Estado de São Paulo registra 1 estupro de vulnerável a cada 5 horas

17 de julho, 2016

(Veja, 17/07/2016) Levantamento mostra que 943 denúncias foram apresentadas entre janeiro e junho deste ano. Crimes costumam ser reportados muitos anos depois

Maria conheceu o inferno aos 9 anos, em 1973. Foi quando o marido da irmã, dezoito anos mais velho, passou a tocar seus órgãos genitais nos pequenos momentos de distração da família. A rotina de abusos se estenderia por sete anos. Ao longo do tempo, o cunhado de Maria a obrigou a dividir com ele a cama. Nas noites de agonia, a menina não apenas era tocada, como forçada a masturbar seu algoz. Aos 16 anos, ele invadiu o quarto dela e tentou forçar a garota a fazer sexo. Maria fugiu e nunca mais se arriscou a ficar no mesmo cômodo que o cunhado. Era a única forma de se defender, uma vez que os pais nunca acreditaram em seus relatos sobre os abusos – e a irmã, que assistia a tudo da própria cama, agia como cúmplice do marido. Quando mais velha, ela se mudou de São Paulo e foi viver na Bahia. Passados mais de 40 anos, dramas como os de Maria se repetem com frequência alarmante: somente entre janeiro e junho deste ano, 943 crianças ou adultos sem condições de se defender (seja por deficiência ou por estarem alcoolizados, por exemplo) foram estuprados no Estado de São Paulo.

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Em 2009, houve duas grandes mudanças no Código Penal no que diz respeito a crimes sexuais. Até então, era considerado estupro apenas a conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça contra a mulher. Qualquer outro ato libidinoso entrava na classificação de atentado violento ao pudor. A partir daquele ano, o que era atentado violento ao pudor passou a integrar a figura jurídica do estupro. Também há sete anos foi criada a tipificação do estupro de vulnerável, detalhada pelo 1º parágrafo do artigo 217-A do Código Penal. O texto estabelece que é estupro o ato libidinoso praticado contra crianças ou “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. É o caso, por exemplo, da garota vítima de um estupro coletivo no Rio de Janeiro em maio deste ano.

Das quase 1.000 denúncias apresentadas à Justiça pelo MP paulista, apenas três tiveram origem em um flagrante. A promotora Valéria Scarance, coordenadora estadual do Núcleo de Gênero e responsável pelo levantamento, afirma que isso ocorre porque o abusador, muitas vezes, não deixa vestígios. Assim como fazia o cunhado de Maria, esse tipo de estuprador evita a penetração. “Na maioria dos casos, os abusadores não querem ter conjunção carnal justamente para não deixar provas físicas”, explica Valéria. “A grande maioria dos casos chega anos depois de o abuso ter ocorrido”, completa.

Foi assim com Maria. Apenas em 2001 ela tomou coragem para denunciar os abusos que sofreu durante a infância. Com um relatório feito por um psiquiatra e uma carta da irmã mais velha em que ela admitia os abusos do marido, a vítima levou o caso ao conhecimento do Conselho Regional de Medicina (CRM), já que o cunhado se tornou pediatra. A denúncia, porém, foi arquivada. Seu agressor também nunca foi levado à Justiça porque o crime já estava prescrito quando Maria decidiu denunciá-lo. Somente em 2012 a legislação brasileira estabeleceu que o prazo de 20 anos de prescrição para estupro de vulneráveis começa a contar quando a vítima completa 18 anos.

O número de denúncias apresentadas pelo MP de São Paulo por abusos contra vulneráveis é quase três vezes maior do que o total de acusações por estupros contra os que não se encaixam nessa tipificação. Para a promotora Valéria, as vítimas adultas costumam se manter em silêncio, o que ajuda a explicar a diferença. Também contribui para o quadro o fato de que, em casos de estupro de vulnerável, a vítima não precisa iniciar o processo de queixa. O inquérito é aberto independentemente da vontade do agredido. E o MP pode oferecer denúncia ainda que a vítima não queira processar o estuprador.

Valéria explica que as notificações de crimes do tipo contra crianças chegam à polícia graças a terceiros, em quem os pequenos confiam para relatar o abuso. “As mulheres se calam por medo do julgamento. No caso dos adultos, ao invés de julgar o histórico dos agressores, a sociedade se preocupa em levantar o histórico da vítima. Já em relação à criança, esse fator intimidador não existe, pois o crime em si já causa repugnância. Ninguém vai achar que uma criança seduziu o abusador”, avalia a promotora. No caso de Maria, a família acabou por fechar os olhos às agressões para não provocar danos à imagem do abusador, um promissor estudante de medicina.

A psiquiatra Dalka Ferrari, do Centro de Referência às Vitimas de Violência em São Paulo, explica que há várias formas de uma criança expressar o abuso. Segundo ela, a vítima elege uma pessoa de sua confiança, que considere protetora, para contar o que está acontecendo, ou apresenta sinais como sono, falta de atenção, enjoo, vômito, falta de apetite, além de assaduras, machucados e outros resquícios da agressão sexual. Dalka também explica que há casos em que a criança ou o adolescente começa a se masturbar compulsivamente. “Os abusos despertam a sexualidade” diz. Até hoje as sequelas psicológicas acompanham Maria, que aos 52 anos anos chora sempre que toca no assunto. “O problema do abuso é que enlouquece seus valores. Eu comecei a ter crises de choro e uma angústia muito séria aos 16 anos porque eu namorava e estava na fase de querer ter relações sexuais. Mas entrava em pânico, chorava e não sabia por que. A angústia era tão grande que eu terminei o relacionamento”, conta.

Embora o levantamento do MP paulista não faça distinção entre estupros de crianças ou de adultos que não apresentem resistência, um estudo de 2014 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) dá a dimensão do problema no país: mais da metade dos casos de estupro no Brasil (50,7%) têm como vítimas meninas de até 13 anos. Em 8% dos casos, elas apresentam transtorno físico ou mental. Já o agressor é, na maior parte das vezes, homem: pai, padrasto, amigo ou conhecido da vítima. Um retrato da memória de Maria: “Meu abusador era uma pessoa carinhosa, que me ensinava biologia, me levava para velejar, me dava presente de Natal”.

Nicole Fuso

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