“Agressão que sofri ainda dói muito”, diz Maria da Penha, 11 anos após lei

06 de agosto, 2017

A voz suave e os gestos delicados da farmacêutica cearense Maria da Penha Fernandes, 71 anos, contrastam com os momentos brutais de sua vida. Em 1983, o ex-marido, o professor Marco Antonio Heredia Viveros, tentou matá-la duas vezes. Na primeira, deu um tiro à queima-roupa em suas costas, a deixando paraplégica. Na segunda, tentou eletrocutá-la. A história trágica virou símbolo da luta contra a violência que atinge milhares de mulheres ainda hoje, diariamente.

(UOL, 06/08/2017 – acesse no site de origem)

Apesar do trauma que a toca profundamente, Maria da Penha comemora a criação da lei 11.340, batizada com seu nome. Há 11 anos, ela pune aqueles que cometem violência doméstica. “Foi uma surpresa grande ver a minha luta pessoal beneficiar tantas mulheres que, assim como eu, foram agredidas”, conta. “O meu sofrimento, de certa maneira, deixa de existir quando as vejo tendo a coragem de denunciar. Se minha luta não tivesse tomado o rumo que tomou, talvez eu não fosse uma pessoa feliz hoje.”

Em 2009, para fortalecer a causa, ela criou ainda o Instituto Maria da Penha. No Brasil, há 13 casos de feminicídio por dia, segundo dados do Mapa da Violência (2015). O número nos coloca na quinta posição do ranking de países que mais matam mulheres no mundo. Por meio de ações educativas, que se dão principalmente em Fortaleza e no Recife, a organização tem como objetivo mudar essa realidade.

Maria da Penha espera que este dia 7 de agosto, quando a lei que leva seu nome comemora mais um aniversário, não passe em branco.

“Sempre que conto minha história, a dor se repete”

“Meu agressor foi condenado a oito anos de prisão, só dezenove anos depois do crime. Ficou preso por dois. Foi tão pouco! Não acho que a justiça foi feita no meu caso. O homem que me tentou tirar a minha vida está por aí, solto.

Sempre que recordo as agressões que sofri, minha boca fica seca, sinto sede. A dor se repete.

Só não me impacta de maneira ainda pior, porque sei de pessoas que foram salvas depois da criação da lei. Isso me conforta.”

“Minhas filhas também foram agredidas”

“Viviane, Claudia Fernanda e Fabíola tinham 7, 5 e 2 anos na época. Minhas filhas também foram agredidas pelo pai. Elas só não passaram por coisas piores porque as levei para morar com os avós. Meus pais conseguiram dar a elas o amor e o amparo.

Minha luta pela causa também contribuiu para amenizar a dor das minhas meninas. Graças a Deus, sobrevivi e impedi que ficassem órfãs. As crianças que perdem as mães são as maiores vítimas invisíveis da violência doméstica.”

“Não consigo perdoar”

“Acho que é possível perdoar um parceiro agressor. No meu caso, no entanto, não tem como. Por que eu deveria perdoar alguém que tentou tirar a minha vida duas vezes? Se tivesse sido um problema de relacionamento arranhado por grosserias, talvez, eu tivesse repensado. Agora, um quase assassinato, é impensável.

O feminicídio é o fim trágico de um longo ciclo de violência. Muitas das vítimas são mulheres esperançosas de que o homem que amam repense sua conduta e mude. Nessa expectativa, morrem sendo agredidas.

Por isso é grave que crimes de gênero sejam chamados de ‘passionais’. Isso minimiza a culpa dos homens e a dor das vítimas.”

“Só prender não resolve”

“Acho necessária a criação dos centros de reabilitação dos agressores. Acredito no potencial de transformação de cada um deles.

Os homens precisam entender que não têm poder sobre a mulher. Elas não são uma propriedade. Isso é um ensinamento machista que costuma ser passado de pai para filho. Muitos deles viram suas próprias mães apanharem e repetem esse padrão.

Mas a cadeia é necessária para quebrar a ideia de impunidade. Muitas mulheres já me disseram que no momento em que um agressor foi preso em sua comunidade, o marido nunca mais lhe levantou a mão.

É importante que o poder público garanta a segurança da vítima que não tem condições de voltar para casa após a denúncia. Elas devem ser blindadas de qualquer contato com o agressor. Só assim conseguem reformular suas vidas. Isso só é possível por meio de medida restritiva, a maior conquista da lei Maria da Penha.

Se isso existisse na minha época, minha história teria sido completamente diferente. Eu, por exemplo, só consegui sair de casa graças a um documento de separação de corpos, que permitiu que eu não perdesse a guarda das minhas filhas. Ainda corri esse risco, de deixá-las com o pai violento.”

“O fim da Secretaria das Mulheres foi um retrocesso”

“Entre as histórias que mais me marcaram estão aquelas contadas por idosas que enfrentaram uma vida inteira marcada pela violência. Só se sentiram livres depois que os companheiros morreram. A separação antigamente era um grande escândalo. Elas preferiam a dor.

O caminho para que isso não se repita é a criação de centros de referência da mulher, um lugar onde elas possam desabafar e serem orientadas por uma equipe de profissionais preparados – psicólogos, assistentes sociais e advogados. Além disso, é necessária a criação de mais Delegacias da Mulher, que hoje estão sucateadas. Ambos precisam trabalhar em conjunto.

Mas nosso governo é tão imprevisível, que torço para que não haja ao menos passos para trás. O fim da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres já foi um grande atraso.”

“A educação será o agente transformador”

“Nossa cultura machista só será desconstruída por meio da conscientização de crianças e adultos. O Instituto Maria da Penha não realiza ações diretamente com as vítimas de violência, mas tem, por exemplo, parceria com universidades de Fortaleza e do Recife. Oferecemos o curso ‘Defensores e defensoras do direito à cidadania’, desde 2011.

Nós levamos toda a informação necessária para os futuros aplicadores da lei. Repassamos ainda esse conhecimento a líderes comunitárias para que elas impactem o ambiente onde vivem. Anualmente, a Semana Maria da Penha leva atividades às escolas para conscientizar crianças que muitas vezes convivem com a violência dentro de casa.”

Daniela Carasco

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