‘Sem descriminalização do aborto, mulheres são condenadas ao silêncio e à vergonha’

23 de março, 2015

(O Globo, 23/03/2015) Senadora responsável por lei que legalizou término de gravidez no Uruguai chega ao Brasil nesta segunda para debater o tema

“Quando os políticos resistem a aprovar uma lei, devem prestar atenção no que a sociedade lhes diz. E o que a sociedade diz é que, todos os anos, milhares de mulheres abortam, abortaram e abortarão, aprovem os políticos a lei ou não”. O raciocínio é de Constanza Moreira, senadora uruguaia que é uma das articuladoras da lei que, em 2012, descriminalizou o aborto. Membro da Frente Ampla, partido do ex-presidente José Mujica, ela chega nesta segunda-feira ao Brasil, onde participará de encontros ao lado do coletivo Duas Gerações de Luta pelo Aborto Legal e Seguro. A agenda, em Brasília e no Rio, inclui reuniões com representantes da Secretaria de Políticas para as Mulheres e parlamentares.

Quanto durou a batalha pela legalização do aborto no Uruguai?

A batalha legal e jurídica no período recente começou com o retorno da democracia. Projetos de lei foram apresentados em 1985, 1991, 1993, 1998, 2001, 2006 e 2011. No total, foram apresentadas seis iniciativas, incluindo a que foi finalmente aprovada. O projeto apresentado em 2006, foi aprovado em 2008, mas o Executivo vetou o capítulo referente ao aborto. A lei atual, chamada “Interrupção Voluntária da Gravidez”, terminou aprovada em 2012. Precedentes no país remontam à década de 30, quando o aborto ficou em vigor durante quatro anos, até ser penalizado em 1938. A lei da “Saúde Reprodutiva”, aprovada em 2008 e parcialmente vetada pelo então presidente Tabaré Vázquez, foi regulamentada e, na prática, o sistema público de saúde cuidava da mulher no período pré e pós-aborto. O uso de Misoprostol (remédio abortivo) foi difundido durante esse tempo. As mulheres tinham de comprar a pílula no mercado negro, mas, em seguida, eram atendidas no sistema de saúde.

O Uruguai tem sido um exemplo para outros países da América Latina em questões como aborto e drogas. O que permitiu ao país adotar leis mais progressistas?

Em primeiro lugar, a sua condição de país laico. O Uruguai é o país mais laico da América Latina. O partido que governou durante a primeira metade do século XX, o PC, foi caracterizado por seu perfil anticlerical, com links com a maçonaria. Esta visão laica, que permitiu a separação precoce da Igreja e do Estado, contribuiu enormemente para o desenvolvimento dos direitos das mulheres. O baixo peso da Igreja Católica no Uruguai contribuiu para isso. Em estudos de opinião pública, a variável mais correlacionada com a posição sobre o aborto é a religiosidade do povo. Baixa adesão religiosa e a adoção de valores laicos são então parte da explicação. Em segundo lugar, a chegada da Frente Ampla ao governo, e sua condição não só de partido majoritário, mas sua grande penetração política e cultural entre as classes médias e os setores populares, são fatores decisivos. Em terceiro, o peso das organizações sociais, de organizações feministas ao movimento sindical, deve ser levado em conta. Em quarto lugar, o próprio presidente Mujica, de orientação liberal e libertária sobre os aspectos relacionados com os direitos das pessoas, foi fundamental para o avanço desta agenda.

Quantos abortos legais foram realizados desde que a lei foi aprovada? Houve complicações ou morte?

Os últimos dados oficiais indicam que têm sido realizados 556 abortos por mês desde a aprovação da lei. Foi registrada uma morte materna por aborto desde então, mas se tratou de um aborto praticado fora do sistema de saúde.

Esse número seria um aumento em relação ao período antes da lei?

Antes da aprovação da lei, era muito difícil obter números confiáveis com os quais se possa fazer comparações, porque até então a estimativa se refere a uma prática ilegal, clandestina. Em pesquisas de fertilidade, o aborto induzido nunca superou 5% das gestações, mas este dado não é confiável.

A lei uruguaia permite à mulher fazer o aborto no primeiro trimestre de gravidez, depois de passar por um comitê de ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais. Este poderia ser um modelo para o Brasil?

A existência de um Serviço de Saúde Sexual e Reprodutiva no serviço de saúde público e privado já existia antes da lei. No entanto, uma condição imposta pelo Partido Independente para dar o seu consentimento à votação da lei foi o de a mulher ter de apresentar seu caso perante o serviço e depois passar por cinco dias de reflexão. Na minha opinião, a mulher deveria ir ao seu médico, ser encaminhada para um ginecologista e começar imediatamente o tratamento. Muitas vezes os procedimentos de saúde são lentos. A espera de cinco dias para iniciar o tratamento, muitas vezes, traz mais problemas do que algo positivo.

Hoje, as uruguaias enfrentam algum tipo de dificuldade para fazer o aborto legal?

Creio que hoje os problemas são de dois tipos. Por um lado, a resistência das pessoas a procurar o sistema de saúde, que em alguns casos pode ser pouco amigável. No Uruguai, há lugares onde a “objeção de consciência” dos médicos para fazer o aborto chega a 100%, e as mulheres têm de procurar outro local para fazer o procedimento. Em alguns lugares do interior do país, há muito poucos ginecologistas que aceitam orientar as mulheres nessas situações. Muitas vezes, a assistência no sistema de saúde é complicada, o tratamento não é o melhor, há resistência dos próprios cidadãos para consultar os médicos, e os tempos de espera não cooperam. O segundo problema é que o aborto não foi completamente despenalizado. A interrupção voluntária da gravidez nas primeiras 12 semanas é permitida, mas não fora desse período. Recentemente, uma mulher de 21 anos, que trabalhava como prostituta e era a principal fonte de renda para sua família, foi presa por fazer um aborto clandestino aos cinco meses de gravidez. Ao continuar a gravidez, ela não seria capaz de apoiar financeiramente sua família por vários meses. Duas outras mulheres que a ajudaram também foram processadas.

Há críticas de que a lei é baseada em questões de saúde, sem abordar claramente o direito de a mulher decidir sobre o seu corpo. O que acha disso?

O aborto é praticado somente pela vontade da mulher. Nesse sentido, ela tem liberdade para decidir sobre o seu corpo. No entanto, os argumentos sobre o “direito à vida” levaram muitos defensores do aborto a empunhar razões do tipo sanitárias, para não opor um direito ao outro. Pessoalmente, acho que não existe qualquer direito dos não nascidos, e é um absurdo jurídico usar esse argumento. Mas este foi um dos caminhos que o debate tomou.

O que o Uruguai pode ensinar ao Brasil sobre a questão do aborto?

Que a descriminalização do aborto colabora com a saúde e a segurança das mulheres. Que as mortes maternas por aborto induzido caem, e a mortalidade materna como um todo também. Que, depois de descriminalizar o aborto, a sociedade como um todo se beneficia porque o próprio fato de ter existido um debate ajudou a informar muitos cidadãos. Talvez o mais significativo é que, quando tentaram revogar a lei, a grande maioria da sociedade optou por não seguir esse caminho. Quando os políticos resistem em aprovar uma lei, devem prestar atenção no que a sociedade lhes diz. E o que a sociedade diz é que todos os anos milhares de mulheres abortam, abortaram e abortarão, aprovem os políticos a lei ou não. E, se não aprovam leis, eles estão condenando as mulheres ao silêncio, à vergonha, às consequências para a sua saúde, e, ao que é pior, à solidão.

No Brasil, o debate sobre o aborto é polarizado. A solução é a proibição ou a liberação completa? Há um caminho intermediário?

Sim, eu buscaria um caminho de “causas” (do aborto). Mas o caminho de causas não se refere apenas à violação, ou malformações, ou em risco de vida para as mulheres. Incluiria causas que tenham a ver com economia, dificuldade para levar uma gravidez adiante quando existe uma rejeição clara da mulheres a fazê-lo, as razões psicológicas, a falta de apoio dos pais ou do cônjuge etc. Você pode começar com causas abertas. Este caminho é mais “suave” do ponto de vista de um confronto legislativo.

O atual presidente de nossa Câmara dos Deputados foi eleito com uma plataforma de oposição ao aborto. Você acha que isso terá um impacto nas negociações sobre a questão?

Sim, isso influencia, mas não é determinante. Se houver conscientização sobre a questão, e se as maiorias parlamentares trabalharem, pode-se avançar sobre o assunto.

O tema ainda é evitado pelas autoridades brasileiras, mesmo depois de a morte de mulheres que fizeram aborto clandestino terem ganhado repercussão. Como é possível mudar isso?

Conscientizando a sociedade brasileira das mortes causadas por aborto feito em condições de risco. Mostrando o testemunho de mulheres. Fazendo com que mulheres e homens que acompanhem esta questão falem. Acima de tudo, defendendo a liberdade dos indivíduos para decidir, e enfatizando que não abortar é uma decisão intransferível da pessoa, mas forçar outra pessoa a aceitar este ponto de vista é tomar partido por uma moral determinada. E o Estado não tem moral para aplicar, o Estado é neutro a partir dessa perspectiva, e tudo que tem a fazer é proteger os direitos e os cidadãos. Se o Estado não protege a decisão da mulher de não levar uma gravidez adiante, está faltando com seu dever de proteger a saúde da população. Ao mesmo tempo, todos sabemos que obrigar uma mulher a manter uma gravidez que não quer é uma terrível violência contra ela.

O que você acha da punição criminal às mulheres que abortam?

Não é fácil para uma mulher decidir fazer um aborto. Se ela ainda é punida por isso, está sendo castigada duas vezes. Há uma “pena” moral, e também uma sanção penal. Muitas mulheres que optam pelo aborto já têm filhos. Se elas são presas, essas crianças ficam sem uma mãe. É uma outra maneira de vitimar um núcleo familiar com problemas.

Dandara Tinoco

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