Cultura da surra, por Flávia Piovesan e Akemi Kamikura

11 de outubro, 2014

(O Estado de S. Paulo, 11/10/2014) Uma adolescente de 17 anos foi sequestrada, agredida e torturada. Cenas foram gravadas e postadas em rede social. Antes de ser removido da internet, foram mais de 50 mil compartilhamentos, em menos de cinco horas. No vídeo, a agressora apaga um cigarro no rosto da vítima, que aparece quase nua e com ferimentos na face. A vítima sofreu deformação no crânio, além de diversas queimaduras de cigarro. Tudo isso teria sido praticado por uma jovem que suspeitava do envolvimento amoroso da vítima com seu namorado. Uma suposta cúmplice – que gravou as cenas – foi presa. Perplexa, declarou: “Não sou um monstro” e “errar é humano”. Foi expedido mandado de prisão, mas a agressora ainda não foi localizada.

REPRODUÇÃO

Foragida. Elisângela se deixou gravar espancando e queimando a vítima (Foto: Reprodução)

Como compreender a realidade da prática da tortura no Brasil? Quais instrumentos nacionais e internacionais para prevenir e combater esse crime brutal? Será que a violência está tão banalizada que a prática de tortura não é percebida como extremamente grave? Será que as jovens sequer notaram a gravidade de seus atos ao provocar deliberadamente dor e sofrimento para “castigar” a adolescente, a ponto de terem filmado e divulgado tais atos na internet?

A impunidade caminha ao lado de persistentes violações de direitos humanos. A punição pode ser uma medida necessária para prevenir futuras violações. A pesquisadora americana Kathryn Sikkink, ao considerar dados sobre a tortura em países de transição democrática, destaca que juízos conduzidos para investigar, processar e punir violações de direitos humanos cometidos durante o período autoritário conduziram a uma melhora na proteção desses direitos após a redemocratização. Os julgamentos ocorridos no Chile ou Argentina, por exemplo, tiveram impactos positivos até mesmo em países vizinhos da região.

A tortura é considerada crime contra a ordem internacional. A Convenção contra a Tortura, ratificada pelo Brasil em 1989, ao definir a tortura, prevê como elementos essenciais: a) inflição intencional de dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais; b) finalidade do ato (por exemplo, a obtenção de informações ou confissões; aplicação de castigo e qualquer outro motivo baseado em discriminação de qualquer natureza); e c) vinculação do agente ou responsável, direta ou indiretamente, com o Estado.

Na ordem internacional a proibição contra a tortura é absoluta. A Convenção é enfática ao determinar que nenhuma circunstância excepcional, seja qual for, pode ser invocada como justificativa para a tortura. É obrigação dos Estados adotar todas as medidas cabíveis para a prevenção e combate à tortura.

No âmbito nacional, a Constituição de 1988, ineditamente estabeleceu a prática da tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, por ela respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-la, se omitirem. Mesmo assim, apenas em 1997 foi adotada a Lei n. 9.455/97, que define o crime de tortura no Brasil. Ao contrário da Convenção, a lei brasileira não requer, para a caracterização do crime de tortura, que o agente ou responsável seja vinculado ao Estado – isso é previsto como causa de aumento de pena. Como legado de mais de duas décadas de arbítrio no País, a prática da tortura persiste na medida em que se assegura a impunidade de seus agentes. Para Nigel Rodley, ex-Relator Especial da ONU para a Tortura, sua prática é um “crime de oportunidade”, que pressupõe a certeza da impunidade. O combate a ele exige a adoção pelo Estado de medidas preventivas e repressivas. De um lado, é necessária a criação e manutenção de mecanismos que eliminem a oportunidade de torturar. De outro, a luta contra a tortura impõe o fim da cultura de impunidade, demandando do Estado o rigor no dever de investigar, processar e punir seus perpetradores. Há também a necessidade de medidas de adequada e efetiva reparação às vítimas desse crime, o que envolve reabilitação mental e física e, sobretudo, medidas para assegurar que tais violações não se repitam.

O Sistema Nacional de Prevenção e de Combate à Tortura foi instituído pela Lei 12.847/2013, mas apenas 19 das 27 Unidades da Federação contam com um mecanismo estadual de prevenção e combate à tortura.

A partir do universo de 455 acórdãos proferidos por Tribunais de Justiça do Brasil, o relatório Jurisprudência de Tortura nos Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010) mostrou que a tortura no Brasil é cometida por agentes públicos em 61% dos casos – seguidos de agentes privados com 37%. O perfil “homem”, “homem suspeito” e “crianças” corresponde a 2/3 das vítimas desses processos. Residências e locais de contenção são onde a tortura é mais praticada. Quando perpetrada por agente público, ela é mais utilizada como meio de obtenção de confissão ou informação; quando perpetrada por agente privado – como no caso em questão – é usada como forma de castigo. A pesquisa constatou também uma tendência de maior condenação de agentes privados (84%) a agentes públicos (74%).

Passados mais de 17 anos da adoção da Lei 9.455/97, é fundamental tecer um balanço crítico de sua implementação, identificando suas fortalezas e debilidades. No Estado Democrático de Direito nada pode justificar a perpetuação da tortura e sua impunidade, como um continuísmo autoritário a comprometer a paisagem democrática.

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Flávia Piovesan é doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC-SP e procuradora do Estado

Akemi Kamimura é advogado e mestre de Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP

Acesse o PDF: Cultura da surra, por Flávia Piovesan e Akemi Kamikura (O Estado de S. Paulo, 11/10/2014)

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