Flávia Piovesan: Massacre de Campinas foi feminicídio

05 de janeiro, 2017

Em artigo publicado nesta quinta-feira, a secretária nacional de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, classifica como feminicídio o massacre ocorrido numa noite de réveillon em Campinas; “na ordem contemporânea, caracterizada por crescentes hostilidades, intolerância e pelo fortalecimento do discurso do ódio, hoje, mais do que nunca, há que se expandir, potencializar e difundir a ideologia transformadora dos direitos humanos, como racionalidade de resistência e a única plataforma emancipatória de nosso tempo”, diz ela

(Brasil 247, 05/01/2017 – acesse no site de origem)

Em 19 de dezembro, um ataque em uma feira de Natal em Berlim deixou 12 mortos e 48 feridos. O principal suspeito, o tunisiano Anis Amri, de 24 anos, foi morto pela polícia de Milão. O Estado Islâmico reivindicou a autoria do atentado. Na mesma data, três fiéis muçulmanos foram feridos em uma mesquita em Zurique — o autor do ataque foi um suíço, de 24 anos, posteriormente encontrado morto. Em 31 de dezembro, o Estado Islâmico reivindicou a autoria de outro ataque, agora na Turquia, resultando na morte de 39 pessoas. No mesmo dia, 12 pessoas eram assassinadas em Campinas, em trágica chacina movida pelo crime de feminicídio. Antes, em 25 de dezembro, ao evitar violência homofóbica em face de travestis, Luiz Carlos Ruas, vendedor ambulante, foi espancado até a morte, em estação de metrô, em São Paulo.

A arena contemporânea lança o desafio do enfrentamento do crime de ódio pautado na ideologia dos nacionalismos, da xenofobia, do racismo, do sexismo, da homofobia e do repúdio ao outro. Avançam doutrinas da superioridade baseadas em diferenças, sejam de origem, nacionalidade, raça, etnia, gênero, diversidade sexual, idade, dentre outras categorias. A diferença é tomada como fator a aniquilar direitos, em nome da supremacia de uns em detrimento de outros, na perversa ideologia a hierarquizar humanos.

Violações de direitos humanos são fomentadas por um forte componente cultural: alimentam-se de uma ideologia de negação de direitos. A violência do racismo, do sexismo, da xenofobia, da homofobia e de outras formas de intolerância é nutrida pela cultura da violência, que nega ao outro a condição plena de sujeito de direito.

O combate à cultura da intolerância requer o fortalecimento da cultura do respeito às diversidades. O combate à cultura da violência requer o fortalecimento da cultura da paz. O combate à cultura da negação e violação de direitos requer o fortalecimento da cultura da afirmação e promoção de direitos.

Daí a urgência em potencializar e difundir a ideologia emancipatória da Declaração Universal de 1948, que celebrou o seu aniversário também em dezembro. Surgiu como resposta às atrocidades cometidas no nazismo: se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a esperança de sua reconstrução. A Declaração endossa a universalidade dos direitos humanos, ao reconhecer que a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para ter direitos. Repudia a equação nazista que condicionava a titularidade de direitos à pertença à raça pura ariana, amparada na doutrina da supremacia racial. Reconhece a dignidade humana como um componente intrínseco de toda e qualquer pessoa, por sua unicidade, diversidade e valor infinito. Endossa a indivisibilidade dos direitos humanos, ao adotar uma perspectiva integral de direitos, aliando ineditamente o valor da liberdade ao valor da igualdade.

Louvando o legado histórico da Declaração Universal, em 14 de dezembro foi celebrada a solenidade da entrega do prêmio de direitos humanos a entidades e pessoas por sua capacidade de luta e entrega à causa da proteção e promoção dos mesmos. O ritual teve início com uma singela homenagem a dom Paulo, que partia naquela mesma data, guardião incansável da causa dos direitos humanos, cardeal da liberdade, exemplo de coragem na luta obstinada por justiça em face do arbítrio e em defesa dos mais vulneráveis.

Ao envolver 15 categorias (compreendendo a proteção aos direitos da população LGBT, de pessoas idosas, mulheres, pessoas com deficiência, povos indígenas, quilombolas e tradicionais, crianças e adolescentes, defensores de direitos humanos, respeito à diversidade religiosa, dentre outras), a premiação invoca a feição transversal dos direitos humanos. Cumpre ao menos três objetivos: a difusão da ideologia emancipatória da Declaração; o justo reconhecimento a trajetórias pessoais e institucionais em sua extraordinária contribuição à salvaguarda da dignidade humana; e o fortalecimento da cultura de direitos humanos, ao identificar e impulsionar práticas transformadoras.

A história dos direitos humanos não é linear, mas marcada por luzes e sombras, por avanços e recuos. É fruto de processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana, como ensina Herrera Flores. Os direitos humanos invocam o idioma da alteridade: ver no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena.

Na ordem contemporânea, caracterizada por crescentes hostilidades, intolerância e pelo fortalecimento do discurso do ódio, hoje, mais do que nunca, há que se expandir, potencializar e difundir a ideologia transformadora dos direitos humanos, como racionalidade de resistência e a única plataforma emancipatória de nosso tempo.

Flavia Piovesan é professora de Direito da PUC/SP e secretária especial de Direitos Humanos

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