Promotor e juíza serão investigados após interrogatório machista de vítima de estupro no RS

13 de setembro, 2016

“Tu fez (sic) eu e a juíza autorizar um aborto e agora tu te arrependeu assim? […] Sabe que tu é uma pessoa de muita sorte, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora […] pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá. Porque tu é criminosa. ”

(Jota, 13/09/2016 – acesse no site de origem)

Assim o promotor de justiça Theodoro Alexandre Silva Silveira se dirigiu a uma adolescente, vítima de estupro pelo pai, durante uma audiência judicial no Rio Grande do Sul.

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A fala de Silveira, que é promotor na cidade de Júlio de Castilhos, centro do estado, foi feita do dia 20 de fevereiro de 2014. O encontro, presenciado também pela juíza encarregada do caso, era para apurar a responsabilidade do estuprador.

Alguns meses antes, a menina havia dito, em juízo, que o pai abusava sexualmente dela. Contou detalhes sobre o abuso sexual que sofria.

Ela estava grávida, e conseguiu autorização judicial para interromper a gestação. Após a realização de exames e confirmada a gravidez, a menina se mostrou perturbada – não entendia o grau de parentesco que a criança teria com ela, por ser ao mesmo tempo filho e irmão.

Depois disso, ela foi ouvida novamente pela Justiça, mas negou os abusos. Há a suspeita de que ela foi pressionada pela própria família a realizar a retratação. Foi quando o promotor a interpelou da audiência, chamando a vítima de “mentirosa” e dizendo que se esforçaria para “ferrar” a menina.

Leia íntegra da Apelação

A transcrição do diálogo entre o promotor e a adolescente veio à tona após denúncia feita pela 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que expediu ofício ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e à Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ), para apurar a humilhação da jovem. O promotor tirou férias de 30 dias, sem se manifestar.

A postura da juíza que presidiu a audiência também foi alvo de pedido de providências ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O comportamento do promotor foi considerado “inaceitável humilhação” pela desembargadora relatora Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em seu voto.

“Concluído este [o aborto], a família imaginou que o infortúnio estivesse resolvido e tudo ficaria como antes, então, certamente, a vítima foi induzida a retratar-se. E isso lhe custou uma inaceitável humilhação em audiência, pois o Promotor de Justiça que atuou na solenidade a tratou como se ela fosse uma criminosa, esquecendo-se que só tinha 14 anos de idade, era vítima de estupro e vivia um drama familiar intenso e estava sozinha em uma audiência”, anotou a magistrada.

Em seguida, ela ressalta que função da Promotoria é auxiliar a vítima e não acusá-la.

“A menina necessitava de apoio de quem conhece estes tristes fatos da vida e não de um acusador, pois a função do Promotor de Justiça é de proteção da vítima e, no caso, ao que tudo indica, ele se sentiu ludibriado pela menina, por ter opinado favoravelmente ao aborto e, posteriormente, ela não confirmar a denúncia.”

Antes de terminar exigindo que o tratamento dado pelo promotor à vítima pedia “providências”, a desembargadora também criticou a atuação da juíza que assistiu ao comportamento do promotor.

“O pior de tudo isso é que contou com a anuência da magistrada, a qual permitiu que ele fosse arrogante, grosseiro e ofensivo com uma adolescente”, diz a desembargadora. “Um verdadeiro absurdo que necessita providências.”

Em seu voto, o desembargador José Antônio Daltoe Cezar também criticou a atuação do promotor. “Para dizer o menos, foi lamentável”, afirmou.

Para o Cezar, a atuação de Silveira demonstra seu desconhecimento técnico, uma vez que são “comuns e até mesmo previsíveis” as situações em que a vítima muda a versão em casos de abuso sexual no ambiente familiar.

Assim, Silveira “confunde os institutos de direito penal, além de desconsiderar toda normativa internacional e nacional, que disciplina a proteção de crianças e adolescentes”, disse o desembargador.

Ao julgar a apelação, a Sétima Câmara Criminal do TJ-RS condenou o pai da vítima a 17 anos de reclusão, constando o parentesco como agravante da pena.

Aborto

O Código Penal permite a realização de aborto em casos de estupro, o que estaria comprovado pela idade de vítima quando engravidou do pai (13 anos). Neste ponto, ao confrontar a vítima adolescente sobre o procedimento, o promotor estaria exorbitando de suas funções. Segundo o desembargador,

“A irresignação apresentada pelo Dr. Promotor de Justiça na solenidade, dizendo que iria “ferrá-la” e não descansaria enquanto ela não dissesse quem a engravidou, e que faria o possível para colocá-la na cadeia, apresentou-se ilegal e inadmissível”, disse.

Citando a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, o desembargador afirmou ainda que a postura do promotor impediu que a adolescente exercesse seu direito, como vítima, de relatar o que havia ocorrido. Diz o artigo 12 da Convenção:

“É assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.”

Revitimização

Especialistas ouvidas pelo JOTA afirmam que a conduta do promotor, além de ser incompatível com a função que desempenha, estaria ligada a uma paisagem cultural específica: a do machismo entre os operadores do direito.

Essa situação revela, no mínimo, dois problemas fundamentais do sistema de justiça brasileiro: quem faz o diagnóstico é a professora de Direito Penal e Processual Penal Carolina Costa Ferreira.

Deixa às claras problemas culturais típicos de uma sociedade machista, como a culpabilização da vítima, em especial de uma mulher, atribuindo a ela a responsabilidade por relações sexuais não consentidas e por um aborto legal, pois praticado em decorrência de estupro.

Mostra também, segundo a especialista, a impotência do sistema de justiça criminal em lidar com as vítimas de crimes.

“No processo penal, a vítima tem pouco – ou nenhum – destaque. O Direito Penal não tem instrumentos adequados para tutelar os interesses das vítimas, que associam a pena à vingança pura e simples”, afirma.

Para Ferreira, o comportamento do membro do Ministério Público neste caso só reforça a ideia de que as mulheres vítimas de estupro têm responsabilidade pelos crimes e demonstram a total inabilidade em lidar com conflitos complexos, como é o caso da violência sexual praticada no âmbito familiar.

“O operador jurídico está tão comprometido com a cultura patriarcal, que se chega ao ponto em que ele se esquece por completo do princípio da legalidade, a tutela dos direitos fundamentais. A força quase inercial da cultura patriarcal é tão forte que é capaz de remover o conhecimento dos conceitos mais básicos de direito penal”, avalia a professora de teria do direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ana Lúcia Sabadell.

É que, ainda que não tivesse sido, de fato, estuprada pelo pai – como ficou comprovado pelo exame de DNA – promotor e juíza ainda estariam diante de um caso de estupro de vulnerável. Com total admissibilidade de aborto. Afinal, a menina tinha 13 anos quando engravidou em decorrência de abuso sexual.

Diz o Código Penal Brasileiro no seu artigo 128, do Decreto-Lei n° 2848 de 07/12/1940: “Não se pune o aborto praticado por médico: “I – Se não há outra maneira de salvar a vida da gestante. II – Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu responsável legal”.

No livro “Manual e Sociologia Jurídica. Introdução a uma leitura externa do direito”, a professora fez uma análise, caso a caso, de sentenças produzidas do sistema judicial brasileiro. Lá, mostra a violência de gênero na prática. Para Sabadell, isso fica ainda mais evidente nos processos por crimes de natureza sexual.

“É muito comum encontrar sentenças em que o foco de discussão não é a violência sexual sofrida pela vítima, mas o seu comportamento, a sua moral sexual. Nestes casos, a mulher é submetida a uma segunda vitimização. A primeira é a agressão praticada pelo ofensor e a segunda decorre da forma como a vítima é tratada pelo sistema de justiça”, lamenta a pesquisadora.

A linguagem empregada pelo promotor também chocou Sabadell.

“Jamais havia me deparado com um linguajar de tão baixo calão. Imagine os efeitos devastadores dessas palavras na cabeça da menina.”

Prova oral para o MP-RJ

Em junho, outro promotor ganhou os holofotes por se manifestar de maneira polêmica sobre o crime de estupro. Dessa vez, o episódio ocorreu no Rio de Janeiro, durante a prova oral para ingresso no Ministério Público do estado. Uma das pessoas que participava da seleção filmou as declarações do examinador.

“Um segura, outro aponta arma, outro guarnece a porta da casa, outro mantém a conjunção – ficou com a melhor parte, dependendo da vítima – mantém a conjunção carnal, e o outro fica com o carro ligado para assegurar a fuga”: assim o promotor Alexandre Joppert, que era examinador de direito penal, descreveu a atuação de cada um dos criminosos num caso hipotético de estupro.

A prova é aberta ao público e foi gravada por algumas pessoas presentes na sala. Imediatamente as declarações suscitaram polêmica. O promotor se defendeu argumentando que foi mal interpretado.

Para Sabadell, o machismo impede, ou ao menos dificulta, o acesso das mulheres aos seus direitos. Põe barreiras na busca das mulheres por justiça, já que se cria um ambiente hostil para tanto.

“A fala do Alexandre corresponde a uma forma típica como se abordam crimes sexuais em manuais de direito penal, em discussões dos especialistas nas áreas, que adoram trabalhar de uma forma casuística. O debate passa a ser:  “e se forem cinco? E se o hímen for complacente? E se não ejacular? ”.

Segundo a professora da UFRJ, esse mesmo tipo de reflexão não é visto em outras matérias do direito. “Essa criatividade não vai ser usada, por exemplo, para abordar a questão do homicídio.”

“A postura do TJRS – ainda que tardia, pois os fatos ocorreram em 2014 – demonstra que esse tipo de conduta não pode ser tolerado”, avalia a professora Carolina Costa Ferreira.

Mariana Muniz

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