O gênero do holerite no Brasil, por César Muñoz

12 de outubro, 2018

Desde 7 de outubro até o final do ano, as mulheres trabalham de graça no Brasil. Essa é uma forma de ilustrar a disparidade salarial entre gêneros nas empresas brasileiras.

(Human Rights Watch Brasil, 11/10/2018 – acesse no site de origem; originalmente publicado em Valor Econômico, 11/10/2018)

Em cerca de nove meses, homens  no Brasil ganham o mesmo que suas colegas mulheres recebem em um ano inteiro. Em outras palavras: se as mulheres recebessem mensalmente o mesmo salário que os homens, elas poderiam trabalhar até 6 de outubro e tirar o resto do ano de folga.

Elas não o fazem, é claro. As mulheres continuam patrulhando nossas ruas, projetando nossos edifícios, investindo nosso dinheiro, produzindo nossa comida, cuidando dos idosos e ensinando nossos filhos, e ganhando em média 23% menos do que os homens.

Não é somente injusto e errado. Também é ruim para os negócios e para a economia do país. Os candidatos eleitos para o Congresso e para a presidência devem agir para tornar a igualdade salarial para os mesmos cargos uma realidade no Brasil.

Algumas das diferenças salariais podem ser atribuídas à sub-representação de mulheres em empregos bem remunerados. Há mais mulheres brasileiras com ensino superior do que homens, mas quando buscam o crescimento na carreira, elas esbarram em um teto de vidro blindado. O ensino superior não as protege contra a discriminação salarial – as mulheres com diplomas universitários recebem 36% menos do que os homens com o mesmo nível educacional.

No centro da disparidade salarial está uma generalizada discriminação de gênero. O Brasil está nas últimas posições – 119 entre 144 países – do ranking sobre igualdade salarial para trabalho similar, segundo uma pesquisa anual do Fórum Econômico Mundial realizada com executivos. O que impulsiona essa desigualdade é uma discriminação muitas vezes tão sutil que torna difícil para as mulheres provarem ou até mesmo reclamarem contra a situação.

“Ana” trabalha em um banco no Brasil e compartilhou sua experiência comigo. Ela me pediu para não usar seu nome verdadeiro e para não divulgar outros detalhes da sua história por medo de represálias.

Há dois anos, Ana, uma funcionária com bom desempenho, recebeu a primeira parte de um bônus anual. Seu supervisor prometeu que o restante – ”uma quantidade maior”, segundo ele – seria quitado no final do ano. Esta era a prática padrão no seu banco.

Mas entre os pagamentos, Ana revelou que estava grávida. Isso não afetou seu trabalho, mas a segunda parcela do bônus chegou no mesmo valor que a primeira. Logicamente o banco não disse que o bônus menor do que o esperado era em razão da gravidez, mas ela tinha certeza que esse era o motivo. O banco não lhe ofereceu nenhuma explicação. “O preconceito é velado”, disse ela. “É difícil lutar contra isso.”

No ano seguinte, após retornar da licença-maternidade de seis meses, Ana não recebeu qualquer bônus. Zero. Ela disse ao seu supervisor que deveria ao menos receber o bônus correspondente aos seis meses em que trabalhou, mas não recebeu.

Pagar às mulheres menos do que aos homens pelo mesmo trabalho não apenas expõe as empresas a possíveis ações judiciais, mas também é prejudicial aos negócios.

Jairo Okret, Líder da Prática de Tecnologia na América Latina da Korn Ferry, uma empresa internacional de consultoria e recrutamento, contou que as empresas que constroem uma reputação de serem justas e de disporem de um ambiente de trabalho de respeito e valorização das mulheres são melhores na retenção de trabalhadores de alto desempenho, o principal ativo de qualquer negócio.

Ana, por exemplo, considerou deixar o banco. “Fiquei bem chateada”, contou. Ela continuou apenas porque o banco a promoveu– uma prova, argumenta, de que os bônus reduzidos não ocorreram devido a um desempenho ruim. Apesar da promoção, ela nunca recebeu o bônus ora devido.

Bancos com mais mulheres em seus conselhos têm melhor desempenho e estão melhor preparados financeiramente para uma possível crise, mostrou um estudo recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre 800 bancos ao redor do mundo.

Os pesquisadores encontraram indícios de que as mulheres que superam os obstáculos para avançar no setor financeiro são singularmente qualificadas e eficientes, e isso é excelente para as empresas. Porém, mulheres não deveriam ter que provar a habilidade de superar a discriminação para demonstrar seu valor. Os dados do FMI também mostram que a diversidade de opiniões e experiências leva a melhores decisões. Ponto final.

O governo tem um papel a desempenhar na garantia da igualdade salarial entre homens e mulheres. Nos Estados Unidos, a lei de remuneração justa de 2009 (“Lilly Ledbetter Fair Pay Act”) implementou uma proteção contra a discriminação salarial e, em 2016, o então presidente Barack Obama criou o Compromisso de Equiparação Salarial (“Equal Pay Pledge”). Mais de cem das maiores empresas dos Estados Unidos assumiram compromissos para identificar e corrigir desigualdades salariais entre homens e mulheres. Na Europa, vários países   promulgaram medidas de transparência que revelam disparidades salariais entre homens e mulheres nas empresas.

Um recente relatório do Banco Mundial afirma que os países estão perdendo bilhões de dólares por conta das diferenças na remuneração entre mulheres e homens. No Brasil, um estudo acadêmico de 3.000 cidades mostra que a disparidade salarial entre homens e mulheres reduz o crescimento econômico.

Os novos membros do Congresso e do Executivo que tomarão posse em janeiro deveriam garantir que as mulheres brasileiras, como Ana, recebam remunerações justas  por seu trabalho. Será bom para as mulheres e bom para todo o Brasil.

César Muñoz é pesquisador sênior para o Brasil na Divisão das Américas da Human Rights Watch.

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