Médica defende parto normal com prazer, acolhimento e respeito a mães e bebês

10 de maio, 2015

(Rede Brasil Atual, 10/05/2015) Presidenta da Associação Artemis, Raquel Marques, diz que não basta reduzir o número de cesáreas, mas que é preciso acabar com a violência dos partos normais

A médica sanitarista e presidenta da Associação Artemis , Raquel Marques, afirma que o Dia das Mães, comemorado hoje (10), é um bom momento para se pensar sobre a maternidade e, principalmente, sobre que papel a saúde – pública e privada – deve exercer no momento em que mulher passa por um episódio sempre marcante, desde a gravidez até o parto. A Artemis trabalha pela promoção da autonomia feminina e pela erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres.

Em entrevista à jornalista Thelma Torrecilha, para a Rádio Brasil Atual, Raquel Marques fala sobre a importância do parto humanizado e do aleitamento materno para a saúde física e emocional da mulher e do bebê. Cita ainda as razões culturais e sociais que fazem do Brasil o país com maior número de cesáreas, procedimento responsável por grande número de mortes por complicações durante e no pós-parto. “No Brasil, o parto normal é visto como coisa de pobre. Quem tem dinheiro, quem pode pagar, tem que buscar os recursos tecnológicos mais sofisticados, e isso inclui uma cesariana”, diz a médica.

A busca de lucro e a lógica do mercado também têm grande responsabilidade sobre o elevado número de cesarianas praticadas no país. “Um parto normal demora, em média, 12 horas. Uma cesariana, em 40 minutos se resolve”, diz, para ilustrar que a ocupação dos centros obstétricos dos hospitais obedece a um padrão que persegue a máxima “produtividade”, numa questão que deveria ser tratada exclusivamente sob parâmetros humanitários.

O Brasil tem três vezes mais cesáreas do que recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS). No índice geral, 52% dos partos são cesáreas. No SUS, são 43%, e na rede privada, 88%.

Acompanhe a entrevista

Por que são feitas tantas cesáreas no Brasil?

Primeiro, vou falar da princesa Kate (Midleton, herdeira do reino da Inglaterra, que na semana passada deu à luz uma menina). Não tem como deixar de falar dela porque chamou muito a atenção que ela, muito bonita, entrou no hospital e, depois de dez horas, saiu linda, maravilhosa e de salto alto, com o bebê no colo. Ou seja, ela teve um parto normal, logo se recuperou, já saiu e foi para casa, algo muito diferente do que acontece com quem faz uma cesárea.

Por que tantas cesáreas são feitas no Brasil é uma questão multifatorial. Acho muito interessante esse parto da princesa Kate – excluindo algumas questões midiáticas –, que traz à tona uma coisa: no Brasil, o parto normal é visto como coisa de pobre. Quem tem dinheiro, quem pode pagar, “tem” que buscar os recursos tecnológicos mais sofisticados, e isso inclui uma cesariana. As pessoas, quando engravidam, se não têm plano de saúde, correm para fazer antes de engravidar para poder optar por uma cesariana.

Aqui no Brasil, a questão de ter recursos financeiros, ser de uma classe favorecida implica, normalmente, um parto cesariano. O fato de alguém da realeza inglesa, tão tradicional – com todas as críticas que a gente possa fazer a esse modelo –, ter um parto normal, com parteiras, numa estrutura muito mais próxima, fisiológica, reforça para todos nós que o parto normal não tem essa questão de classe social. Esse é um dos fatores pelos quais a gente tem tantas cesarianas aqui no país.

Primeiro, um senso comum de que isso é o melhor, que é o que se deve buscar. Depois, tem a formação médica mesmo que, nos últimos 30 anos, foi se encaminhando para conhecer menos como lidar com intercorrências no parto com baixa intervenção, e tudo foi se encaminhando para a cesariana.

Qualquer diferença ou problema que exista, mesmo que não seja um problema grave, mas qualquer coisa que fuja da normalidade, resulta em cesariana. E também há interesses econômicos que vão entrando. A gente vê serem criados hospitais gigantes, que precisam ter suas hotelarias constantemente ocupadas, com planejamento de quem entra, gestantes a cada dia, leitos de UTI neonatal que precisam ser ocupados. Cesarianas promovem mais prematuridade e usam mais leitos de UTI.

É uma complexidade que vai desde a vontade da mulher ao senso comum, passando pela ideia de que o corpo da mulher existe para deleite dos homens. Tem um certo mito de que o parto normal possa torná-la indesejável sexualmente. São várias ideias que levam a esse cenário.

É difícil encontrar um médico que incentive um parto normal…

Acho que o parto a mulher escolhe, seja normal ou cesárea. Foi essa a opção que meu médico me deu na minha última gestação. As duas primeiras foram de parto normal, e a terceira foi cesárea porque eu escolhi.

Os partos normais feitos nas maternidades Brasil afora são muito violentos. Não basta diminuir o número de cesáreas, é preciso fazer um parto humanizado de maneira geral…

A professora Simone Diniz, da Faculdade de Saúde Pública da USP, diz ‘chega de parto violento para vender cesárea’. Hoje existe esse paradoxo. A cesariana expõe mães e bebês a um risco maior de letalidade e complicações. Mas, ao mesmo tempo, a alternativa que se tem é o parto vaginal violento, assustador, com muitas intervenções, solitário.

Então, as mulheres ficam em uma situação difícil. Entendo muitíssimo aquelas que queiram fugir de um parto vaginal violento e escolhem uma cesariana. Entre passar por 14 horas de “tortura” ou meia hora numa cirurgia, ainda que se corra mais riscos, às vezes, é isso mesmo. É muito compreensível.

A gente tem que atacar essas duas frentes. Não basta falar em reduzir cesarianas. Nós precisamos ter partos prazerosos, com acolhimento, respeito, com as pessoas que você gosta próximas, a lei do acompanhante sendo respeitada, sem intervenções, com a possibilidade de andar livremente, se alimentar, que as pessoas expliquem o que está acontecendo, que é o que não costuma acontecer.

As mulheres ficam isoladas, em leitos, sofrendo dores, não podendo fazer barulho, sob pena de sofrerem represálias, sem poder comer, sem poder andar. É muito difícil. Sem contar as questões físicas mesmo, não exatamente do parto, mas as intervenções que são feitas.

Tem que andar nessas duas frentes. A gente precisa de uma redução das cesarianas, porque a mortalidade materna, no Brasil, é vergonhosa, e um dos fatores que leva a isso é o excesso de cesarianas desnecessárias, mas as mulheres precisam, hoje, de um parto vaginal, para as que escolherem, respeitoso, prazeroso, interessante.

Esse pensamento e a coragem da mulher para o parto humanizado é construído ao longo de todo o pré-natal?

O parto humanizado implica tratar a pessoa com respeito à individualidade daquela pessoa, à história, considerando o que ela precisa naquele instante. Não adianta tratar as parturientes como uma linha de montagem, todo mundo igual. Isso implica um parto humanizado, que pode ter o desfecho de cesariana, ou vaginal, indifere.

Eventualmente, a mulher quer uma cesariana, ok. É uma individualidade dela, por qualquer razão, seja por fobia ou desejo. A autonomia da mulher e o direito de escolha estão na base da questão da humanização. O único senão que faço é que, nesse discurso de que “a mulher quis”, várias coisas precisam ser pesadas.

Quando a gente diz que existe uma situação de “epidemia de cesarianas” no  Brasil, os médicos sempre respondem que são as pacientes que assim querem. Mas, também, há uma construção desse desejo no decorrer da gestação. “Seu bebê é grande, talvez o hospital não esteja disponível se vier a nascer em tal data, o cordão está enrolado…” Tem uma construção desse desejo. Essa é a crítica que a gente faz quando se diz que “a mulher escolheu”. Escolheu mesmo?

Tem que ser muito bem informada, ter uma avaliação clínica verdadeira, para que a mulher possa fazer a escolha do parto com base em informações verdadeiras, tendo consciência de como está…

E também que se tenha um termo de consentimento, livre e esclarecido, que informe sobre os dois cenários e as suas implicações. Se você escolher esse caminho, as implicações são essas, os riscos são esses, é assim que vai acontecer, assim que é o caminho. Os dois têm prós e contras, e você que decida. A autonomia, sem dúvida, é o fundamento, mas com transparência, clareza e fatos.

Qual a importância da doula para o parto humanizado? Ela é essencial? Antigamente eram as parteiras que apareciam nas pequenas comunidades e faziam os partos…

A doula e a parteira são figuras diferentes. O parto sempre foi um evento feminino. Antigamente, as irmãs se reuniam com a mãe, com a parteira. Uma trazia água, outra, o pano. Essas mulheres que ficavam em volta, cuidando, faziam o papel da doula. Só que a gente perdeu isso na nossa civilização. Ficou tudo muito individualizado e a gente, hoje, contrata alguém que faça esse papel do carinho. A doula faz esse papel do carinho, do contato individualizado, que vai te trazer água, ver o que você precisa e te fazer massagem.

A parteira continua sendo a parteira. No interior do Brasil, ainda existem parteiras tradicionais. Nas cidades, existem as parteiras formadas por faculdades, que são as obstetrizes, além das enfermeiras obstetras. A doula tem o papel de acolhimento, e é muito importante para que a mulher consiga passar pelas fases do parto, a dor, a insegurança, tudo isso de uma maneira tranquila e precisando de menos intervenção.

Hoje, nas normas internacionais e nas nacionais, a doula é mencionada e colocada como importante na equipe do parto. É recomendado fortemente que ela esteja presente na cena do parto, cientificamente, inclusive. A presença da doula, de alguém que vai estar lá e que não é o marido, que não é um médico, é simplesmente a presença de uma mulher leiga que vai estar cuidando para que você se sinta confortável para seguir essa jornada.

A mãe, irmã ou uma amiga próxima pode fazer o papel da doula para a mãe que não tem condições de pagar uma?

Pode sim. A gente tem feito um trabalho muito grande para tentar formar doulas voluntárias – alguns hospitais têm –, que seria a essência maior da ideia da doula. São aquelas pessoas da comunidade, experientes, muitas vezes mulheres mais velhas, que já tiveram vários filhos que, portanto, podem cuidar de outras.

Vários hospitais no Brasil já têm esse modelo. São pessoas que vão atender no SUS e que vão cuidar das gestantes que lá chegam com carinho. Mas, eventualmente, em não existindo, podem ser, sim, a irmã, a amiga, a mãe. O importante é que tenha alguém olhando e cuidando só de você.

O Brasil tem três vezes mais cesáreas do que recomenda a OMS. No índice geral, 52% dos partos são cesáreas. No SUS, 43%, e na rede privada, 88%. Parece que a discussão tem sido feita em relação às mulheres que têm acesso a planos de saúde…

Os índices são altos nos dois, mas é pior nos planos de saúde. Tem várias razões para isso. Primeiro que, no SUS, a mulher é atendida por plantonistas. Esse plantonista vai atender às gestantes que estiverem lá, no momento do plantão dele, e, se alguma ainda não estiver pronta para parir naquele instante, ele vai embora, outro assume. É mais possível respeitar o tempo da fisiologia.

No sistema privado, as mulheres têm muito essa questão do vínculo com o médico, com a médica, exclusivo. Ela quer ser atendida por “aquele” profissional. Isso faz com que às vezes se torne difícil conciliar a agenda do profissional, do consultório, com a sua vida pessoal, e isso acaba estimulando, por exemplo, o agendamento de cesarianas.

Sem dúvida, tem também a questão de ‘eu estar pagando’, portanto, ‘eu escolho’. E no sistema privado tem também a lógica do máximo lucro. Redução de custos e máximos lucros. E os hospitais também entram nessa conta. Há hospitais, por exemplo, que descredenciam profissionais que atendam o parto normal, porque levam muito tempo.

Um parto normal demora, em média, 12 horas. O meu primeiro filho demorou 43 horas para nascer. Uma cesariana, em 40 minutos se resolve. Quando se pensa em ocupação dos centros obstétricos, por exemplo, é contraproducente e antieconômico. Então, essa pressão também está presente nos hospitais.

O parto humanizado também é importante para a saúde emocional do bebê

Emocional e física. Uma das descobertas mais recentes sobre isso é a questão da ‘colonização do corpo do bebê pelo microbioma da mãe’. Então, obviamente a via vaginal é cheia de bactérias e – isso que pode até soar nojento – isso é importantíssimo para o desenvolvimento imunológico do bebê. Já existem estudos que mostram que as crianças que nasceram de cesariana, por não terem sido colonizadas pelas bactérias da mãe, mas por serem colonizadas por bactérias hospitalares, têm todo um desenvolvimento imunológico diferente, que implica, as vezes, obesidade, diabetes, asmas, doenças autoimunes. Então, as implicações de uma mudança que fazemos tem vários desdobramentos.

Eventualmente, mesmo quando o bebê nasce numa cesariana, mas vai pro colo da mãe, tem o olho no olho, mama na primeira hora, isso minimiza uma série de impactos que isso possa ter, por ter mudado a rota. Mas além de nascer numa cesariana, passar por uma série de procedimentos, não vai pro colo da mãe, fica num berçário. A gente minimiza essa primeira hora.

Pra nós, adultos, uma hora não é nada, mas pra quem acabou de chegar no mundo, perceber o mundo como um lugar seguro, quentinho, ouvir a voz que você estava acostumado a ouvir… ou não: chegar num lugar frio, onde as pessoas enfiam coisas no seu nariz, onde fica chorando sem acolhimento. Tudo tem consequências, sim.

As campanhas são suficientes para esclarecer dúvidas sobre o parto humanizado, ajudar na escolha da mulher para desvendar esses mitos e medos?

A informação é fundamental. As campanhas existem, precisam continuar, mas a engrenagem é enorme e resistente. Ela passa por deputados que foram eleitos por uma bancada de planos de saúde, que não têm interesse de que se mude algumas coisas, e também por profissionais que atuam há 30 anos dessa maneira e não querem se reciclar nessa altura do campeonato. Há um Judiciário que pensa que o bom mesmo é a cesariana e o parto normal é ruim, além de novelas que passam imagens horríveis.

Então, para desmontar esse esquema, demora bastante tempo. A informação é importante, mas tem outras frentes também. Eu acredito que hoje, uma das frentes mais importantes é a frente legal, a questão das pessoas conhecerem seus direitos e não pautar como um desejo, mas ter o direito à escolha. Quando você vai no cardiologista, ele não te opera na hora, ele te explica antes, já que é complicado, ele te explica tudo o que vai acontecer, o porque sim ou não dos métodos, pra você assinar o papel escolhendo o que vai ser feito.

Com a gestante, ninguém explica nada, porque acham que não vai entender. Essa mentalidade de que gestante, parto, deve deixar na mão do profissional e ele decide, precisa mudar, tanto pelo lado do profissional quanto das mulheres.

Você tem um exemplo de algo que esteja dando certo?

Exemplo bacana é o Hospital Sofia Feldman, no SUS de Minas Gerais. É um hospital com boa vontade dos gestores, que conseguiu mudar algumas práticas. Lá existem doulas voluntárias, são formadas pessoas da comunidade para trabalhar como doulas gratuitamente para toda gestante que chega.

Hoje, esse hospital tem assistência domiciliar de parto pelo SUS. Então, as mulheres que querem ter parto em casa pelo SUS dispõem de uma equipe que vai dar assistência em casa, numa ambiência mais gostosa, e os profissionais, com os cuidados básicos, de olhar no olho, de não tratar a pessoa como número, essas coisas que despersonalizam as pessoas. Esse é um exemplo.

Na iniciativa privada, existe um grupo de Unimeds no interior de São Paulo que está conseguindo transformar um modelo: eles tinham um índice altíssimo de cesarianas, e em um ano conseguiram baixar 40%, mudando praticas, orientando para que os profissionais deem indicações claras. As mulheres que chegam lá já pedindo cesariana passam por um aconselhamento para entender. São pequenos detalhes que fizeram uma enorme diferença. Além de baixar os números, baixaram a prematuridade, as complicações e a morte materna, que é o que importa mais.

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