As feridas invisíveis provocadas pelo estupro e que não cabem no boletim de ocorrência

31 de maio, 2016

(HuffPost Brasil, 31/05/2016) Sinais de uma relação sexual não consentida. Marcas de coação e agressão. Vestígios de esperma na cena do crime – manchas nas roupas, lençóis, almofadas, móveis, tapetes, chão – e no corpo da vítima. Exame de DNA do esperma encontrado.

A apuração pericial de um estupro depende, fundamentalmente, da coleta de indícios do crime e de exames clínicos que apontem para a probabilidade e posterior comprovação do fato ocorrido. Passa, portanto, pelo corpo e por sinais físicos da existência do crime.

Mas uma etapa anterior, e muito imprescindível, é a denúncia do estupro. Nessa fase, a vítima é ouvida, e seu relato expressa um sem-número de medos, confidências e lembranças dolorosas.

Para quem escuta, é a oportunidade de perceber uma violência que vai além da corporal, e feridas que não cabem em um boletim de ocorrência. Como reportar o constrangimento, o terror diante da violação, o desespero, o desrespeito, a confiança abruptamente abalada ou o horror do desconhecido, o domínio por quem foi mais forte, a preocupação com o que os outros vão pensar?

Aí entra um residual invisível, pesado, complexo e, justamente por isso, essencial para pensarmos as consequências de um estupro. O corpo machucado não resume a situação de desamparo de quem passou por isso.

Uma das consequências possíveis é a instauração de um trauma, que pode gerar qualquer tipo de sofrimento, como medo, sensação de perseguição, doenças psicossomáticas, crueldade e sentimento de vingança, explica o psicanalista e sexólogo Sérgio Máscoli, que atua em clínica particular e no Projeto Sexualidade (ProSex), do Instituto de Psiquiatria da USP.

A família da vítima também carrega os efeitos psíquicos de um estupro e, portanto, também deve ser tratada, ele destaca. “Se alguém da família foi estuprada(o), todos da família também, pois a família é um sistema interligado e é uma expressão cultural.”

“No caso da vítima, podemos elencar quadros que vão de crises de ansiedade, depressão até suicídio. Mas, o fato é que ninguém passa incólume”, atesta Paula Land Curi, doutora em Psicologia Clínica e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O HuffPost Brasil perguntou a ela e à psicóloga em formação Ivana Maria Fortunato de Barros sobre os efeitos psíquicos de um estupro sobre a vítima. Ambas atuam em um projeto que acolhe mulheres vítimas em Niterói, no Rio de Janeiro.

A experiência de Curi mostrou quão delicado é o momento da denúncia: Nem sempre os familiares estão por perto.

“Normalmente, quando uma mulher é estuprada e consegue pedir ajuda, ela chega às unidades de saúde sozinha. Sente vergonha de contar a experiência vivida, sente medo de ser criticada pela própria família. A mulher vive sua dor na solidão. Nem mesmo o parceiro, com o qual muitas vezes essa mulher dividiu uma vida, tem conhecimento do que aconteceu”, ela relata.

Essa vergonha está diretamente ligada ao machismo que estrutura nossa sociedade, impondo identidades e padrões de comportamento para a mulher, contextualizam Curi e Barros.

“Assim, cria um modelo do que é ser mulher, restringindo as roupas que ela pode vestir, o horário em que pode estar na rua, os lugares que pode frequentar, como pode se comportar, como deve se relacionar com os homens. Assim, a mulher que não se encaixa nesses padrões é culpabilizada por tudo aquilo que lhe acontece. É assim com a mulher que é assediada na rua e a culpam pela roupa que estava vestindo, ou com a mulher que apanha do marido e as agressões são justificadas por ela não ter aceitado algo que ele lhe impôs.” 

Elas citam como exemplo a adolescente de 16 anos vítima de um estupro coletivo, no Rio de Janeiro, no dia 21 de maio. O caso está sendo investigado e despertou grande comoção, uma vez que um vídeo divulgado nas redes sociais aponta para a participação de 33 homens no estupro. O então responsável pela investigação, o delegado Alessandro Thiers, foi afastado no dia 29 de maio, depois que a então advogada da vítima, Eloísa Samy, o acusou de “machismo” e de constranger a adolescente durante o depoimento.

“No caso desta menina, o medo dela se justifica, por exemplo, quando vemos diversas vezes ela sendo questionada, em várias instâncias e de diversas formas, sobre o que estava fazendo no local, se ela já havia se relacionado com algum dos estupradores, ou quando vemos uma enxurrada de comentários na internet buscando culpabilizá-la por algum comportamento.”

Independentemente do caso citado acima, em um percurso que transforma vítimas de estupro em provocadoras, o medo impede que as mulheres denunciam o crime e busquem assistência após uma violência, analisam Curi e Barros. Neste contexto, tudo fica pior.

“Sem cuidados em saúde, os agravos físicos e psíquicos podem se intensificar.Vale lembrar que as instituições não são distintas da sociedade em que se inserem. Deste modo, o machismo também está presente nelas.”

Da mesma maneira que é preciso desconstruir uma sociedade estruturada pelo machismo, é necessário rever a maneira como se enxerga os efeitos do estupro – atualmente configurado na presença de conjunção carnal ou de atos libidinosos.

Curi e Barros questionam:

“O estupro, como ato de violência, age diretamente no corpo, mas, para além da carne. Contudo, a sociedade tende a vê-lo como algo banal, quase sem efeito para aquele que a sofreu, especialmente quando não apresenta os sinais que procuramos.”

Esses sinais dizem respeito à (não) vontade da pessoa estuprada de praticar o ato sexual ou libidinoso, afirma Curi.

“Há uma busca por evidências que comprovem ‘que a mulher não queria’, ‘que ela poderia ter lutado para evitar’. Logo, busca-se pelo que é visível. Contudo, isso é mais um equívoco enorme, que leva a inúmeros problemas nos encaminhamentos dados aos casos de estupro. A sociedade, em geral, deixa de escutar essas mulheres quando não consegue deixar de fora o julgamento moral.”

Com esse julgamento, há uma tendência em ser inverter os autores: a vítima se torna culpada.

“Nos casos de estupro, recorrentemente, são as vítimas que têm que provar que não tiveram culpa e que não contribuíram para o crime. Desta forma, podemos dizer que deixamos de escutar o que elas têm a dizer, visto que há uma tendência a desconsiderar sua fala e a provocar seu silenciamento. O que temos visto é que temos uma sociedade que, surda, tolera o estupro. Embora tenhamos conseguido avançar na lei e apontar que o ponto fundamental da questão não é a ruptura himenal da mulher honesta, como era antes, mas sim o consentimento, nós ainda vemos uma sociedade que não consegue pensar além das evidências corporais.”

Confirmar a existência de um estupro se torna, portanto, ainda mais complexo: “Se com as marcas no corpo, nunca foi simples apurar o fato, hoje então… O fato é que se não conseguirem se deslocar do corpo biológico, não conseguirão escutar o que a mulher tem a dizer. Afinal, escutar não é sinônimo de ouvir”, lembra Curi.

Máscoli ressalta a importância de se pensar a vítima como um todo:

“O corpo mental é tão corpo como a vagina. Tratá-los de forma fragmentada é esquartejar o corpo da vítima em fatias, para que cada especialista veja e dê sua avaliação do fragmento analisado. A violência sexual pode, inclusive, ser não verbal/tátil, mas por atitudes de quem se julga empoderado para fazê-la”.

Falar sobre o fato dói, seja no momento da denúncia, para apuração do caso, ou depois, para receber os cuidados médicos e psicológicos. Mas é extremamente importante. Igualmente importante é ter alguém sensível a esse relato, que deve ser sempre reservado ao máximo da privacidade e do acolhimento.

Seja um médico ou um policial, “suas condutas devem estar embasadas pelos princípios e pela ética que regem suas categorias e não por ideologias que atravessam a sociedade e, muitas vezes, se colocam contra as mulheres que procuram ajuda”, pondera Curi.

“Devemos sempre lembrar que existe uma rede serviços de saúde voltados à assistência às mulheres em situação de violência sexual. Isso não é nada novo. Contudo, nem sempre as mulheres chegam a ela. Nos protocolos de atendimento, o suporte psicológico está garantido desde a entrada da mulher nas unidades de referência. Os atendimentos podem continuar, ficando a critério da mulher, no segmento ambulatorial. Ou seja, a mulher será acompanhada por um psicólogo enquanto necessitar de seus cuidados”, reforçam Curi e Barros.

Superar um estupro, por outro lado, permanece como uma pergunta sem resposta, afirma Curi. Há muitas variáveis em questão. “No entanto, podemos oferecer um espaço de escuta para que a mulher seja escutada em sua dor.”

A análise pode ser uma via de ajuda para suportar o fato, destaca Máscoli, na medida em que trabalha o sofrimento relacionado ao estupro. “Ela auxilia o fortalecimento do ego da vítima e ajuda a empoderá-la para superar o trauma, cujas lembranças permanecerão na memória, e não no afeto/emoção da vítima analisada.”

Amanda Mont’Alvão Veloso

Acesse no site de origem: As feridas invisíveis provocadas pelo estupro e que não cabem no boletim de ocorrência (HuffPost Brasil, 31/05/2016)

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