Pesquisa revela que más condições de alimentação, sedentarismo e negligência médica elevam o risco de doenças graves entre mulheres em cárcere.
“Eu nunca senti fome até chegar na prisão”, afirma Júlia*, uma mulher negra de 50 anos, na porta do Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira, no Butantã, zona oeste de São Paulo. Ela falou com a Gênero e Número durante a saída temporária — benefício concedido a presas do regime semiaberto — que aconteceu em 16 de setembro.
A reportagem esteve no local ao lado da Por Nós — rede de sobreviventes do cárcere, pensada por e para mulheres egressas. As voluntárias chegaram às 5h10 com mais de 600 pães preparados (parte com presunto e queijo, parte com manteiga), café com e sem açúcar e garrafas de água. A tenda se transforma em parada obrigatória das mulheres que deixam a prisão, já que a última refeição que tiveram foi a janta do dia anterior, servida às 17h. “Eu vim tomar um cafezinho aqui”, diz Júlia, após um jejum de 14 horas.
O que Júlia denuncia se repete Brasil afora, como mostra a pesquisa Panorama Nacional de Alimentação e Acesso à Água no Sistema Prisional, conduzida em 2023 e publicada em 2024 pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Segundo o levantamento, feito com homens e mulheres encarcerados, “nas 1.113 unidades prisionais estaduais representadas na pesquisa, estão custodiadas 581.993 pessoas privadas de liberdade, portanto, a amostra representa o retrato da alimentação de 90,32% das pessoas institucionalizadas no sistema prisional nacional”.
“Fome aqui é frequente. É uma coisa que dói na alma, que mexe com o psicológico”, denuncia Júlia. Ela conta que, após contrair uma infecção da Penitenciária Feminina de Santana, não come mais a comida servida, somente o pão da manhã e o da noite.
A Resolução nº 3/2017 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária determina a oferta mínima de cinco refeições diárias: desjejum, almoço, lanche, jantar e ceia. Porém, apenas Amazonas e Tocantins cumprem a regra, e 16 estados chegam a oferecer menos de quatro refeições por dia, de acordo com a pesquisa. Além disso, apenas 576 das unidades oferecem feijão (51,7%), 579 arroz (52,0%), e 866 pão ou bolo (77,9%) — os três itens mais acessíveis. Em contraste, alimentos como peixe (37), frutas (275), proteína em geral (339) e verduras (514) aparecem em menos da metade das unidades.
“Fruta é quando aparece, e é aquela que já está quase para estragar. A salsicha chega a vir verde. Carne moída, quando você abre o bandeco [marmita], está podre”, diz Júlia.
Júlia chama atenção para a ausência de atividades físicas ou exposição ao sol. “Dizem que todo presídio tem direito ao sol. Aqui, a gente não tem. Quem trabalha, tem uma hora de sol no sábado”, diz.
Após sete anos em regime fechado, durante a primeira saída temporária, em março de 2025, ficou tão nervosa ao ver a rua que convulsionou. As crises de epilepsia pioraram após o encarceramento, conta. Apesar de tomar os remédios regularmente, Júlia não passa por nenhuma consulta médica desde janeiro.
“Eu não era assim”, diz, apertando a pele flácida do antebraço esquerdo, se referindo à magreza. “Eu era fortinha”, lembra. Enquanto espera um carro por aplicativo, chamado por uma voluntária, acrescenta: “Quando chegar na casa da minha mãe, eu quero comer arroz e feijão, sem mistura. Só arroz e feijão feito por mãe”.
Elas adoecem mais
O encarceramento atinge principalmente mulheres negras no Brasil. No primeiro semestre de 2025, 31.773 mulheres estavam privadas de liberdade nas unidades prisionais do Brasil, segundo o Relatório de Informações Penais, do Sistema Nacional de Informações Penais. Destas, 31.566 têm registro de raça/cor, sendo 64% autodeclaradas negras, como Julia. Em contrapartida, mulheres brancas representam 32% da população prisional feminina.
A nutricionista Edneia Carla Passo dos Santos, especializada em saúde da família e integrante da rede Ajeum – Rede de Nutricionistas e Estudantes de Nutrição Negros e Negras, que defende uma saúde antirracista para garantir o bem-viver –, explica que a fome nunca é um elemento só biológico. Para ela, não se trata apenas da “ausência de nutrientes ou de algum recurso alimentar imediato. É também isso, mas nunca é só isso”.
A má-alimentação ou a ausência dela, além de ferir tratados humanitários, é um dos fatores responsáveis pelo adoecimento precoce de mulheres, segundo a pesquisa Saúde de mulheres privadas de liberdade no Brasil, coordenada por Lígia Kerr, médica sanitarista, epidemiologista e professora da Universidade Federal do Ceará. O estudo revela que, apesar de serem majoritariamente jovens, as mulheres privadas de liberdade apresentam um perfil de saúde que se assemelha ao de uma população idosa.
De janeiro de 2014 a dezembro de 2015, Kerr visitou 15 centros de detenção em oito estados e no Distrito Federal ao lado de uma equipe de saúde. No total, examinaram e entrevistaram 1.327 mulheres. Mais da metade são negras (65%). Os resultados do trabalho, o mais amplo realizado com as presas brasileiras, vêm sendo detalhados em uma série de artigos publicados nos últimos anos.
Os achados mostram que mulheres encarceradas com menos de 30 anos têm 4,5 vezes mais chances de desenvolver hipertensão, 4,4 vezes mais risco de doenças cardiovasculares e três vezes mais propensão a crises de asma do que mulheres em liberdade.
A desigualdade se mantém entre as mulheres de 30 a 49 anos, com taxas de câncer e AVC mais que duas vezes maior que as das mulheres livres.
A prisão, portanto, não apenas falha em oferecer cuidados mínimos de saúde, como também pode acelerar o adoecimento, apontou a pesquisa.
Os dois principais fatores de risco para o desenvolvimento dessas doenças são: má alimentação e falta de atividade física. 92,1% das mulheres presas relataram ter alimentação inadequada, e 92,1% declararam ser sedentárias – ou seja, não realizarem nenhuma atividade física, pavimentando o caminho para o agravamento de quadros como hipertensão e doenças respiratórias.
Para Kerr, “é como se elas tivessem um perfil envelhecido, de aparência, de obesidade – que é um fator de risco para várias doenças – e de doenças crônicas”.
Santos alerta que “hoje já se sabe que a obesidade não é excesso de consumo de alimentos em si, mas de alimentos industrializados”. Segundo ela, paradoxalmente, “a obesidade hoje é desnutrida”.
“A gente olha para um excesso de gordura no corpo físico, mas em termos de saúde há uma deficiência muito grave de nutrientes importantes para o funcionamento desse próprio corpo”.
42% das presas que tiveram a escolaridade informada não completaram o ensino fundamental. Se considerarmos as mulheres que não concluíram o ensino médio, o número sobe para 71%. Juntas, somam mais da metade da população prisional feminina. Apenas 1.625 possuem ensino superior completo ou incompleto – meros 5,1%.
Para a psicóloga Fernanda Trevas, integrante da coletiva Liberta Elas, é preciso olhar o contexto de vida dessas mulheres para compreender a dimensão da violência carcerária, já que “muitas delas já vêm de um histórico de violência vivido na infância, na adolescência e no início da vida adulta”.
A pesquisadora Ligia Kerr confirma que essas mulheres, em sua maioria negras, já chegam ao sistema com acesso restrito à comida saudável por terem menor escolaridade e condições financeiras. Para ela, isso cria as bases para um ciclo destrutivo: “elas vão ter mais obesidade e depressão, uma coisa vai levando a outra”.
Dentro do sistema prisional, essas condições se intensificam. Trevas descreve um ambiente altamente traumático e insalubre, com tratamento muito violento e abusivo, de violência sexual, inclusive, de bater, de xingar. A psicóloga alerta: “A questão da saúde mental lá dentro é muito precária. Porque é uma rede de fatores. A comida não é boa. A gente já ouviu relatos de comida com bicho, comida sem gosto. A comida realmente é horrível”.
A negligência médica agrava o quadro. Kerr presenciou situações em que “o médico disse que negava ansiolítico (medicamentos usados para aliviar os sintomas da ansiedade, como medo, tensão e inquietação), porque elas tinham que sofrer mesmo pelo que elas tinham feito”.
Segundo a pesquisadora, mulheres em ansiedade, em depressão, podiam ter uma vida um pouquinho melhor tomando uma medicação, mas autoridades das unidades que ela frequentou para realizar a pesquisa, como diretores, carcereiros e agentes penais, defendiam que “elas tinham que sofrer para pagar o que elas fizeram”.
Para Trevas, “dentro dessas circunstâncias, a questão da depressão, ansiedade, a questão da automutilação é muito, muito forte dentro dos presídios”.
Kerr observa que a ansiedade explica taxas de fumo muito mais elevadas que a população geral, contrastando com mulheres de maior escolaridade. A pesquisadora reforça: “A obesidade não é para todos, o fumo não é para todos”, mas uma consequência da falta de infraestrutura, alimentação de qualidade e conhecimento sobre saúde.
Já para Santos, dentro do cárcere, não há ponto sem nó. “Todas as questões de acesso ou não são decisões políticas. Até as ausências e negações de direito”.
De acordo com ela, existe uma mentalidade de que “além da privação da liberdade, as pessoas presas têm que ser privadas de tudo que legitima a sua existência”.