Institucionalização de políticas de gênero e formação: desafios no enfrentamento à violência contra as mulheres

26 de maio, 2015

(Géssica Brandino e Tainah Fernandes/ Agência Patrícia Galvão, 26/05/2015) O diagnóstico das barreiras existentes para desconstruir a cultura de violência contra as mulheres marcou o último painel do 1º Seminário Internacional Cultura da Violência contra as Mulheres, na quinta-feira (21/5).  Ao longo de dois dias, o evento reuniu mais de mil participantes no Sesc Pinheiros, em São Paulo.

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“O Sistema de Justiça no Brasil é predominantemente branco e sexista”, afirma procuradora

A vice-procuradora geral da República, Ela Wiecko, chamou atenção para a falta de integração entre as instituições que compõem o Sistema de Justiça e para a urgência de refletir sobre como a reprodução de estereótipos de gênero pelos profissionais da rede de atenção às vítimas de violência afeta concretamente os direitos das mulheres e de outros segmentos. “O racismo, o sexismo e o colonialismo estão dentro da prática do Sistema de Justiça e são argumentos utilizados por advogados, promotores, juízes”, alertou.

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Ela Wiecko defendeu a formação permanente dos operadores de Justiça na perspectiva de gênero como caminho para gerar mudanças. “Não podemos imaginar que a cultura de violência seja transformada pela operacionalidade do Sistema de Justiça, mas acho que temos brechas para atuar. Entendo que o Sistema de Justiça é capaz de, por exemplo, validar posições progressistas ainda frágeis e, quando isso ocorre, pode impulsionar transformações culturais importantes”, destacou.

A vice-procuradora também apresentou quatro diretrizes com ênfase na perspectiva de gênero que foram incluídas na Resolução do 30º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal, realizado em abril em Doha, no Catar. A primeira medida é integrar a perspectiva de gênero no Sistema de Justiça Criminal e implementar estratégias nacionais para proteção das mulheres de todos os atos de violência. A segunda se refere às mulheres infratoras, chamando atenção para a necessidade de considerar normas já editadas pela ONU que estabelecem regras para o tratamento das mulheres encarceradas e medidas não custodiais. A terceira é o desenvolvimento e implementação pelos Estados de planos efetivos para o avanço das mulheres nos cargos de direção, gerência e outros níveis no Sistema de Justiça Criminal. E a quarta diretriz fala em assegurar a igualdade a mulheres de grupos minoritários e povos indígenas, sugerindo o recrutamento de pessoas pertencentes a esses grupos para integrar o Sistema de Justiça.

“O Sistema de Justiça no Brasil é predominantemente branco e sexista. Por exemplo, no Ministério Público, do qual faço parte, não conseguimos passar da barreira dos 30% de mulheres. Numa visão macro, temos que possibilitar não só um número maior de mulheres, mas de negros, pessoas com deficiência e outros segmentos minoritários, como ciganos e indígenas”, defendeu.

Para a psicóloga e pesquisadora da Universidade Veracruzana do México, Letícia Cufré Marchetto, é preciso fazer uma análise múltipla sobre o problema da violência contra as mulheres  e como esta se relaciona a outras problemáticas sociais. “Não há maneiras de homogeneizar o que é heterogêneo”, destacou. “Não podemos falar de cultura apenas pelas normas, mas é necessário analisar as formas como a sociedade simboliza sua realidade e como constrói suas subjetividades”, completou.

Políticas públicas 

A institucionalização das políticas voltadas à promoção da igualdade de gênero e atendimento a mulheres em situação de violência é um dos grandes desafios enfrentados nos municípios e estados brasileiros. “Hoje as políticas estão muito sujeitas à discricionariedade dos gestores e chefias dos poderes executivos e isso não se relaciona com a eficiência ou não dos organismos dentro dos municípios”, relatou a secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), Aline Yamamoto.

Desde 2003, quando a SPM foi criada, a pasta teve avanços significativos na ampliação do número de serviços, com a criação do Ligue 180, a inclusão de políticas voltadas às mulheres no PPA (Plano Plurianual) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a realização da Campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha, o lançamento do Programa Mulher, Viver sem Violência, o início da construção e abertura das Casas da Mulher Brasileira e a entrega de unidades móveis para atendimento a mulheres de regiões de difícil acesso em todos os estados brasileiros.

Diante das diversas demandas existentes no país em termos de acesso à Justiça, a secretária adjunta apontou a necessidade de formação e qualificação dos profissionais da rede para que não reproduzam estereótipos de gênero no atendimento às mulheres. “Fica claro como a cultura da violência está permeada nos serviços públicos por meio da revitimização, que nada mais é do que a tolerância da violência, presente também nos serviços especializados”, declara a representante da SPM-PR.

Desrespeito às leis e normas que defendem os direitos das mulheres

A desumanização das mulheres em situação de violência foi discutida pela advogada, pesquisadora e coordenadora da ONG Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, Leila Linhares Barsted. Representante do Brasil no Mesecvi – o Mecanismo da OEA para Acompanhamento da Implementação da Convenção de Belém do Pará, Leila enfatizou que as mulheres continuam sofrendo diversas formas de violência, que são atualizadas e naturalizadas no cenário social.

“Não dizemos mais que seres humanos são objetos, mas continuamos vendo as mulheres sofrendo as discriminações que desrespeitam todas as normas contidas na CEDAW e na Convenção de Belém do Pará”, frisou. Leila lembrou que mesmo incorporadas à legislação nacional, tais normas seguem desconhecidas pela maioria dos operadores do Direito, legisladores e gestores de políticas públicas, o que revela o “desrespeito aos direitos humanos das mulheres”.

“A sensação muitas vezes é de que vivemos uma espécie de esquizofrenia nacional. Temos um arcabouço jurídico, uma democracia formal e uma República ainda jovem, mas no entanto vemos também a permanência de padrões violentos e a negação dessa violência, seja quando nos classificamos como democracia racial, como país amoroso entre homens e mulheres ou quando não reconhecemos a tortura praticada durante a ditadura”, declarou.

Direitos sexuais e reprodutivos

Ao falar sobre a violência institucionalizada, a representante brasileira no Comitê de Acompanhamento da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) da ONU, Silvia Pimentel, lembrou que entre as violências contra as mulheres está o desrespeito aos direitos sexuais e reprodutivos, cuja violação causa danos e sofrimento e impede que usufruam dos direitos civis, políticos, econômicos e sociais. “Por problemas políticos, religiosos e ideológicos, o aborto não tem sido priorizado e não tem sido tratado como uma das múltiplas formas de violência contra as mulheres”, alertou.

Silvia Pimentel destacou que existe no Brasil uma dupla discriminação contra as mulheres de baixa renda, em sua maioria negras, forçadas a buscar serviços clandestinos de interrupção da gestação, enquanto as mulheres com condições econômicas favoráveis realizam abortos seguros. Segundo a Organização Mundial da Saúde são praticados no mundo 40 milhões de abortos por ano.

Pimentel mencionou ainda o relatório apresentado ao Conselho Econômico e Social da ONU, em janeiro de 1999, sobre políticas e práticas que impactam os direitos reprodutivos das mulheres, pela então relatora especial das Nações Unidas sobre Violência contra as Mulheres, Radhika Coomaraswamy, que destacou que “a imposição de sanção penal contra o aborto constitui uma forma de violência perpetrada pelo Estado de maneira direta, tendo em vista que o aborto inseguro é uma violação à integridade física e segurança pessoal da mulher. Em países em que o aborto é ilegal, as mulheres com gravidezes indesejadas são forçadas a recorrer a procedimentos inseguros que ameaçam suas vidas”.

No Brasil, uma em cada nove mulheres já passou por um procedimento de aborto clandestino, lembrou Silvia Pimentel, enfatizando que a criminalização do procedimento tem uma eficácia distorcida e perversa, porque não impede que a prática ocorra, mas impede que seja feita de forma segura. “O aborto inseguro constitui uma das principais causas de mortalidade materna em todos os países do mundo”, ressaltou Silvia Pimentel.

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Segundo dados fornecidos pela Comissão de Informação e Prestação de Contas sobre a saúde materna e infantil das Nações Unidas, ocorrem apenas na região da América Latina 4,2 milhões de abortos por ano, sendo 92% destes feitos em condições de risco. Somente no Brasil, mais de 215 mil mulheres são internadas por ano em hospitais devido a complicações decorrentes do aborto. Diante de tal cenário, a questão tem sido abordada pela ONU e suas agências, pela OEA, acadêmicos e movimentos feministas como uma questão de saúde, cidadania e autonomia das mulheres.

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