“Nós mulheres rurais somos a sustentação política e econômica do país”, diz militante

28 de julho, 2017

Elizete da Silva, militante do Movimento da Trabalhadora Rural do Nordeste, luta contra o machismo e a violência

(Brasil de Fato, 28/07/2017 – acesse no site de origem)

“Comecei minha trajetória política em um grupo de Igreja [Católica] nos anos da década de 1970, em Pombos, e depois em um grupo da Comissão de Justiça e Paz, no Recife”. É assim que Elizete Maria da Silva, 63 anos, natural de Pombos, Zona da Mata Norte de Pernambuco, começa a contar sua história. A atuação política sempre deu o tom aos rumos que sua vida levou e é por aí que ela começa a partilhar sua trajetória.

Militou próxima da Igreja Católica na época da repressão do Regime Militar e fugiu para não ser presa. Anos mais tarde foi dirigente sindical, do sindicato que liderou a criação; se aproximou da luta feminista no Fórum de Mulheres de Pernambuco; criou uma organização de mulheres em seu município, o Centro das Mulheres de Pombos; participou de lutas urbanas através do Fórum de Reforma Urbana, apesar de ser trabalhadora rural.

Mas foi no Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE), no qual hoje integra a coordenação em Pernambuco, após ter sido diretora por quase 10 anos, que se encontrou como mulher, como mulher negra, como mulher trabalhadora rural e como pessoa.

“Eu era trabalhadora rural mas não dizia porque tinha vergonha. Achava que era uma apresentação que me desqualificava como ser humano. Mas no movimento [MMTR-NE], percebi a importância politica, dessa classe nesse país. Porque se não fizesse meu trabalho [de trabalhadora rural], quem botava comida na mesa do povo? Quem levava um pão de qualidade para quem está na cidade? Quem tinha condição de contribuir com uma alimentação saudável? Nós somos a sustentação política e econômica deste país, nós mulheres rurais”.

Elizete é mulher, negra, feminista, mas nem sempre se reconheceu assim. Hoje é feliz com as lutas que encampou, com as conquistas que mulheres rurais como ela e o restante do País conquistaram a partir de sua atuação política e de muitas outras companheiras. No entanto, esse não foi um caminho simples e muito menos fácil, foi um caminho dolorido, que vivencio sofrimento, violência, mas também conquistas pessoas que foi alcançando. Continua sua luta por ela e por outras mulheres, para que se avance e não se retroceda no campo dos direitos, como tem visto no atual momento político pós golpe. Ao lembrar de suas conquistas, se emociona com os desafios enfrentados ao longo da trajetória. “Sou uma pessoa que tenho uma trajetória de muito sofrimento, de muitas decepções, mas também de muitas vitórias. Porque quando você descobre quem é você e o que você quer, é muito gratificante”, conta.

Militância

Elizete nasceu em 1953, filha de trabalhadores rurais, no mesmo ano da ativista e militante negra, falecida o ano passado, Luiza Helena de Bairros. Ano também em que foi aprovada a criação da Petrobras, que hoje o golpe quer privatizar. E ano da greve dos 300 mil em São Paulo, grande mobilização dos trabalhadores do setor têxtil. São Paulo foi a cidade que acolheu Elizete por alguns anos quando fugiu de Pernambuco para não ser presa pelo regime repressor da Ditadura Militar.

“Tinha um companheiro que tinha sido preso, sabíamos que eles andavam atrás de nós. Na época tava lendo um livro de Jorge Amado, enterrei o livro e disse a mãe que ia me esconder, que a polícia tava atrás de mim. Aí fui pra Recife, fiquei numa Igreja, em um internato de freiras. Passei uns três meses lá até a poeira baixar. Depois viajei para São Paulo. Saí num ônibus às duas horas da madrugada”, lembra.

Foram cerca de dois anos e meio em São Paulo. A chegada lá foi difícil. Foi para ficar na casa de uma das irmãs, mas a irmã não queria. Temia pela vida da família, já que Elizete saiu fugida da polícia em Pernambuco. Um dos irmãos teve que intervir, ameaçando que também iria embora se ela não ficasse. Mas também não demorou muito para que lá se articulasse politicamente novamente junto à Igreja. “Eu fui pra missa e lá encontrei uma prima distante e que era envolvida com esse trabalho e ela me levou”, diz.

A atuação se dava em favelas ao redor do ABC paulista, como na construção de casas populares. Mas ninguém se conhecia muito bem e muitas vezes não sabia os nomes verdadeiros uns dos outros, estratégia para se protegerem.

No ano de 1980 voltou para casa dos pais, em Pombos. E pouco tempo depois casou, obrigada pela mãe. “Ela queria que um homem me colocasse cabresto. E eu não queria casar, porque sempre me senti livre, porque lutava contra o sistema. Naquela época eu não tinha noção das questões de gênero, de raça, mas eu lutava contra as demais injustiças”. Ela casou mas sempre quis a separação, que veio apenas nove anos depois de “muito sofrimento e violência”.

Na volta para Pombos, se envolveu na luta sindical. Passou a trabalhar no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Vitória de Santo Antão, cidade vizinha a sua. Pombos ainda não tinha Sindicato e Elizete foi uma das pessoas que articulou sua fundação, se tornando dirigente sindical. Concomitante a atuação sindical, começou a participar de atividades do Fórum de Mulheres de Pernambuco, e a partir daí também fundou o Centro das Mulheres de Pombos.

Nesse período, a atuação junto às mulheres em Pombos teve um foco na questão da saúde da mulher. Percebiam que no município índice de câncer uterino era alto. “Muitas mulheres trabalhavam com manipueira da casa de farinha, ficavam muito tempo sentadas e a mandioca quando você raspa libera um gás que ia direto para as partes íntimas da mulher, já que elas trabalham com as pernas abertas. Tinha muita mulher com corrimento, com feridas e mulheres com cancêr”, lembra explicando às condições de trabalho a qual muitas mulheres trabalhadoras rurais estavam expostas.

Ser mulher

Elizete sentia o peso do machismo em sua vida todos os dias, mas no movimento sindical isso tinha muita força. “Para ser respeitada, incorporei um personagem que não era eu. Andava armada, fazia treino pra capacitar minha pontaria, eu era um sujeito que a sociedade tinha criado, e criei pra me livrar da violência que era o mundo sindical com as mulheres”.

Em 2000, foi expulsa do Sindicato que ajudou a fundar por causa de uma denúncia feita por ela que envolvia outro dirigente e o irmão dele que trabalhava no INSS no município. Mais uma vez sentiu o peso do machismo. A expulsão do Sindicato a desestabilizou emocionalmente e a fez entrar em uma crise, porque passou a refletir sobre si mesma.

“Quando fui expulsa do Sindicato, vim perceber no que eu tinha me transformado, e isso foi uma confusão, um conflito dentro de mim, de personalidade”. Foi nesse momento que encontro o MMTR-NE e que passou a desconstruir a Elizete que havia criado para impor respeito. Mas o caminho não foi fácil, nesse tempo se separou do segundo casamento e pensou, inclusive, em tirar a própria vida várias vezes. “Foi uma época amarga. Eu queria voltar a ser a Elizete extrovertida e alegre que eu era, mas eu tinha uma amargura por tudo que a sociedade me transformou”.

A militância junto a outras mulheres rurais contribuiu para que ela se encontrasse, se percebesse com mulher e encontrasse caminhos para voltara construir sua felicidade. “Sou uma pessoa hoje sei o que quero pra mim e para os diversos sujeitos que compõem essa sociedade. E não tenho medo de me assumir, mulher, de me assumir negra, chefe de família, liderança que defende o direito de viver, de dizer que essa sociedade é machista, violenta que nos ataca todos os dias”.

Sobre o racismo é enfática. “Acho que esse planeta só acaba com o racismo no dia que ele for destruído. O racismo está no olhar, no estar, no lugar onde você está, na sua condição econômica, na sua atuação, é entranhada hoje. O Brasil é um país muito desrespeitoso e discriminatório na questão racial”. Elizete é mulher de luta. Sua militância não para. “A atuação política me dá muito prazer”, diz sem nem precisar dizer, quem a ouve já percebe o que a move. Hoje, como militante MMTR-NE, integra a coordenação da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo estado de Pernambuco, integra o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), representando as trabalhadoras da agricultura familiar, integra também o Conselho de Patrimônio Genético, do Ministério do Meio Ambiente.

Perguntada sobre o que gosta de fazer, quando não está atuando politicamente, diz que gosta de ficar em casa fazendo duas coisas que lhe dão muito prazer. “Uma coisa que eu amo fazer é ficar em casa cuidando de plantas e costurando”, conta empolgada. Explica que quando era jovem, costurava, fazia de um tudo, mas a mãe não queria que ela cobrasse pela costura que fazia. Elizete que não achava aquilo justo, já que não podia cobrar nem a linha, perdeu gosto pela costura. Mas nos últimos anos voltou a costurar e apesar de, segundo ela, não costurar tanto quanto antes, adora fazer consertos em roupas e comprar tecidos para fazer lençol. “Passo a noite fazendo isso, perco a noção do tempo”.

Com uma trajetória emocionante, Elizete afirma que para se reconhecer como mulher, viveria tudo outra vez. “Não importa onde a gente esteja, e como a gente esteja o importante é não desistir nunca. Precisamos lutar naquilo que acreditamos, temos que ir em frente e em luta. Nunca devemos baixar a bandeira e o inimigo não morre, por isso temos muito para fazer e a vida a curta”.

Catarina de Angola; Edição: Monyse Ravena

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas