No país da abstinência, o lobby anti-aborto ataca novamente, por Simony dos Anjos

17 de fevereiro, 2020

Que os cristãos têm sérios problemas de sexualidade, Foucault já nos alertava na década de 1980. O modo como a religião cristã, com seus moralismos, controla os corpos dos sujeitos cristãos é uma das grandes preocupações do autor. Hoje, acho que ele teria que brisar muito para entender o que acontece em terra brasilis. Em tempos de “Quem deu, deu. Quem não deu, não Damares”, transar é pecado e abortar também. Se não transar, não aborta. Mata-se dois coelhos com uma cajadada só.

(Coluna Féministas/Justificando, 17/02/2020 – acesse no site de origem)

Mas, nesse caso, teria que ter um modo também de combater os estupros maritais, o abuso sexual infantil e toda submissão do corpo de mulheres a homens que não querem pagar pensão – “para não bancar vida da mãe do filho” – mas não querem usar camisinha ou rachar os custos da pílula anticoncepcional. Sabe, quando eu tinha uns 10 anos, em 1996, eu imaginava que em 2020 já haveria excursões para a Lua e o máximo que o Brasil atual nos proporciona é ministro nazista, ministra anti-sexo e um lobby anti-aborto protagonizado por homens.

Eu adoraria escrever sobre outros assuntos que me interessam mais, como Jesus – um cara bacana, mas que tem um fã-clube de doer. Mas estou, aqui, indignada com a reportagem do El país, intitulada Lobby antiaborto se espalha pelos parlamentos estaduais brasileiros. Inspirados na constituição da Frente Parlamentar mista em Defesa da Vida e da Família, em março de 2019, grupos de parlamentares estaduais estão se organizando para criarem frentes parlamentares nas Assembleias Legislativas que sejam “pró-vida”. Segundo essas reportagens já existem frentes formadas no Acre, Alagoas, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe. E, nos estados de Rondônia e Espírito Santo, há uma articulação em andamento.

Dentre os grandes articuladores dessas frentes, que buscam modificações de constituições estaduais em favor da proibição do aborto, está o movimento civil Movimento Legislação e Vida, liderado por Hermes Rodrigues Nery. Essa movimentação tem como base os mesmos motes da PEC 29/2015, a “PEC da vida”, e a PEC 181/2015, “ PEC do Cavalo Tróia”. Ou seja, busca incluir nas constituições estaduais a ideia de “direito à vida desde a concepção”, como propõem as referidas PECs ao indicarem uma mudança no Artigo 5º da constituição. Dentre aberrações desumanas, estão propostas como expor mulheres vítimas de estupro a vídeos de processos de abortamento, ao serem atendidas por um serviço psicológico que objetivará convencê-las a não interromperem a gravidez.

Enquanto, essas frentes avançam contra os direitos das mulheres, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos defende que a melhor forma de evitar gravidez precoce e ISTs é a abstinência sexual de jovens. A Damares é a Mãe exagerada do Governo, aquela mãe fervorosa, que faz várias trapalhadas, mas tem o objetivo de proteger. Esse papel que ela interpreta, faz com que a ideia da abstinência soe como uma mãe que quer o melhor para os filhos: que apenas gozem de sua sexualidade, quando estiverem maduros.

Óbvio que é isso que todos querem. Mas, políticas públicas não se faz com que se quer, mas com a realidade que se tem. A pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos sustenta que ensinar métodos contraceptivos para esse público (11 a 15 anos), normaliza o sexo na pré-adolescência e ainda diz que, “comportamentos antissociais ou delinquentes” e “afastamento dos pais, escola e fé” Não podemos esquecer todo o ataque à educação sexual e de gênero, na qual esse lobby conservador quer impedir que se ensine como ter uma vida sexual saudável e responsável, preparando realmente esses jovens para a vida sexual ativa.

Um dos grandes engodos dessa narrativa é o de que se ensinar sobre sexualidade é ensinar apenas sobre sexo, quando na verdade é ensinar como funcionam os corpos dos meninos e das meninas, os hormônios, o ciclo menstrual e, principalmente, sobre respeito ao corpo do outro e ao seu próprio corpo. Incitando a abstinência, o comunicado que se passa para esses jovens é o de que se engravidarem ou se infectarem com alguma Infecção Sexualmente Transmissível (ISTs), a culpa é deles por terem transado. Não, a culpa é da desinformação e desse tabu cristão que se coloca sobre o sexo.

Termos como “ideologia de gênero” e “pela família” colocam a população o tempo todo contra a escola, o único lugar de fato onde se fala sobre isso. Ao contrário do que disse o Presidente Bolsonaro, não se deve rasgar da cartilha de saúde do adolescente as páginas sobre sexualidade. Não, Bolsonaro, papai e mamãe não vão ensinar sobre sexo, porque eles também não foram ensinados. O que se repete é proibir e deixar que os adolescentes não se preparem com informação, sem contar os casos que os próprios familiares se aproveitam dessa falta de conhecimento para abusar dessas crianças e adolescentes.

Assim, associar essas agendas à proteção da família, convoca nos brasileiros, dos quais 83% são cristãos (censo 2010), o sentimento de autoproteção e defesa de quem se ama, apela para o sentimental e sabemos que uma agenda de Políticas Públicas não se faz jogando com os sentimentos da população, se faz com números, dados e especialistas. Portanto, entendemos o porquê do ataque ao Censo e ao IBGE. Afinal, se não se tem dimensão do problema e de qual medidas são eficazes, pode-se apelar ao senso comum.

Simony dos Anjos é graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade.

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