Liberação da posse de arma pode aumentar casos de feminicídios no Brasil

06 de novembro, 2018

Especialistas ouvidos pela VICE afirmam que revisão do Estatuto do Desarmamento pode intensificar agressões contra mulheres. O raciocínio é simples: mais armas em casa, mais mortes.

(Vice, 06/11/2018 – acesse no site de origem)

Um dos principais holofotes da campanha do presidente recém-eleito Jair Bolsonaro (PSL) foi a revisão do estatuto de posse de arma que facilitaria a compra de pistolas pelo cidadão comum. Para os especialistas ouvidos pela VICE, essa descomplicação na aquisição de armas seria um tiro no pé: aumentaria ainda mais os casos de violência doméstica e mortes de mulheres no país.

Os números mostram que o problema já é grave no Brasil. Segundo os dados do Mapa da Violencia e do Atlas da Violência, as vítimas mais comuns por disparo de fogo são jovens negros e mulheres. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras.

Segundo o Atlas da Violência, entre 1980 e 2016 cerca de 910 mil pessoas foram mortas por armas de fogo no país. Conta o documento que “Uma verdadeira corrida armamentista que vinha acontecendo desde meados dos anos 1980, quando a proporção de homicídios com o uso da arma de fogo girava em torno de 40%, esse índice cresceu ininterruptamente até 2003”, e só foi interrompida com a criação o Estatuto do Desarmamento. Já o Feminicídio só foi inserido no Código Penal em 2015, sendo configurado como homicídio qualificado, com pena de 12 a 30 anos.

Uma prova de que a posse de arma nunca foi garantia de segurança é a extinta Campanha Nacional do Desarmamento, que incentivava a população para o desarmamento. Foi uma ação do próprio Governo Federal que integrava o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, em apoio a Ações de Prevenção à Violência. A campanha motivava a entrega espontânea de armas de fogo, podendo a pessoa ser indenizada por até R$ 300, de acordo com o tipo e calibre da arma.

Nesse sentido podemos compreender que se antes o próprio governo incentivava a retirada de armas de fogo de circulação e logo depois foi sancionada a lei de desarmamento, não faria muito sentido o retrocesso de uma nova liberação da posse se arma no Brasil.

A advogada Maria Letícia Ferreira, do TamoJuntas, organização que presta assessoria jurídica, psicológica, social e pedagógica gratuita a mulheres em situação de violência, revela que o Brasil é o 5º país no ranking mundial de países que matam mulheres. Como maioria das vítimas é assassinada por parceiros e os crimes muitas vezes acontecem dentro de casa, a liberação do porte de armas pode ter efeitos catastróficos.

“Mulheres e crianças são as maiores vítimas da violência no lar. Com a liberação e aumento da circulação de armas de fogo, a letalidade das agressões deve aumentar incidindo sobre os índices de feminicídios”, explica a advogada da Bahia.

O Ministério Público do estado de São Paulo realizou pesquisa que concluiu que 66% dos feminicídios no Brasil ocorreram na residência da vítima e que 70% eram pessoas do convívio da vítima ou ex-cônjuge. A arma de fogo, por sua vez, é a segunda opção mais utilizada, abaixo somente de facas.

A regulamentação da posse de armas está vigente no Brasil desde 2003, mas nem sempre foi assim. Em meados dos anos 80 e 90, era possível a qualquer momento nos deparar, em jornais e revistas, com anúncios de venda de armas. O Estatuto foi criado para restringir a posse e o acesso a armas no país.

Parece que esse passado está próximo de se tornar realidade se formos considerar o plano de segurança de Jair Bolsonaro, com a revisão do projeto de lei que autoriza a aquisição, a posse e a circulação de armas de fogo e munições em território brasileiro.

Em publicação em sua rede social, o autor do projeto de lei, o deputado federal Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC), confirmou que o presidente eleito decidiu adiar a votação para 2019. Entre as declarações do texto: “a composição do novo Congresso é mais conservadora. Com os novos deputados, as chances de aprovarmos o PL 3722 são bem maiores”.

A advogada e mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ, Paola Bettamio, explica que a legalização do porte de arma foi uma experiência traumática em diversos países, pois “o problema da segurança muitas vezes se relaciona a outros, como a desigualdade social, a ausência de investimento em educação e lazer entre outros”. “Se não se resolver o problema pela raíz, todas as outras soluções se tornam ineficazes”, diz.

Mas é claro que a simples liberação de posse de arma não fará com que qualquer um vá ao mercado mais próximo e compre arma. Existem dois órgãos que controlam armas de fogos existentes no país. O Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), vinculado ao Exército Brasileiro, regula o armamento das forças armadas e auxiliares e, também, dos caçadores, colecionadores e atiradores esportistas; e o Sinarm – Sistema Nacional de Armas – vinculado ao Departamento de Polícia Federal, que centraliza o controle das demais armas de fogo.

A lei, em vigor até o momento, contém algumas restrições burocráticas para a aquisição de uma arma de fogo para defesa pessoal. O cidadão deve ter acima de 25 anos, solicitar autorização com a Polícia Federal e apresentar documentação, além de preencher formulário, justificando a efetiva necessidade e comprovar aptidão psicológica, ocupação lícita e antecedentes criminais negativos.

Para a advogada Maria Letícia, arma de fogo é poder e as pessoas relacionam segurança a maior força e poder. No entanto, no ambiente doméstico, as armas de fogo, além de causar acidentes, também aumentam a gravidade das agressões entre familiares já tão comum em nosso país.

Não podemos resolver o medo através do medo, como comenta a advogada Paola Bettamio. “As pessoas se sentem inseguras pela violência e respondem muitas vezes a esta insegurança através da mesma violência”, diz.

Por Gislene Ramos

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