Mulheres relatam violência no parto durante audiência em SP

17 de novembro, 2014

(Terra, 17/11/2014) Violência obstétrica atinge pelo menos uma a cada quatro mulheres no Brasil; assunto foi tema de audiência pública no MP-SP na qual vítimas deram seus depoimentos

Há dois anos, a secretária Luciana Periqui, de São Paulo, viu o parto do primeiro filho ganhar contornos de um filme de terror. Era para ser o melhor dia de seus então 25 anos; se tornou, como ela própria define hoje, “uma cicatriz a se tratar pelo resto da vida”. “Só espero que não tenha passado por isso em vão”, diz.

A publicitária Bia Fioretti, de 52 anos, conta que sofreu violência obstétrica nos partos de seus dois filhos (Foto: Janaina Garcia/Terra)

Luciana conta ter procurado um local de apoio à gestante para realizar o parto natural, planejado por ela e pelo marido; após 18 horas em trabalho de parto, sem sucesso, foi encaminhada a um hospital público na zona sul de São Paulo. Lá, diz ter sido tratada com hostilidade já na triagem, dada a transferência – mas não só. “Me mandaram duas vezes calar a boca, porque eu estava gemendo de dor e queria meu marido perto de mim. Na sala de parto, onde me deram ocitocina (medicamento usado para induzir o parto), senti a cabeça do bebê sair na primeira contração; na segunda, ele nasceu”, diz. “Minha vagina ficou segmentada, meu marido foi impedido de acompanhar o parto. Quando conseguiu entrar, estava muito exaltado, chorando. Ele virou motivo de chacota até entre os seguranças do hospital, que prometeram arrumar uma chupeta e dar a ele”.

A secretária Luciana Periqui, de 27 anos, considera o parto de seu primeiro filho “uma cicatriz” com a qual terá de conviver (Foto: Janaina Garcia/Terra)

Hoje, o filho de Luciana tem dois anos e oito meses. Ele é saudável. Quem carrega as histórias de dor e trauma é a mãe, que só conseguiu entender que passara por uma situação de violência obstétrica um ano depois, ao escrever sobre a experiência que a atormentava, afirma, diariamente. A justiça negou a ela a reparação por danos morais duas vezes. Mesmo assim, nesta segunda-feira, a jovem deu mais um passo: expôs sua história a uma plateia de homens e mulheres –algumas, vítimas como ela – em uma audiência pública sobre o tema realizada no Ministério Público Estadual.

Durante um dia inteiro, médicos, promotores, defensores públicos, professores universitários, representantes do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo), da Câmara dos Deputados, do Ministério da Saúde e da Prefeitura debateram o tema que nem sempre é claro para a vítima, mas que há décadas vem sendo registrado em hospitais públicos e privados do Brasil. Ao final, as próprias vítimas da violência obstétrica deram seus relatos –acompanhados por uma plateia ora apreensiva, ora emocionada com os detalhes das histórias.

A audiência pública no MP-SP reuniu representantes da sociedade civil e vítimas de violência obstétrica (Foto: Janaina Garcia/Terra)

Assim como Luciana, segundo os debatedores, ainda são realidade de gestantes os casos de violência verbal, de transgressão à lei que permite a presença de um acompanhante (vigente desde 2005) e à que coloca à mulher a escolha pelo tipo de parto e o local onde vai querer parir (vigente desde 2007). Outros casos também relatos citam a pressão na barriga da gestante, nos partos naturais, para supostamente facilitar a saída do bebê –prática há anos desaconselhada pelos organismos internacionais de saúde. Nesse contexto, aliás, o Brasil novamente segue exemplo do que não se fazer: é o campeão mundial de realização de cesáreas, com 56% de todos os partos realizados, quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda que esse índice não avance os 15%.

Estudos recentes (de 2010) da Fundação Perseu Abramo revelaram que, a cada quatro mulheres, ao menos uma já passou por alguma situação de violência relacionada ao parto –estatística que, entretanto, considera uma subnotificação alta.

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“Há que se atuar muito ainda na formação profissional e cultural na área da saúde; além disso, fizemos um pedido ao governo para que haja campanhas permanentes sobre a necessidade do parto natural, e do parto humanizado. O erro já começa na concepção de a mulher que quer fazer a cesárea com o médico ‘dela’, e ‘só com ele’: é preciso confiar em uma equipe, e em um sistema onde tenha no mínimo um profissional que segure a mão da mulher. A cultura do aleitamento materno levou três décadas para mudar, e tenho certeza que as mudanças de agora estão mais aceleradas – logo a violência obstétrica não mais será possível”, disse a coordenadora geral de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, Maria Esther Vilela.

De acordo com a coordenadora, o desafio maior parece ser nos cursos de medicina. “Se formos nas escolas de medicina, não vamos aprender sobre o bom parto. Nelas, se pratica há mais de 20 anos ações anunciadas aos quatro cantos, mundo afora, que não se deve fazer. É portanto um desafio de mudança e de cultura, e principalmente na formação médica, seja na graduação ou na pós-graduação, na residência médica, pois as pessoas que cometem a violência obstétrica, à exceção dos abusos que aparecem, não o fazem porque são más, mas porque foram ensinadas a fazer dessa forma — a gravidade dessa violência, até mais que as outras, é porque ela é institucionalizada em órgãos e instâncias públicas que, por sua natureza, deveriam proteger as pessoas.”

A representante do Cremesp na audiência, a obstetra Roseli Nomura, considerou de importância “extrema” a violência obstétrica, a qual, assegurou, não apenas é repudiado pela instituição, como “tem sido pauta” de debates internos. “Estamos preocupados não só em chamar a atenção para isso, que tem sido pauta nossa, como também quanto à formação do próprio medico, que tem de ter uma formação mais humanista a uma série de fatos que têm sido denunciados”, resumiu.

Autor do projeto de lei que, ainda em trâmite na Câmara, institui o parto humanizado e prega o combate à violência obstétrica, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), presente à audiência pública, classificou a abordagem do assunto como uma maneira de enfrentar o que ele avalia como “uma cultura da dominação masculina presente em todos nós, inclusive nos hospitais”. “Enfrentar isso é tratar da autonomia da mulher sobre seu próprio corpo”, considerou.

“Nossos vizinhos estão um pouco mais avançados, tipificando essas condutas de violência obstétrica até mesmo como crime”, observou a defensora pública Ana Rita Prata, que citou o caso da Venezuela. “Aqui o atendimento desumanizado está tão naturalizado que a maioria das mulheres nem se dá conta de que passa por isso – seja pela violência verbal, seja por ficar o dia todo sem comer, seja pelo descumprimento da lei do acompanhante”, enumerou. “Seja no pré-parto, no parto, no pós-parto e em situações de abortamento natural ou provocado”, complementou.

Publicitária relata violência em dois partos

Entre as vítimas de violência obstétrica, a publicitária Bia Fioretti, 52 anos, relatou ter passado por situações do gênero duas vezes –no nascimento do casal de filhos hoje com 22 e 17 anos. Em ambos, foi submetida a parto normal.

“No primeiro parto, não houve o tratamento acolhedor de que eu gostaria. Tomei ocitocina por muitas horas e, quando fui para a sala de parto, todo mundo estava mais preocupado com o médico – um velhinho com uma quantidade de partos que encheria um ginásio do Ibirapuera – do que comigo: era uma espécie de aula de professor, sabe? Minha filha estava com cabeça virada, e, com o fórceps, nasceu toda roxa, com afundamento de crânio –pedi para ver minha placenta, e todo mundo ria. Me esqueceram na sala de parto por 45 minutos, e quem me achou foi uma faxineira, já com o centro cirúrgico vazio. Mal vi minha filha; isso só aconteceu seis horas depois”, relatou.

Conforme a publicitária, a experiência no parto do segundo filho não foi diferente: “Foi muito pior. A única coisa que a enfermeira fez foi procurar minha veia, de novo para tomar ocitocina, de novo em um hospital privado. Me amarraram, rodaram a cabeça do bebê dentro de mim e, quando ele nasceu, fiquei surpresa de estar vivo. Eu já tinha entregue os pontos. Mas percebi que aqueles profissionais realmente não sabiam fazer de outro jeito – a violência é desse protocolo intervencionista. Depois disso tudo meu relacionamento começou a se degringolar, entrei em um processo anoréxico, tive muita dificuldade de amamentar. Há 11 anos comecei a conhecer a humanização do parto e a trabalhar com comunicação em saúde, e isso está sendo a minha cura. É como se pagasse a minha frustração e a minha dor quando eu comunico as pessoas que não precisa ser desse jeito.”

Janaina Garcia

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