A mente violentada, por Jessica Almeida

09 de abril, 2016

(Pampulha, 09/04/2016) Questionamento da sanidade de mulheres públicas levanta debate sobre gaslighting

Em meio à forte turbulência política que o país atravessa atualmente, uma nova discussão ganhou corpo nos últimos dias. O motivo foi a capa da revista “IstoÉ”, na edição do dia 1º de abril, que, sob a manchete “As explosões nervosas da presidente”, reportou supostos surtos de descontrole de Dilma Rousseff e colocou em xeque sua capacidade de governar. Muito questionada nas redes sociais, a matéria suscitou debates sobre a forma como mulheres que ocupam cargos de poder são retratadas nos meios de comunicação e como isso acaba reforçando uma prática de silenciamento chamada “gaslighting”.

O termo tem sido utilizado pelo movimento feminista nos últimos anos para designar um tipo de violência de gênero. Não que seja um problema exclusivo das relações entre homem e mulher, mas porque ganha contornos específicos graças ao machismo, como explica Júlia Dorigo, professora de psicologia do Centro Universitário Una. “Tem a ver com descreditar as ideias das mulheres atribuindo descontrole às reações emocionais que não correspondam ao que se espera delas, que são comportamentos de condescendência, gentileza, concordância, apaziguamento. Ou seja, quando temos atitudes de firmeza, assertividade, rigor, somos desconstruídas por afirmações como ‘deve estar na TPM’ ou ‘está louca’. A questão de gênero está na forma como a violência se configura”, diz.

O gaslighting opera no reforço de uma sociedade machista, como ressalta Bárbara Caldeira, pesquisadora do departamento de comunicação social da UFMG, que estuda as relações entre a comunicação e a violência contra a mulher. “Isso se dá na medida em que desqualifica mulheres ao construir a imagem de ‘loucas’, ‘fora de controle’, ‘histéricas’ e, portanto, incapazes de tomar decisões importantes ou de ter opiniões respeitadas por conta de uma suposta ‘fragilidade emocional’”, afirma. “Acontece o tempo todo em todos os tipos de relacionamentos, sejam afetivos ou profissionais. E é, a meu ver, o caso da capa da ‘IstoÉ’ com a presidenta Dilma”.

Em meio à forte turbulência política que o país atravessa atualmente, uma nova discussão ganhou corpo nos últimos dias. O motivo foi a capa da revista “IstoÉ”, na edição do dia 1º de abril, que, sob a manchete “As explosões nervosas da presidente”, reportou supostos surtos de descontrole de Dilma Rousseff e colocou em xeque sua capacidade de governar. Muito questionada nas redes sociais, a matéria suscitou debates sobre a forma como mulheres que ocupam cargos de poder são retratadas nos meios de comunicação e como isso acaba reforçando uma prática de silenciamento chamada “gaslighting”.

O termo tem sido utilizado pelo movimento feminista nos últimos anos para designar um tipo de violência de gênero. Não que seja um problema exclusivo das relações entre homem e mulher, mas porque ganha contornos específicos graças ao machismo, como explica Júlia Dorigo, professora de psicologia do Centro Universitário Una. “Tem a ver com descreditar as ideias das mulheres atribuindo descontrole às reações emocionais que não correspondam ao que se espera delas, que são comportamentos de condescendência, gentileza, concordância, apaziguamento. Ou seja, quando temos atitudes de firmeza, assertividade, rigor, somos desconstruídas por afirmações como ‘deve estar na TPM’ ou ‘está louca’. A questão de gênero está na forma como a violência se configura”, diz.

O gaslighting opera no reforço de uma sociedade machista, como ressalta Bárbara Caldeira, pesquisadora do departamento de comunicação social da UFMG, que estuda as relações entre a comunicação e a violência contra a mulher. “Isso se dá na medida em que desqualifica mulheres ao construir a imagem de ‘loucas’, ‘fora de controle’, ‘histéricas’ e, portanto, incapazes de tomar decisões importantes ou de ter opiniões respeitadas por conta de uma suposta ‘fragilidade emocional’”, afirma. “Acontece o tempo todo em todos os tipos de relacionamentos, sejam afetivos ou profissionais. E é, a meu ver, o caso da capa da ‘IstoÉ’ com a presidenta Dilma”.

De acordo com a pesquisadora, a “IstoÉ” lança mão do gaslighting ao exacerbar supostos comportamentos baseados em emoção descontrolada e tenta frisar a hipotética incapacidade racional da governante. “É levar a crer que uma mulher enlouqueceu, ‘perdeu a razão’. O que a revista questiona, nesse caso, não é de fato a capacidade administrativa de Dilma para governar o país, mas sua sanidade, e esse é o princípio do gaslighting”.

Na medida em que uma publicação de circulação nacional reforça esse tipo de discurso, a professora de psicologia Júlia Dorigo acredita que ela legitima essa prática, inclusive quando acontece em âmbito pessoal. “É um ataque ao indivíduo e não à sua forma de governar. E mesmo que isso também tenha acontecido, por exemplo, com o Lula, que era chamado de bêbado, é algo que cola muito mais fácil quando se trata de uma mulher, porque a explosão nervosa, a loucura, é muito mais facilmente atribuída a nós”, afirma. “Toda vez que não agimos conforme as expectativas de gênero, com concordância, complacência, somos taxadas de loucas, de desequilibradas. Seja na presidência ou numa mesa de bar”.

Dois pesos, duas medidas

Os mesmos traços de comportamento, quando apresentados por homens, são percebidos como demonstrações de poder, confiança, autoridade, como observado pelo coletivo de mulheres Think Olga, em post posterior à publicação da revista, em sua página no Facebook. “O ex-técnico (sic) da seleção brasileira Dunga é conhecido por seu comportamento explosivo, mas quando o assunto foi capa da revista ‘Época’, a abordagem foi bem mais positiva: ‘O Dom da Fúria. O que nos faz perder o controle. E como usar a raiva a nosso favor’”.

A postagem, que até o fechamento desta edição contava com quase 30 mil curtidas e 27 mil compartilhamentos, também demonstra que esse não é um problema exclusivo do Brasil, ao compilar capas de publicações internacionais que deram o mesmo tratamento a mulheres como Hillary Clinton, Angela Merkel, Cristina Kirchner e Michelle Obama.

Ao longo da semana, a discussão ganhou mais combustível depois que Janaína Paschoal, conhecida como a advogada do impeachment, fez uma apresentação na Faculdade de Direito da USP, num ato de opositores ao governo Dilma. O discurso inflamado da jurista gerou para ela atribuições semelhantes às que a revista imputou à presidente e ela foi chamada de louca, histérica e desequilibrada, inclusive por muita gente que se revoltou com a capa da “IstoÉ”.

Para Júlia Dorigo, o que vale pra uma, também vale para a outra. “Essa é a sutileza do machismo, que está presente de tal forma que a gente reproduz sem perceber. De repente, está todo mundo falando que ela é louca e ninguém está questionando o discurso que ela fez. Por mais que a cena a que assistimos tenha sido violenta, é preciso ouvir o que ela disse para, se for o caso, contestar e não deslegitimá-la chamando-a de louca”, argumenta.

No Face

A presidente Dilma Rousseff se manifestou na última quinta (7), em sua página no Facebook, em relação às suposições levantadas pela revista “IstoÉ”. Sem citar o nome da publicação, fez um texto em que aborda períodos difíceis que enfrentou e no qual reafirma seu controle emocional. E finalizou: “Quero dizer para vocês: eu não perco o controle, não perco o eixo, não perco a esperança porque eu sou mulher, é por isso, porque sou mulher. Não perco o controle porque me acostumei a lutar por mim e pelos que amo”.

Outras formas

Manterrupting A palavra é uma junção de man (homem) e interrupting (interrupção). É quando a mulher não consegue concluir sua frase, porque é constantemente interrompida pelos homens ao redor. Exemplo: “’Então, como eu ia dizendo…’, disse o homem suplantando a fala da mulher durante a reunião”.

Bropriating Soma de bro (curto para brother, irmão, mano) e appropriating (apropriação). Acontece quando um homem se apropria da ideia de uma mulher e leva o crédito por ela. Exemplo: “’É exatamente como eu tinha dito’, disse o homem à mulher durante uma apresentação”.

Mansplaining Junção de man (homem) e explaining (explicar). É quando um homem dedica seu tempo para explicar algo óbvio a uma mulher, como se ela não fosse capaz de compreender. Exemplo: “’Deixa eu desenhar pra você, querida’, disse o homem à mulher numa conversa qualquer”. Também pode servir para um homem explicar como a mulher está errada a respeito de algo sobre o qual tem certeza, ou apresentar “fatos” variados e incorretos sobre algo que ela conhece muito melhor, só para demonstrar conhecimento.

Peça de 1938 nomeou prática

De acordo com a psicanalista norte-americana Robin Stern, autora do livro “The Gaslight Effect: How to Spot and Survive the Hidden Manipulation Others Use to Control Your Life” (O Efeito Gaslight: Como Identificar e Sobreviver à Manipulação Oculta que os Outros Usam para Controlar sua Vida, em tradução livre), gaslighting é um desequilíbrio de poder muito familiar, ainda que sutil, um tipo de jogo em que o mais poderoso tenta definir a realidade do menos potente. Como resultado, a vítima passa a duvidar de si mesma porque permitiu à outra pessoa corroer seu julgamento.

A expressão tem origem na peça “Gas Light” (1938), do dramaturgo inglês Patrick Hamilton (1904-1962) adaptada posteriormente para o cinema duas vezes, uma na Inglaterra, em 1940, e outra nos Estados Unidos, em 1944, com a atriz Ingrid Bergman (1915-1982) no elenco.

Na trama, o marido de uma mulher muito rica bola um plano para roubar sua fortuna. Ele tenta convencê-la e a todos ao seu redor de que ela está louca, manipulando pequenos elementos do ambiente, como as lâmpadas de gás da casa, fazendo com que elas acendam e apaguem, e convencendo a mulher de que isso acontecia somente na sua imaginação.

Um problema de relações

Durante os últimos anos de um relacionamento, a publicitária Virgínia Manoel, 23, era frequentemente deixada falando sozinha, ou ouvia coisas como “você não sabe o que está falando”, “isso é coisa da sua cabeça”, “você está louca”. Acabou por descobrir que seu parceiro mantinha um relacionamento com outra mulher e, mesmo diante de comprovações, ele foi categórico em afirmar que ela estava insana. “Me lembro como se fosse hoje! Ele me dizia que não era possível estar em uma relação comigo, já que eu não confiava nele, que aquilo era loucura. Eu estava fraca, suava frio, por alguns instantes tive certeza de que desmaiaria, ali mesmo, no centro da cidade. Eu tinha certeza do que estava falando, porém, não tinha forças para ir contra o que ele me dizia. O agressor sabe como controlar a vítima, principalmente em um momento de fraqueza, de vulnerabilidade. Foi então que ele me disse que não ia continuar ali, discutindo comigo. Muitas pessoas estavam olhando e eu tenho a certeza de que, para elas, eu era a ‘louca ciumenta’. A sociedade, muitas vezes, engole a opressão, é conivente”, conta.

Alguns dias depois, ao ter uma nova comprovação do caso mantido pelo então companheiro, Virgínia teve um surto psicótico, em decorrência de uma depressão até então não diagnosticada. Por causa disso, ela chegou a passar três dias inconsciente e precisou fazer uso de medicação por quase dois anos.

Casos como o dela demonstram que o gaslighting pode acabar, de fato, induzindo a transtornos mentais, como explica a professora de psicologia do Centro Universitário Una, Júlia Dorigo. “É uma prática assediadora e, como tal, pode causar uma doença. A exposição a repetidos questionamentos, uma forma de violência infligida repetidas vezes, de diversas maneiras, faz adoecer porque vai restringindo a capacidade do indivíduo de agir. E assim uma pessoa sem histórico nenhum de psicose começa a sofrer, em geral, transtornos de origem ansiosa, como síndrome do pânico”, explica a professora.

Gaslighting profissional

Depois de enfrentar o abuso numa relação afetiva, Virgínia passou por uma situação análoga, dessa vez, no ambiente de trabalho, que também é um âmbito em que o gaslighting é praticado. “Uma de minhas experiências profissionais me levou à Justiça do Trabalho, depois que fui expulsa da empresa sob ameaça, por ter relatado minhas insatisfações e pedido meu desligamento”, lembra. “O diretor sempre deixou muito claro que, se algo desse errado, a culpa seria minha, independente de quem estivesse envolvido. Ele mesmo burlava as regras e quando o problema se instaurava, jogava a responsabilidade para os funcionários. Na audiência jurídica, ele alegou que jamais me agrediu verbalmente e que eu tinha problemas pessoais que interferiam no meu trabalho. Segundo ele, algumas vezes agi de forma desequilibrada com clientes, o que nunca aconteceu. Usou a falsa afirmativa de que eu não sabia cumprir regras e agia como bem queria, sendo uma profissional incompetente e que não cumpria prazos”.

Além de não se restringir aos relacionamentos afetivos, o gaslighting não se dá somente quando a sanidade da vítima é explicitamente contestada, mas sempre que suas convicções são minadas, como alerta a professora Júlia Dorigo. “Quando o homem determina o que ela deve ou não fazer, como sair com determinadas pessoas ou usar determinadas roupas, ou a faz se sentir mal por conta de alguma característica sua, como o peso ou a inteligência, fazendo a mulher duvidar de si mesma, também é gaslighting”, afirma. “A longo prazo, ele reduz muito a capacidade de reação, por conta do constrangimento. Aos poucos, ela começa assimilar as vontades ou determinações do parceiro como se fossem suas”.

No entanto, Júlia ressalta que, por ser um tipo de violência estrutural da sociedade, o qual reproduzimos sem perceber, esse não é um problema de indivíduos, mas de relações. “A pessoa que pratica o assédio, por vezes, não tem clara a dimensão do que está provocando no outro. Não necessariamente ela tem o intuito de provocar o mal. E a partir do momento em que a vítima se empodera, ela pode deixar isso claro e criar novas regras para o relacionamento, nós fazemos isso o tempo inteiro em nossas relações. Nem sempre é o caso de terminar o namoro, embora eventualmente seja”, diz.

Foi esse o caso de Sandra*, 31, que depois de muitos anos de gaslighting e sofrimento, conseguiu tornar a relação com o namorado saudável. “Na terapia, eu percebi que não havia delírio, nem paranoia. Notei que minha doença era aceitar aquela relação. A partir desse momento, disse: ‘não estou louca! Não sou vítima disso e preciso entender porque me permiti viver isso tudo. Sem me culpar, mas me responsabilizando pelo que escolho para minha vida’” conta.

“Voltei o namoro após um período de distanciamento, afirmando que deveria ser diferente e foi. É uma longa história, porque tem participação dele, mas brevemente digo que ele percebeu que o que fez por anos foi cruel e por insegurança. Era mais fácil me colocar pra baixo para me manter perto dele. Foi uma transformação para ele quando eu comecei a agir diferente, por exemplo, não me importando com as criticas destrutivas. Mudei minha postura comigo, comecei a fazer coisas que eu gostava e a conviver com outras pessoas. Comecei a praticar yoga e meditar. Acabamos terminando, por outras razões, mas hoje somos amigos”.

(*)Nome trocado para preservar a identidade

O GASLIGHTING PAUTA O POP

Humor O grupo Porta dos Fundos, famoso por seus vídeos no YouTube, ilustrou claramente como funciona o gaslighting no esquete “Flagra”, de 2014. Uma mulher flagra o marido com a amante na cama. Para se safar, ele acusa a mulher de louca e arma situação para fazê-la acreditar que foi ela quem traiu o marido

Celebridade A cantora Rihanna escreveu em seu perfil no Twitter: “Nunca subestime a habilidade de um homem de te fazer sentir culpada por um erro dele”. Em 2009, Rihanna foi agredida pelo ex-namorado, o cantor Chris Brown. Ele foi condenado a cinco anos em liberdade condicional e 180 horas de serviços comunitários

Música Um dos maiores hits de 2012, a música “Somebody That I Used To Know”, do cantor Gotye, tem versos que relatam situação de gaslighting no trecho que tem participação especial da cantora Kimbra: “Eu penso em todas as vezes que você me avacalhou, mas me fez acreditar que sempre foi alguma coisa que eu fiz”

TV Jessica Jones, heroína dos quadrinhos que ganhou uma série na Netflix, vive uma relação abusiva com o vilão Kilgrave na versão adaptada para as telas. São muitas as situações em que Kilgrave deliberadamente manipula Jessica para fazer a protagonista questionar suas próprias certezas

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