Não ao PL 5069/2013, por Flávia Piovesan

12 de novembro, 2015

(O Globo, 12/11/2015) A ordem internacional enfaticamente recomenda aos Estados que assumam o aborto ilegal como questão prioritária e que sejam revisadas as legislações punitivas

Ao simbolizar uma grave violação aos direitos humanos das mulheres, a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara do projeto de lei nº 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha, em 21 de outubro, foi alvo de dezenas de protestos e manifestações da sociedade civil, que ecoaram por todo o Brasil — com destaque para Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo e Ceará, dentre outros estados.

O que está em jogo é a política pública de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual. O projeto dificulta o acesso das mulheres aos serviços de saúde relativos à interrupção da gravidez indesejada, autorizada por lei, no caso de estupro, impondo a realização de corpo de delito e do registro do Boletim de Ocorrência Policial. Impede o acesso à informação e orientações a respeito do aborto legal. Prevê ainda casos de prisão de profissionais de saúde que realizem o abortamento.

Para a organização Católicas pelo Direito de Decidir, “se este projeto for aprovado, já podemos prever suas consequências: retrocesso na saúde reprodutiva, aumento do número de abortos clandestinos, aumento da mortalidade materna, crescimento das clínicas clandestinas” (“Deixem as mulheres viver em Paz!”, Católicas protestam contra o PL 5069/2013).

A ordem internacional enfaticamente recomenda aos estados que assumam o aborto ilegal como uma questão prioritária e que sejam revisadas as legislações punitivas, considerado um grave problema de saúde pública. Reitera a preocupação no que se refere à elevada prática de abortos ilegais, que, em muitos países, é a principal causa para a mortalidade materna. Milhões de mulheres no mundo colocam em risco sua vida e sua saúde para interromper uma gravidez não desejada. A cada dia, 55 mil abortos são realizados de forma insegura — 95% deles ocorrem em países em desenvolvimento — e provocam a morte de mais de 200 mulheres por dia.

Neste contexto, faz-se urgente e necessária a rejeição ao PL 5069/2013, com base em argumentos de ordem jurídica, fática e política.

No plano jurídico, a criminalização do aborto viola os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Com fundamento nos direitos à liberdade, à autonomia, à vida e à saúde, há que se conferir às mulheres, na qualidade de pleno sujeito de direito, a partir de suas próprias convicções morais e religiosas, a liberdade de escolha quanto à interrupção da gravidez indesejada. A ONU considera discriminatório um Estado se recusar a implementar as leis que garantam a realização de serviços de saúde reprodutiva para as mulheres. A obrigação de garantir tais serviços requer medidas imediatas para efetivar o direito de acesso aos serviços de saúde, inclusive quando profissionais dessa área se recusam a prestar atendimento alegando objeções de consciência. Devem também os Estados promover treinamento apropriado para agentes de saúde, incluindo educação em saúde e direitos humanos.

Sob o prisma fático, o aborto figura como a quarta causa de morte materna no Brasil, sendo sua vítima preferencial a mulher de baixa renda. A legislação punitiva tem impacto, sobretudo, na vida de mulheres de baixa renda que, destituídas de outros meios e recursos, ou são obrigadas a prosseguir na gravidez indesejada ou sujeitam-se à prática de aborto em condições de absoluta insegurança. A ilegalidade do aborto leva à sua clandestinidade; a clandestinidade leva à insegurança; a insegurança leva à morte evitável de mulheres.

O paradoxo é que aqueles que, com grande veemência, defendem a inviolabilidade do direito à vida acabam por contribuir para a morte seletiva de mulheres. Os países com as menores taxas de aborto são os da Europa Ocidental, onde o aborto é legal e de fácil acesso, enquanto que os países da América Latina apresentam taxas cinco a oito vezes mais elevadas. Há uma crescente tendência na América Latina voltada à descriminação do aborto, valendo menção à legislação adotada no México em 2007 e no Uruguai em 2012.

Por fim, adicione-se o argumento de ordem política, eis que o Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos humanos, na busca de uma sociedade livre, diversa e plural. Há que se garantir a separação entre o sagrado e o profano; entre o dogma e a razão.

O drama do aborto ilegal tem gerado um evitável e desnecessário desperdício de vidas de mulheres. A ilegalidade do aborto adoece, condena e rouba a vida das mulheres. Sob a ótica da saúde pública e da justiça social, fundamental é o repúdio ao PL 5069-2013 em prol do direito das mulheres ao respeito e à dignidade.

Flávia Piovesan é professora de Direitos Humanos

Acesse o PDF: Não ao PL 5069/2013, por Flávia Piovesan (O Globo, 12/11/2015)

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