Fe-menino (ou por que devemos discutir gênero), Rafael Revadam

21 de outubro, 2015

(Brasil Post, 21/10/2015) Eu nasci com a voz fina. No começo, os parentes acreditavam que o problema se resolveria na adolescência. Mas não. “O Rafael respira pela boca, deve ser isso”. “Não deve ser desvio no septo? Quem sabe se ele tirar a amígdala?”. Então, vieram os gostos diferenciados. Eu não curtia esportes, preferia os livros. Não saía na rua, ficava em casa. Na adolescência chegaram os primeiros melhores amigos e os trejeitos. Eu era afeminado. E os outros, sempre os outros, sabiam mais de mim do que eu mesmo.

Leia mais: Ainda em discussão no Brasil, educação de gênero é realidade na Argentina desde 2006 (Opera Mundi, 11/10/2015)

Num certo natal, a cena aconteceu como se fosse capítulo de novela. Eu estava saindo de um banheiro meio escondido e peguei um coletivo de tias e conhecidos conversando. O tema era eu. Supostamente, alguém tinha me visto “transando com um negão na praia”. Assim, com todo o racismo e homofobia presente numa única frase. Com tom de deboche e indignação de quem se achava no direito de julgar a minha vida. E caluniá-la. Comecei a prestar a atenção nos familiares e encontrei mais comentários preconceituosos em outros parentes. A partir deste momento decidi que não viveria para me encaixar aos padrões e agradar aos outros. De que adianta? Eu viveria pra mim.

Se os familiares agridem, os desconhecidos violentam. Logo no meu primeiro emprego, aos 16 anos, percebi que as pessoas diferentes eram reconhecidas no olhar. E eu era diferente. Os primeiros assédios vieram no transporte público. No começo, você reluta a acreditar. Eram homens que poderiam ser seu pai tentando encochadas, insinuando posturas sexuais, ostentando volumes e induzindo o seu corpo a participar. E quando você cai em si, a primeira atitude é pensar em defesas. Coloca a mochila para a frente, coloca para trás. Empurra a pessoa. Desvia. No horário de pico, quando existem mais pessoas por metro quadrado e o assédio se agrava, a solução fica no contorcionismo. Nas poucas vezes em que gritei, consegui constranger os tarados. Mas fui motivo de risos para todos os outros presentes. E por mais surreal que isso possa parecer, acontece com mais frequência do que possa imaginar. A última vez foi no começo dessa semana.

Durante o meu período de exclusão e reaproximação das pessoas, conheci gente que passava por situações parecidas. A agressão por ser o que é pode vir em diversas formas. Machismo, racismo, homofobia, transfobia. Em grupos do Facebook, fui apresentado à questão de igualdade de gênero. Pessoas que defendiam um ensino igualitário, sem percepções do masculino ou feminino, sem padrões e sem condenações a quem fugia dos estereótipos. E eu comprei a luta primeiramente não pensando em um mundo melhor. Eu comprei por mim.

Ao pesquisar sobre os Planos Municipais de Educação já aprovados no País, tive a desagradável surpresa de que todos excluíram as questões de gênero. Entre as alegações, estava o medo de se criar banheiros únicos para homens e mulheres. Isso é uma apologia ao assédio sexual, disseram uns. Não é de Deus, repetiram outros. A ignorância de não se colocar no lugar do outro atropelou uma oportunidade de combater preconceitos enraizados na nossa sociedade. E, infelizmente, atropelará os planos restantes a serem aprovados por aí.

A nossa genitália é o juiz. É ela quem decide como cada um deve se comportar. Machão ou frágil, padrão decidido em sorteio. O resultado da Tele Sena biológica sai em cromossomos. E você não pode fugir do seu prêmio. A vestimenta da conduta padrão é o uniforme pra viver em coletivo. E não, não seja diferente, não quebre o padrão, não se liberte do mundo. Ou eles tentam te converter, ou se veem no direito de te esmagar.

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