#EleNão: o que leva as mulheres às ruas?, por Camila Villard Duran

04 de outubro, 2018

Se houver continuidade de discursos agressivos e de exclusão contra mulheres e minorias, o país estará condenado a seguir fragmentado.

(O Estado de S. Paulo, 04/10/2018 – acesse no site de origem)

No final de semana que antecede a eleição presidencial, o #EleNão conseguiu reunir dezenas de milhares de brasileiras e brasileiros nas ruas. O discurso político de Jair Bolsonaro, com referências machistas e declarações de desrespeito a direitos individuais e a instituições democráticas, foi fortemente contestado no último 29 de setembro. O #EleNão pode ser comparado aos movimentos sociais de junho de 2013. Foram eles que primeiro potencializaram o uso da internet e de redes sociais para grandes mobilizações políticas.

No entanto, o #EleNão tem algo peculiar. É a sua locomotiva:  as mulheres. Sindicatos, entidades religiosas, partidos políticos e organizações sociais em defesa de direitos de minorias não foram capazes de unir um contingente tão importante de pessoas e levá-los às ruas para protestar contra um dos principais candidatos à Presidência da República.

Mulheres foram responsáveis por organizar o movimento virtual, que passou a influenciar a amplitude do movimento real, e culminou nas passeatas do último sábado, em diferentes cidades no Brasil e no exterior. Com essa mobilização, elas podem impactar decisivamente o resultado das eleições. Elas representam 53% do eleitorado no país. São também a maioria da população. Pela primeira vez na democracia brasileira do pós-1988, a clivagem de gênero tende a ser o fator determinante no resultado das eleições.

O que explica esse peso decisivo das mulheres na eleição presidencial de 2018? Afinal, o ambiente político é altamente dominado por homens (dos treze candidatos, apenas duas são mulheres) e elas representam apenas 10,7% dos cargos eletivos no Congresso Nacional. Comparativamente, na América Latina, esse número é quase três vezes maior (29,3%). É preciso compreender a forma e o sentido da organização política das brasileiras nessas eleições.

“As instituições são julgadas pelo ponto de vista das chances concretas dadas aos indivíduos” (Simone de Beauvoir, Le deuxième sexe). Desde a instauração da República no Brasil, quais foram as chances concretas dadas às mulheres, em termos de emancipação e empoderamento? Progressivamente, mas ainda lentamente, pode-se afirmar que se caminha na direção da igualdade de gênero. As eleições de 2018 podem representar, contudo, progresso ou retrocesso. O #EleNão é a resposta das mulheres a essa encruzilhada, que parece ultrapassar a questão da identidade de gênero.

Elas não somente se reuniram para protestar contra um inimigo comum, que lhes nega individualidade e existência plena. A identidade de gênero foi um catalisador contra as ideias que o candidato representa: autoritarismo e agressão a valores democráticos e direitos individuais. Elas não se manifestaram por um projeto político específico. Elas protestaram contra o autoritarismo, em defesa do liberalismo político.

Para o influente historiador israelense Yuval Noah Harari, a atual crise global do liberalismo político é séria. A novidade trazida pelo século XXI, contudo, é a de que o liberalismo não está mais sendo confrontado a um adversário ideológico coerente, como o fascismo e o comunismo do século anterior. O liberalismo sofre oposição de ideologias niilistas e poucos coesas. Trump é representativo dessa oposição. Bolsonaro é a versão brasileira.

Historicamente, mulheres tiveram dificuldades em se organizar enquanto movimento político. Em 1949, Beauvoir (Le deuxième sexe) ressaltava a dificuldade do reconhecimento da identidade de gênero enquanto elemento de conexão entre as mulheres. As mulheres, segundo ela, “vivem dispersas entre os homens, mais conectadas a eles pelo habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos, pela condição social de certos deles – pai ou marido – do que a outras mulheres. Burguesas, elas são solidárias a burgueses e não a mulheres proletárias; brancas a homens brancos e não a mulheres negras”.

As décadas de 1960 e 1970, que testemunharam eventos históricos da segunda onda do movimento feminista global, contribuíram de forma significativa para superar a barreira ao mútuo reconhecimento (a despenalização do aborto na França, conduzida por Simone Veil, é emblemática desse período). No Brasil da época, entretanto, movimentos em defesa de direitos humanos foram duramente reprimidos pelo regime militar.

Foi somente no pós-1988, com adoção da nova Constituição Federal, que o feminismo brasileiro pode, de fato, florescer. São as liberdades garantidas pelo direito, que permitem a organização política dessas mulheres. Mas isso não é tudo. Liberdades formais demandam liberdades econômicas e sociais para serem concretizadas.

A década de 2000 foi rica nesse quesito: políticas como o bolsa família e a progressiva repressão à violência doméstica, com a promulgação da Lei Maria Da Penha, estão transformando a posição das mulheres no seio familiar e comunitário. O crescimento da igualdade de gênero no acesso à educação e à saúde, nos últimos anos, foi outro fator relevante. No brasil,  a escolaridade é identificada como uma variável explicativa.

O #EleNão é produto da evolução da democracia liberal brasileira e também da globalização de movimentos políticos feministas. Internacionalmente, pode ser comparado, por exemplo, à Marcha das Mulheres contra o governo Trump. O retrocesso da democracia liberal tende a impactar de forma mais dura e cruel mulheres, minorias raciais e LGBTs. E elas têm consciência disso.

A despeito de todos esses avanços, que permitem explicar a capacidade da organização e da manifestação política feminina, que culminaram nos eventos recentes, há muito o que fazer. O aborto ainda é crime no Brasil. A lei penal, com toda sua força estatal, reprime as mulheres que, desesperadamente, precisam recorrer a esse ato. Aos homens, nada é devido. É preciso também lembrar que, na economia brasileira, as mulheres com ensino superior ainda recebem 75% da remuneração de seus pares masculinos. Há ainda sub-representação em altos cargos de chefia, em praticamente todos os setores, do público ao privado. Mulheres são minoria em cargos eletivos, nos planos federal, estadual e municipal. Negras e trans são ainda mais negativamente impactadas.

Poderá o #Elenão se converter em participação efetiva das mulheres na vida política, enquanto titulares de cargos públicos e eletivos? A eleição de Dilma Rousseff como Presidente da República, por si só, não se converteu em ganhos de participação nos mais altos escalões do governo. Em todo caso, a análise de Rosana Pinheiro-Machado e Joanna Burigo é perspicaz: o momento pede atenção para a representação política feminina. As campanhas eleitorais precisam falar sobre e para as mulheres. O poder do voto feminino já foi identificado pela socióloga Fatima Pacheco Jordão, em outras eleições presidenciais. Precisamos avançar.

É evidente que o problema da representação política no país não irá se resolver no momento das eleições. Precisa-se de políticas robustas, que respondam a essa demanda. Há em curso projetos sociais, que procuram aumentar a representatividade de setores marginalizados nas instituições públicas. A Escola Comum é um deles: jovens brilhantes da periferia, homens e mulheres, estão sendo preparados para se tornarem líderes na vida política brasileira. Precisa-se de mais projetos desse porte intelectual voltados, especialmente, para mulheres.

Se houver continuidade de discursos agressivos e de exclusão contra mulheres e minorias, o país estará condenado a seguir fragmentado. É preciso, mais do que nunca, inclusão para se construir um projeto de futuro para o Brasil. É assim que se supera uma crise econômica e o descrédito em instituições públicas. Quais candidatos e candidatas estão aptos a contribuir com esse debate político? É a questão que se coloca para este domingo de outubro.

Camila Villard Duran é professora doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo ([email protected])

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