Inclusão do feminicídio no Código Penal é uma questão de igualdade e gênero, por Mariana Armond Dias Paes

10 de janeiro, 2015

(ConJur, 10/01/2015) No último dia 26, o Consultor Jurídico publicou o texto Feminicídio é retrocesso na busca pela igualdade e no combate à discriminação, de Leonardo Isaac Yarochewsky, sobre o projeto de inclusão do feminicídio no Código Penal. O texto se refere ao PLS 292/2013, aprovado pelo Senado no dia 18 de dezembro de 2014, e que pretende incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio:

“§7º Denomina-se feminicídio à forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher quando há uma ou mais das seguintes circunstâncias:

I – relação íntima de afeto ou parentesco, por afinidade ou consanguinidade, entre a vítima e o agressor no presente ou no passado;

II – prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte;

III – mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte:

Pena – reclusão de doze a trinta anos.”

O projeto deve, ainda, ser votado pela Câmara dos Deputados.

Não entrando no debate acerca da criminalização excessiva de condutas, é importante reconhecermos, no entanto, que o PLS 292/2013 representa um avanço no combate à violência contra a mulher. Ele evidencia que existem tipos de violência aos quais as mulheres são submetidas pelo simples fato de serem mulheres. Ou seja, o PLS reconhece que existe violência de gênero no Brasil e que esse é um problema a ser combatido pelo Estado.

Outro mérito é que o projeto atrela o feminicídio à relação de afeto ou parentesco que, na maioria das vezes, a vítima tem com seu agressor. De acordo com dados levantados pela Secretaria de Políticas para Mulheres, nas 30.625 denúncias que o Disque 180 recebeu durante o primeiro semestre de 2014, em 94,02% dos casos, a vítima tinha ou relação familiar (82,82%) ou relação de afeto (11,2%) com o agressor.

Fica evidente, então, que a violência sofrida pela mulher não é uma violência como outra qualquer, mas ocasionada, principalmente, pela sua condição de mulher e praticada no âmbito doméstico e familiar.

Após reconhecer que “a violência contra mulher é um dos males que assolam e desafiam a sociedade em todo mundo”, Yarochewsky argumenta que o PLS discrimina a mulher, considerando-a como “sexo frágil”. Seria um projeto “paternalista” e que violaria o princípio da igualdade. Ao incluir o feminicídio no Código Penal, o PLS estaria dando mais valor à vida da mulher do que à do homem.

Yarochewsky se equivoca ao afirmar que a inclusão do feminicídio no Código Penal representa uma forma de discriminação. E o faz porque sua noção de igualdade está inspirada pela ideia de igualdade formal. De fato, com a Constituição de 1988, as mulheres brasileiras conquistaram a igualdade formal. De acordo com o artigo 5º, inciso I, homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Porém, as mulheres ainda não conquistaram a igualdade material em relação aos homens. Apesar de, formalmente, poderem gozar de todos os direitos que são reconhecidos aos homens, na prática, as mulheres ainda sofrem diversas restrições no exercício desses direitos.

Nossa sociedade está alicerçada em uma divisão desigual do trabalho e do usufruto do tempo. Às mulheres ainda cabe a maior parte das atividades domésticas e de cuidados. Conforme pesquisa empreendida pelo IPEA, o tempo médio que os homens brasileiros dedicam ao trabalho doméstico é de 10 horas semanais, enquanto as mulheres dedicam 25 horas semanais às mesmas tarefas, o que representa um tempo médio 150% maior do que o gasto pelos homens. Além de, muitas vezes, trabalharem fora, as mulheres ainda têm que cuidar da casa e dos familiares. É a chamada “dupla jornada de trabalho”. Assim, as mulheres têm muito menos tempo para se dedicar a outras atividades, como, por exemplo, a vida política. Essa divisão desigual também tem reflexos na sua carreira profissional: no Brasil, os homens ganham aproximadamente 30% a mais do que as mulheres da mesma idade e nível de instrução.

É o trabalho não remunerado que acaba limitando o exercício de direitos pelas mulheres e possibilitando o exercício pleno desses mesmos direitos pelos homens. Essa situação faz com que uma importante parte das mulheres se veja em situação de dependência e vulnerabilidade em relação a seus parceiros. E é essa desigualdade material que está na base da violência de gênero. Ao contrário do que afirma Yarochewsky, não se trata de considerar a mulher como “sexo frágil”, mas de reconhecer que mulheres e homens vivenciam, na vida privada, no âmbito doméstico e nas relações afetivas, situações de desigualdade que propiciam o uso da violência contra as mulheres. Assim, nas palavras de Leda Maria Hermann:

Reconhecer a condição hipossuficiente da mulher vítima de violência doméstica e/ou familiar não implica invalidar sua capacidade de reger a própria vida e administrar os próprios conflitos. Trata-se de garantir a intervenção estatal positiva, voltada à sua proteção e não à sua tutela.

Como argumenta Maria Berenice Dias, o próprio texto constitucional prevê tratamentos diferenciados para homens e mulheres. Essa diferenciação constitucional não tem como base diferenças biológicas, mas as desigualdades entre eles na divisão do trabalho. Ressalta a autora que:

O que se deve atentar não é à igualdade perante a lei, mas o direito à igualdade mediante a eliminação das desigualdades, o que impõe que se estabeleçam diferenciações específicas como única forma de dar efetividade ao preceito isonômico consagrado na Constituição.

Dias afirma, ainda, que a efetivação do princípio constitucional da igualdade depende do reconhecimento das diferenças e das desigualdades históricas entre homens e mulheres:

Para pensar a cidadania, hoje, há que se substituir o discurso da igualdade pelo discurso da diferença. Certas discriminações são positivas, pois constituem, na verdade, preceitos compensatórios como solução para superar as desequiparações.

Mesmo que o tratamento isonômico já esteja na lei, ainda é preciso percorrer um longo caminho para que a família se transforme em espaço de equidade.

Ao tratar da constitucionalidade da Lei Maria da Penha, também o STF se pronunciou a respeito da desigualdade de gênero. No julgamento da ADI 4.424, os ministros entenderam que a atuação do Estado no combate a esse tipo de violência de gênero está fundamentada em diversos dispositivos jurídicos, como, por exemplo: a) artigo 226, parágrafo 8º da Constituição Federal (“O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”); b) Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher; e c) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

No caso presente, não bastasse a situação de notória desigualdade considerada a mulher, aspecto suficiente a legitimar o necessário tratamento normativo desigual, tem-se como base para assim se proceder a dignidade da pessoa humana – artigo 1º, inciso III –, o direito fundamental de igualdade – artigo 5º, inciso I – e a previsão pedagógica segundo a qual a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais – artigo 5º, inciso XLI.

Caberia ao Estado “acelerar o processo de construção de um ambiente de real igualdade entre os gêneros”. E ainda:

Não se pode olvidar, na atualidade, uma consciência constitucional sobre a diferença e sobre a especificação dos sujeitos de direito, o que traz legitimação às discriminações positivas voltadas a atender as peculiaridades de grupos menos favorecidos e a compensar desigualdades de fato, decorrentes da cristalização cultural do preconceito.

Assim, não há que se falar que a inclusão do feminicídio no Código Penal seria inconstitucional, uma vez que ela não é contrária ao princípio da igualdade, mas busca, justamente, promover uma maior efetivação desse princípio.

Também é importante frisarmos que o feminicídio já foi tipificado em diversos países da América Latina: Costa Rica (2007), Guatemala (2008), Chile (2010), Peru (2011), El Salvador (2012), México (2012) e Nicarágua (2012). No México e na Guatemala, por sinal, a constitucionalidade desse preceito foi contestada sob o mesmo argumento de suposta violação do princípio da igualdade. Em nenhum dos casos a tese prevaleceu. No México, a Suprema Corte de Justicia de la Nación decidiu que:

[…] la creación legislativa del feminicidio cumple con los criterios de objetividad-constitucionalidad, racionalidad y proporcionalidad que, justifica el trato diferenciado y de mayor tutela de los bienes jurídicos concernientes a la vida de la mujer y su dignidad, cuando estén en peligro o sean lesionados en ciertas circunstancias, ello en contraste a lo que acontece con el delito de homicidio propiamente dicho, de ahí la necesidad y justificación de su creación, a fin de prevenir y combatir tal problemática con mayor eficacia, por ello, el feminicidio no viola el principio de igualdad jurídica del hombre y la mujer, pues dicho principio debe entenderse como la exigencia constitucional de tratar igual a los iguales y desigual a los desiguales.

Já na Guatemala, os magistrados da Corte de Constitucionalidade decidiram que:

[…] el derecho que esta norma [art. 4º da Constituição da Guatemala, que prevê a igualdade entre todos os seres humanos] garantiza no exige simplemente un mismo trato legal para todos los ciudadanos, sino determina que, ante situaciones que revelen disparidade de las condiciones o circunstancias existentes (objetivas o subjetivas), el legislador está en posibilidad de observar tales diferencias a fin de que su reconocimiento legal y, por ende, la regulación de um tratamento diferenciado, resulte eficaz para el aseguramiento de los valores superiores que inspiran al texto constitucional y, a la vez, para el logro de los fines que éste impone ala organización social.

[…]

Así las cosas, como cuestión primera, se hace necesario hacer uma remisión a los temas abordados com anterioridad, en cuanto a los motivos que impulsaron al legislador para tipificar los delitos de violência contra la mujer y violência económica contra la mujer, por cuanto existe una realidad apreciablemente distinta que en el contexto social determina un trato discriminatorio y desigual en perjuicio de la mujer, generador de violência en sus diferentes facetas y apoyado en patrones culturales que tienden a ubicar al sexo feminino en situación de subordinación frente al hombre, los que desde una perspectiva democrática es innegable que deben ser superados.

Na maior parte das vezes, nossas instituições naturalizam e reproduzem as assimetrias fáticas entre homens e mulheres. Por isso, é importante que a existência de desigualdades de gênero passe a ser sistematicamente reconhecida pelo poder público. A qualificadora do feminicídio é um passo em direção a esse reconhecimento e significa um avanço no tratamento institucional de um tema que, durante muito tempo, foi ocultado sob o manto das relações privadas.

O princípio da igualdade não deve ser tomado como algo abstrato, cristalizado no texto constitucional. O princípio da igualdade deve estar em constante diálogo com as circunstâncias concretas das vidas de grupos sociais historicamente oprimidos, pois as desigualdades concretas que esses grupos vivenciam em seus cotidianos produzem obstáculos reais à efetivação desse princípio.

Por tudo isso, o feminicídio não “viola o princípio constitucional da igualdade entre pessoas do mesmo sexo”, mas representa um passo na busca pela igualdade. O feminicídio trata de “forma diferenciada a mulher” porque ela é submetida a relações diferenciadas e cabe ao direito atuar nessas assimetrias para garantir a plena concretização do princípio da igualdade. Por fim, o projeto não está “tratando bens jurídicos idênticos (vida humana) de maneira desigual”. Ele está sim procurando preservar a vida das mulheres. Vida essa que está constantemente em risco pelo simples fato de serem de mulheres.

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