Em evidência após vídeo na Rússia, machismo no futebol é recorrente no Brasil

22 de junho, 2018

Torcedoras vivem realidade de desrespeito nos estádios brasileiros, mas tomam frente em movimentos pela igualdade de gênero também dentro do esporte

(Globo Esporte, 22/06/2018 – acesse no site de origem)

A repercussão dos vídeos contendo manifestações machistas de brasileiros durante a Copa do Mundo escancarou para toda a sociedade o que as torcedoras, principalmente as que frequentam estádios, já sabem há muito tempo: mulheres são frequentemente alvo de diversos níveis de machismo no ambiente futebolístico.

O incômodo com o machismo no futebol vem fazendo as mulheres se unirem por mais respeito e igualdade. Um dos movimentos, que engloba diversas torcidas, é o Mulheres de Arquibancada – Resistência e Empoderamento. O grupo já realizou um encontro nacional, no ano passado, no Museu do Futebol, em São Paulo, para discutir pautas ligadas à equidade de gênero no ambiente futebolístico. Uma das lideranças do coletivo, Elise Oliveira ressalta a luta das companheiras contra o sexismo no futebol.

– Esse tema está ficando cada vez mais visto pela sociedade, porque estão acontecendo coisas muito grandes, como o caso da torcedora na Rússia. Foi um grande abuso, porque ela não sabia sequer o que foi dito. A cultura machista está inserida no futebol como se fosse a única cultura. O gênero feminino não tem um espaço lá. O movimento Mulheres de Arquibancada luta por igualdade. Nós queremos fazer parte do futebol como todo mundo. Só queremos igualdade, nada além disso – disse Elise.

Elise é torcedora do Atlético-PR e uma das lideranças no Mulheres de Arquibancada (Foto: Arquivo pessoal)

Elise é torcedora do Atlético-PR e uma das lideranças no Mulheres de Arquibancada (Foto: Arquivo pessoal)

“Escuto ‘vaca’, ‘p***’, ‘vagabunda’. ‘Para de berrar, você deveria estar na cozinha’, ‘cale a boca, você não entende de futebol’. Acontece muitas vezes. Tenho encarado com mais firmeza. A luta contra o machismo tem que ser abrangente, não pode ficar apenas dentro dos movimentos.”

Cultura brasileira: machismo em diversos campos

Pesquisadora de questões de gênero e esporte na Universidade estadual de Maringá, Patricia Lessa destaca que as manifestações machistas aparecem não somente no futebol, mas na cultura do Brasil, de uma maneira geral.

O machismo no Brasil vai além do futebol, afirma pesquisadora (Foto: Monique Torquetti/Mulheres de Arquibancada)

O machismo no Brasil vai além do futebol, afirma pesquisadora (Foto: Monique Torquetti/Mulheres de Arquibancada)

– Essa é uma realidade comum, infelizmente, onde deveria ser um espaço de respeito. Vejo como algo ligado a uma cultura do país. Há alguns anos me deparei com uma campanha publicitária de turismo para o Brasil com uma bunda estampada. Eu não acredito que seja uma questão específica do futebol. Tem, claro, uma coisa do futebol, mas está enraizado na cultura do Brasil – afirma Lessa.

Os números mostram que o machismo, de fato, faz parte da realidade do Brasil. Uma pesquisa Datafolha do fim de 2017 revelou que 42% das brasileiras relataram ter sofrido assédio. Entre as mulheres mais jovens, de 16 a 24 anos, o índice salta para 56% – mais da metade das participantes desta faixa etária.

“O assédio sexual está representado na arquibancada porque o machismo impera na cabeça de muitos”, afirma Elise.

Elise acredita que o machismo no futebol é reflexo da mentalidade dominante no país (Foto: Arquivo pessoal)

Elise acredita que o machismo no futebol é reflexo da mentalidade dominante no país (Foto: Arquivo pessoal)

O Ministério Público do Distrito Federal já abriu um inquérito para investigar o caso dos torcedores que fizeram uma mulher na Rússia repetir palavras chulas referentes ao órgão genital feminino, sem saber do que o conteúdo se tratava. A decisão do MPF é tomada com base nos artigos 1 e 3 da Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Quando as ocorrências se dão em terras brasileiras, no entanto, a eficácia nem sempre é a mesma.

A subnotificação dos casos é um dos problemas quando o assunto é combate ao assédio nos estádios. Uma das pautas levantadas no encontro nacional do movimento Mulheres de Arquibancada foi a criação de delegacias especializadas para receber esse tipo de denúncia e a maior divulgação de que essas ocorrências podem e devem ser denunciadas.

1º Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada reuniu mais de 300 torcedoras em São Paulo (Foto: Guto Abreu)

1º Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada reuniu mais de 300 torcedoras em São Paulo (Foto: Guto Abreu)

– As mulheres não denunciam. Precisa, a princípio, ter uma instrução de que assédio é crime. Se acontecer, você tem que denunciar. Falta um pouco de informação e de aceitar que o assédio existe, inclusive vindo dos órgãos públicos, que são responsáveis. Um desses torcedores da Rússia perdeu o emprego. Vai servir de exemplo – acredita Elise.

O ministro do Esporte, Leandro Cruz, concedeu entrevista lamentando os vídeos gravados com a torcedora na Rússia. Cruz citou o programa do governo federal Esporte Sem Assédio, lançado em março deste ano, pelo Ministério do Esporte e a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres. A iniciativa, no entanto, foca na prevenção e combate à violência e ao assédio às atletas, mas não menciona a questão das torcedoras.

Em nota, o Conselho Nacional de Direitos da Mulher afirmou que o ato “corrobora a existência de uma realidade de agressões físicas, verbais, psicológicas e morais a qual são submetidas frequentemente várias mulheres no Brasil e no mundo”. Vale destacar que o país registra uma média de 135 estupros por dia – 49.497 por ano –, mas por conta da subnotificação, os números reais devem girar em torno de 300 mil a 500 mil a cada ano. Os dados são do Atlas da Violência de 2018, estudo elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com o mesmo documento, uma mulher é assassinada a cada duas horas no país.

Na lei

Ocasiões frequentemente classificadas na categoria de assédio, como toques sem autorização, cantadas ofensivas e “passada” de mão, são consideradas contravenção penal, sem previsão de prisão, apenas pagamento de multa. Em caso de violência envolvida, passa a ser enquadrado como estupro – a pena vai de seis a 10 anos de prisão, caso não haja o chamado agravante. Os xingamentos, por ofender a honra, a dignidade e humilhar a vítima, se enquadram como injúria, que pode prever prisão ou pagamento de multa.

Machismo no lado político

Uma das fundadoras do Movimento Toda Poderosa Corinthiana, coletivo que incentiva a presença feminina nos jogos e luta por igualdade de gênero dentro – e fora – do clube, Mônica Toledo afirma que existem diversas maneiras de manifestação de machismo. A torcedora explica que, nos jogos do Alvinegro, nunca sofreu nenhum tipo de assédio como o da mulher na Rússia, mas ressalta que enxerga a presença de outras faces da discriminação de gênero.

– Em termo de Corinthians, 52% da torcida é de mulheres. Mas nós ainda não temos representatividade política. Somos minoria entre os conselheiros. Não vemos uma diretora de futebol, técnica ou preparadora física. Ainda falta infraestrutura para a mulher nos estádios. O futebol ainda é machista e voltado para o homem – critica Mônica.

Mônica Toledo e Analu Tomé, duas das fundadoras do Movimento Toda Poderosa Corinthiana (Foto: Arquivo pessoal)

Mônica Toledo e Analu Tomé, duas das fundadoras do Movimento Toda Poderosa Corinthiana (Foto: Arquivo pessoal)

Mônica acredita que falta um posicionamento mais firme das entidades, incluindo federações e clubes. A alvinegra acredita que os estádios precisam contar com ouvidorias para atender as torcedoras, além de pedir mais oportunidades para mulheres exercerem cargos e atividades dentro dos clubes.

– Ainda acham que você pode só ficar no departamento social do clube. Cada vez mais as mulheres estão sabendo mais. A onda do feminismo vem influenciando muito no futebol. Seria importante os clubes terem campanhas em favor das mulheres – completa Mônica.

Mundo virtual na defesa da igualdade

A defesa dos direitos da mulher vem ganhando força nos últimos anos, dando origem ao que muitos denominam como a quarta onda do feminismo, bastante marcada pelo ativismo nas redes sociais. A grande repercussão e indignação com o vídeo de assédio na Rússia mostra a força da militância na internet.

– O machismo no Brasil é geral. É um dos piores países para ser mulher, em questão de oportunidades e uma série de coisas. Muitas torcedoras estão criando coletivos. Elas estão se movimentando – destaca Mônica.

Torcedoras do Corinthians lutam contra o machismo e incentivam o futebol feminino (Foto: Reprodução/Facebook)

Torcedoras do Corinthians lutam contra o machismo e incentivam o futebol feminino (Foto: Reprodução/Facebook)

De fato, boa parte dos grupos de ativismo relacionados a clubes ou torcidas organizadas também foram originados online. Elise explica que o movimento Mulheres na Arquibancada conseguiu mobilizar torcedoras nos quatro cantos do país.

– O movimento foi criado para juntar realmente mulheres do Brasil todo. Eu vejo o movimento hoje como um conjunto de culturas e experiências da arquibancada. Conseguimos juntar tantas mulheres graças à internet. A rapidez no tráfego das informações ajudou muito. Enquanto as pessoas não desconstruírem esse pensamento [machista], a luta vai continuar – afirma Elise.

Movimento Mulheres de Arquibancada luta por igualdade no futebol (Foto: Monique Torquetti/Mulheres de Arquibancada)

Movimento Mulheres de Arquibancada luta por igualdade no futebol (Foto: Monique Torquetti/Mulheres de Arquibancada)

A pesquisadora Patricia Lessa aponta a importância da internet no processo de empoderamento e descoberta de que as mulheres são sujeitos da própria história.

– Existe um momento de empoderamento muito grande entre as meninas. As mulheres estão se empoderando, não querem mais que a voz do homem as represente. As pessoas estão mais empoderadas, então o número de denúncias cresce. O mundo virtual ajuda muito a colocar esse assunto em discussão e as pessoas se educarem. Esse tipo de atitude [dos torcedores na Rússia] não pode ser considerada normal – finaliza Lessa.

Jamille Bullé

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