quando recebeu o diagnóstico da doença.

O contato com essas mães me fez entender que os mosquitos são os vetores desta tragédia, mas as maiores vítimas são as mulheres. Não há ainda tratamento ou vacina para o vírus zika e sabemos pouco sobre as formas pelas quais o vírus opera para fragilizar o feto. O que sabemos, no entanto, é mais do que suficiente para afirmarmos que há direitos violados por esta epidemia esquecida. As mulheres se angustiam quando grávidas, algumas fogem do pré-natal para evitar um sofrimento inevitável e outras sobrevivem como cuidadoras de recém-nascidos dependentes.

Dar visibilidade à luta diária dessas mulheres foi uma das razões que me fizeram ir à Paraíba filmar Zika. O documentário segue comigo nesta semana para Copenhague, Dinamarca, onde participo da Conferência Women Deliver 2016. Maior encontro da década para discutir questões de planejamento familiar, saúde materna e infantil e direitos sexuais e reprodutivos, o Women Deliver reúne mais de 5 mil líderes mundiais, gestores públicos, ativistas e jovens de 150 países.

Para mim, a Conferência será mais do que uma plataforma para compartilhar os desafios enfrentados por essas mulheres. Será também a chance de explorar lições aprendidas e possíveis soluções para os problemas que vi na Paraíba. Para além do controle de vetor, garantir acesso a informação sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres será primordial no combate à epidemia. Grávidas ou mães, essas mulheres se mantêm à espera de que o Estado brasileiro e a sociedade as reconheçam como as principais vítimas da epidemia.

Débora Diniz – Antropóloga, professora de direito e documentarista

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