“Na AL, muitas mulheres são porta-vozes da mentalidade machista”, diz ativista e cineasta Maria Galindo

27 de janeiro, 2016

(Folha de S. Paulo, 27/01/2016) Um dos movimentos feministas mais valentes e criativos da América Latina, o Mujeres Creando, vem justamente de um de seus países mais pobres e no qual os crimes contra as mulheres atingem os mais altos índices da região, perpetuando a complacência da própria cultura ancestral indígena, que concentra o poder nos homens e às mulheres resta a submissão à vida familiar e à maternidade.

A ativista e cineasta Maria Galindo, que mostra filme hoje em São Paulo (Foto Divulgação)

A ativista e cineasta Maria Galindo, que mostra filme hoje em São Paulo (Foto Divulgação)

Hoje, em São Paulo, sua líder, Maria Galindo, exibe o filme “13 Horas de Rebelião”, em que trata da conivência estatal boliviana com estupros e violações, da dificuldade de discutir leis de aborto no país e de proteção às mulheres de baixa renda, além da exclusão das mulheres bolivianas da política.

Galindo, que já expôs na Bienal de São Paulo, é muito crítica ao atual governo de Evo Morales, a quem acusa de ser conivente com a violência contra a mulher e de oferecer benefícios apenas àquelas que têm filhos e se encaixam no modelo tradicional patriarcal. Galindo também critica os comentários machistas pelos quais o atual presidente boliviano já é conhecido. Na Bolívia, em geral, é notícia por transformar suas ações em performances políticas, como interromper concursos de Miss, que em sua opinião promovem a “coisificação” da mulher, e por ter preparado uma cena para a visita do papa Francisco ao país. Junto com outras ativistas, disfarçaram-se de freiras grávidas, para denunciar o que consideram abusos da Igreja contra as mulheres desde sempre.

Em entrevista ao blog, Galindo fala do feminismo na América Latina, do referendo na Bolívia em fevereiro e de como vê os avanços das políticas de gênero no Brasil. Seu filme poderá ser visto hoje, quarta-feira (27), das 20h às 23h (o filme é seguido de debate), na Casa do Povo (rua Três Rios nº252, Bom Retiro, São Paulo). O evento é grátis.

Leia, abaixo, a entrevista.

Folha – Quando conversamos em 2014, às vésperas da reeleição de Evo Morales, falamos do esquecimento em que havia caído o projeto de lei de aborto na Bolívia e do fato de as políticas de gênero terem sido direcionadas a um conceito tradicional de sociedade patriarcal. Houve alguma mudança desde então?

Maria Galindo – A despenalização do aborto na Bolívia não apenas está pendente como foi postergada definitivamente. O país encerrou 2015 com 130 feminicídios, o que significa que a cada três dias se mata uma mulher na Bolívia. Nós falamos de feminicídio como crime de Estado, porque o Estado garante a impunidade, por meio de uma perícia policial mal-feita, negligente e corrupta. A violência machista contra a mulher é também uma pendência desse governo porque não se destinaram recursos para combate-la, além dos obstáculos que existem e que fazem com que seja impossível o acesso real das mulheres à Justiça. Principalmente o acesso das mulheres pobres.

Folha – Você considera o modo como se tratam as políticas de gênero, na América Latina, de algum modo limitador?

Galindo – A teoria de gênero e de igualdade de gênero é parte da agenda internacional de organismos internacionais que impuseram receitas liberais aos países, mas essas políticas não supõem transformações reais da situação das mulheres em nosso continente. Os mais pobres entre os mais pobres são as mulheres e, em geral, as mulheres que são jovens mães. As teorias de gênero despolitizam o campo da compreensão das mulheres e reduzem as mulheres a uma cota biológica dentro do poder patriarcal.

Deveríamos entender que não há uma situação comum às mulheres e que as diferenças de classe, idade, estado civil e opção sexual supõem formas de opressão diferentes.

Deveríamos, então, fazer uma análise mais complexa sobre o lugar das mulheres em nossa sociedade.

Folha – A matéria publicada na revista “Economist” desta semana comenta a performance das Mujeres Creando com as “freiras grávidas” durante a visita do papa Francisco à Bolívia. Pode contar como foi a experiência e a recepção?

Galindo – Quando o papa visitou Equador, Paraguai e Bolívia, o Mujeres Creando foi a única organização que questionou essa visita. Fizemos uma performance nas catedrais de La Paz e de Santa Cruz de la Sierra em que nos vestimos de freiras que estavam grávidas.

Questionamos o fato de que a Bolívia conquistou, em sua última Constituição, o Estado laico, mas esse princípio está sendo pisoteado pelo próprio Estado. O poder da Igreja na Bolívia é muito forte, tanto da Igreja católica como das seitas cristãs.

Fomos duramente reprimidas e estou segura de que nossa mensagem chegou ao Vaticano, porque nossa ação teve grande repercussão mediática. Foi um grande atrevimento, porque propusemos questões sobre liberdade sexual, privilégios eclesiásticos etc.

Folha – No filme que se verá hoje em São Paulo, é muito impactante o momento em que são mulheres as que pedem que as mulheres nuas saiam de cena. Como vê o machismo feminino na Bolívia hoje?

Galindo – Na Bolívia, como em muitos países da região, há muitos setores de mulheres muito conservadoras, e que são verdadeiras porta-vozes de uma mentalidade machista. Ainda assim, acredito que nossa voz tem grande repercussão entre mulheres jovens e entre mulheres dos setores populares do país.

Folha – Em alguns países da região têm havido alguns avanços. No Peru aprovou-se uma lei contra o assédio de rua, na Argentina houve manifestações de multidões (“Ni Una Menos”) e no Brasil se protestou contra retrocessos propostos por uma bancada evangélica do Congresso. No geral, você é otimista com o quadro geral do feminismo na região?

Galindo – Sim, sou otimista. Sou autora da tese de que a despatriarcalização se baseia numa revolta subterrânea e invisível das mulheres em nosso continente.

Vemos de forma massiva a luta pela sobrevivência e a emancipação econômica, centenas de milhares de mulheres que alcançam cada vez mais vagas em universidades, colégios e institutos públicos, fazendo da educação um instrumento de emancipação, ainda que os conteúdos dessas instituições educativas sejam o padrão patriarcal que sempre privilegiou os homens.

As cifras de abortos clandestinos nos indicam que as mulheres deixaram de assumir a maternidade como um mandato incontestável. Esses dados e muitos mais indicam uma sublevação importante no mundo das mulheres.

Folha – O filme foi exibido em muitos países. Em geral, como avalia sua recepção?

Galindo – Na América Latina, eu o projetei na Argentina, no Chile e no Peru e o impacto foi interessantíssimo, pois houve muita simpatia e muito debate em torno das propostas. Me surpreendeu que a denúncia sobre a mulher estuprada por um político importante do partido do governo, na Assembleia Legislativa de Sucre, tenha causado interesse, quando pensei que essa seria uma passagem muito local.

Acho que as mulheres latino-americanas estão falando um mesmo idioma, há uma latência muito importante que a imagem acompanha muito bem.

Folha – Como foi sua última passagem por São Paulo, durante a Bienal? Acha que os problemas apontados pelas mulheres brasileiras são muito distintos dos que veem no resto do continente?

Galindo – O grande apoio dos mais diversos grupos de mulheres à marcha realizada na abertura da Bienal foi o que mais me marcou da visita ao Brasil. Me impressionou muito a importante articulação cultural que há na periferia de São Paulo. Creio que houve incapacidade do governo de Dilma Rousseff de dar uma resposta há isso.

Também vi uma oligarquia intacta e muito poderosa.

Folha – Qual sua opinião sobre o referendo do próximo dia 21? As pesquisas dão uma diferença muito apertada, e indefinida, entre o sim _pró nova reeleição_ e o não _que significará o fim do mandato de Evo Morales em 2020. O que crê que pode acontecer?

Galindo – As políticas de cooptação dos meios de comunicação são muito asfixiantes. Temos não apenas os meios estatais como os paraestatais, além de uma perseguição velada a jornalistas críticos.

Com a nova Lei de Telecomunicações, Evo pretende fechar muitas rádios, e entre elas provavelmente a nossa, a do Mujeres Creando. A luta pela liberdade de expressão será seguramente uma das mais fortes neste ano na Bolívia.

Sobre o referendo, o cenário eleitoral revela uma polarização muito forte. Evo pode realmente chegar a perder o referendo, ou ganhar por uma porcentagem mínima, mas isso provocará uma mudança na forma de governar, mas ao mesmo tempo, o estilo atual dessa administração tem sido o de anular os espaços de dissidência e de debate.

Sylvia Colombo

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