10 anos de Lei Maria da Penha: 10 motivos para comemorar, por Valéria Scarance

02 de setembro, 2016

Em 07 de agosto de 2016, a Lei Maria da Penha completou uma década de vida. Uma década de luta, vitórias, conquistas e muitas incertezas. Mas a maior consagração foi trazer luz ao quarto escuro onde dormia invisível a violência contra a mulher.

(Carta Forense, 02/09/2016 – acesse no site de origem)

Para se compreender a importância da lei, considerada uma das três melhores do mundo, é necessário situar o momento em que foi construída.

A Lei Maria da Penha foi elaborada e discutida por um consórcio de ONGs, debatida em audiências públicas, o que lhe conferiu ampla legitimidade. Além disso, consolidou-se em uma época em que a legislação ainda dava os primeiros passos no reconhecimento dos direitos das mulheres.

Àquele tempo, embora proclamada pela Constituição Federal de 1988 a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações (art. 5º, I), a legislação civil ainda considerava a mulher casada relativamente capaz e o Código Penal utilizava expressões como “honesta” e “virgem”, assim como previa a causa extintiva da punibilidade do casamento da vítima com o autor do estupro, o que perdurou até a revogação pela Lei nº 11.106/2005.

Nesse contexto, a Lei Maria da Penha, trouxe previsões inéditas em nosso país. Para comemorar os 10 anos deste momento histórico, destacamos as 10 principais inovações trazidas pela lei (pela ordem dos artigos):

1ª) Referência a toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião (art. 2º).

Trata-se de importante previsão, pois há a falsa noção de que a violência só atinge mulheres desprovidas de acesso à cultura, estudo e dinheiro. Na verdade, atinge 1 a cada 3 três mulheres em nosso país e está presente em todas as classes, etnias e religiões. Ser vítima não tem relação direta com a dependência econômica. Aliás, o levantamento da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 – SPM revelou que 61,18% das vítimas não são sustentadas pelo agressor.

Outra relevante inovação foi a aplicação para mulheres em relação homoafetiva.

2ª) Reconhecimento de direitos fundamentais, dentre eles o direito “ao respeito”, responsabilidade da família, sociedade e poder público (art. 3º).

O direito ao respeito tem uma dimensão individual, correspondente à proibição de discriminação e violência contra uma mulher, mas também uma dimensão coletiva – proibição de violência simbólica.

Essa violência simbólica consiste na reprodução de padrões de inferioridade e submissão da mulher que naturalizam a violência. Não por menos, a Lei Maria da Penha prevê como medida de prevenção “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar” (art. 8º, III).

3ª) Na interpretação da lei, devem ser consideradas “as condições peculiares das mulheres em situação de violência” (art. 4º).

A violência enfraquece e vulnera, atinge a autoestima e pode prejudicar a autodeterminação da mulher. Esta previsão é relevante por reconhecer implicitamente que a vulnerabilidade de uma mulher não é prévia, mas sim, gerada pela própria “situação de violência”.

Trata-se de importante referência, pois a mulher pode aparentar autossuficiência, trabalhar, ser independente, exercer cargos relevantes e ainda assim ser vulnerável na relação afetiva.

4ª) Criação de um núcleo centralizador: o conceito de gênero (art. 5º).

Esta categoria de análise, que já constava da Convenção de Belém do Pará, congrega em si os elementos estruturais de uma relação violenta: dominação, submissão, disparidade de forças, naturalização da violência e repetição de padrão (transgeracionalidade).

5ª) Afirmação expressa de que a violência contra a mulher é uma violação de direitos humanos (art. 6º).

Por mais óbvio que pareça, o reconhecimento dos direitos humanos das mulheres tardou a ocorrer. Somente em 1993, foi consagrado na Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena e reiterado pela Declaração de Pequim de 1995.

6ª) Ampliação do termo “violência”, para prever cinco formas: física, sexual, psicologia, patrimonial e moral.

Embora a violência física seja a mais noticiada e visibilizada, normalmente ocorre como uma das etapas finais da relação afetiva, quando já houve o domínio da mulher, pela violência psicológica e moral. Uma das grandes inovações foi justamente a previsão dessa violência psicológica, centralizada na ideia de prejuízo à saúde psicológica e redução da autodeterminação (art. 7º).

7ª) Criação de uma política pública integrada para a violência contra a mulher com  programas de capacitação e rede de atendimento especializada (art. 8º, VII e 35, III).

Trata-se de uma política integrada, envolvendo os órgãos que compõe o sistema de Justiça, mas também a segurança pública, saúde, educação, habitação, possibilitando-se a assinatura de protocolos e convênios (art. 8º, I).

A previsão de capacitação é determinante para a efetividade da lei, já que apenas a formação direcionada e multidisciplinar pode permitir uma atuação eficiente das autoridades e profissionais.

8ª) Prevenção da violência pela educação em gênero.

Uma das mais relevantes políticas públicas é a prevenção pela educação, mediante a inclusão nos currículos escolares de todos os níveis de ensino da temática de equidade de gênero, raça, etnia e violência, bem como a realização de campanhas educativas para o público escolar e sociedade (art. 8º, V e IX).

Ninguém nasce violento, mas aprende a agir desta forma. Por isso, a educação tem um papel fundamental para modificar padrões de desrespeito e discriminação.

9ª) Criação de medidas protetivas de urgência (arts. 22 e 23).

Não havia no Brasil medidas protetivas de urgência até a Lei Maria da Penha. Essas medidas, como o afastamento do agressor, proibição de aproximação e de contato, são apontadas como as principais estratégias para se evitar a morte de mulheres.

10º) Reeducação do agressor (autor de violência) em programas específicos, em centros de educação e de reabilitação  (art. 35, V).

Os autores de violência são em regra primários e de bons antecedentes. Praticam o ato em razão de um padrão comportamental aprendido e incorporado ao longo da vida. Por isso, programas específicos como Grupos Reflexivos podem modificar seu modo de agir e evitar a reincidência.

Essas são algumas inovações trazidas pela lei. No próximo artigo, abordaremos os desafios e as propostas para aperfeiçoamento, mas neste aniversário é importante consignar a relevância dessa obra prima do mundo jurídico.

Infelizmente, nem todos entoam os “parabéns”. A população do Brasil conhece a lei, mas quase ninguém sabe seu conteúdo. Ainda impera o preconceito. Ainda há mortes, violência, descaso e piadas. Após 10 anos de uma lei estupenda, ainda há a estupidez da revitimização e banalização. Seguimos em frente, para que nossas mulheres em situação de violência também possam cantar aliviadas “muitas felicidades e muitos anos de vida”.

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