Violência nas prisões. Mulheres, travestis, pessoas trans e gays são as maiores vítimas. Entrevista especial com Guilherme Gomes

19 de junho, 2017

As prisões não foram concebidas para as mulheres. Ao mesmo tempo, no interior delas se processam de maneira ampliada os mesmos mecanismos de exclusão e de preconceito que há fora do cárcere. Essa combinação de fatores ajuda a entender por que mulheres, travestis, gays e pessoas trans enfrentam mais violências que os demais detentos durante o cumprimento de pena. Uma detalhada descrição dessa realidade pode ser conferida na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line pelo assistente social Guilherme Gomes Ferreira.

(Revista do Instituto Humanitas Unisinos, 19/06/2017)

A situação das mulheres nas prisões reflete as desvantagens que elas já experimentam no social “extra-muros”, mas a prisão também particulariza e especializa essas vantagens.

No que se refere às mulheres, Ferreira ressalta que questões de saúde sexual e reprodutiva “quase nunca são atendidas como se deve, uma vez que as estruturas prisionais não as comportam”. As travestis e transexuais passam por “uma série de inúmeras violações aos seus direitos, produzindo a privação não somente da liberdade, mas da totalidade das suas existências enquanto seres sociais”.

Se fosse resumir a situação, Ferreira diz que “a narrativa da violência é geral, não apenas no Brasil como no restante do mundo”. Ele encontrou muitas notícias de tortura (cães destroçando travestis nas galerias, ferros introduzidos pelo ânus), de suicídio por impossibilidade de viver em condições de tamanha perversidade, de estupro e assédio sexual e negação da identidade de gênero dessa população. Calcado em sua pesquisa, ele afirma “que as sexualidades e gêneros dissidentes são postos ora à exclusão, ora à inclusão perversa”.

Leia a edição completa da Revista Humanitas Unisinos, este mês dedicada à assuntos de gênero

Guilherme Ferreira (Foto: Arquivo Pessoal)

Guilherme Gomes Ferreira é assistente social, mestre e doutorando em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Também é doutorando em Serviço Social pelo Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE-IUL. Integra as organizações Freeda – espaços de diversidade; Somos: Comunicação, Saúde e Sexualidade; e o curso popular TransEnem Porto Alegre.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em diversos espaços e processos da sociedade brasileira, mulheres têm desvantagens em relação a homens e são vítimas de violência de gênero. No sistema prisional, qual é a situação das mulheres?

Guilherme Gomes Ferreira – O sistema de justiça criminal e as instituições de privação de liberdade refletem a “ordem de gênero” (para usar um termo da socióloga transexual Raewyn Connell) de cada sociedade, estabelecendo nos seus interiores um regime de gênero concernente. Por isso a situação das mulheres nas prisões reflete as desvantagens que elas já experimentam no social “extra-muros”, mas a prisão também particulariza e especializa essas vantagens. A privação da liberdade é erguida tendo por referência a dominação masculina como estrutura, isto é, todas as pessoas consideradas femininas por esse sistema vão encontrar mais dificuldades para cumprir a pena. E é interessante que, nesse sentido, não apenas as mulheres cisgênero (aquelas que se identificaram com o gênero designado a elas desde o nascimento, ou seja, que não são transgênero) vão experimentar processos maiores e mais refinados de controle, violência e punição, como também as travestis e transexuais e os homens homossexuais.

É claro que existem especialidades do cumprimento da privação de liberdade em relação às mulheres cis: frequentemente elas são abandonadas pela família (informação presente em diversos estudos e mesmo na observação da fila minguada de visitantes que elas recebem em presídios femininos), fenômeno que não acontece nas prisões masculinas, que recebem diariamente vários familiares (e na maioria figuras femininas como mães, esposas, filhas etc.). Além disso, as questões de saúde sexual e reprodutiva das mulheres quase nunca são atendidas como se deve, uma vez que as estruturas prisionais não as comportam – já que, na sua origem, não nasceram para prender mulheres. É importante salientar que não apenas as mulheres presas são sujeitas à violência de gênero das prisões, uma vez que essas visitantes podem passar por uma série de violências e constrangimentos ao tentarem ingressar na prisão masculina, desde serem submetidas a revistas íntimas vexatórias na entrada da casa prisional até a visita ao preso (por exemplo, através de assédio moral e sexual).

IHU On-Line – Quais as regras vigentes para presidiárias grávidas ou que pariram durante o cumprimento da pena? Elas são adequadas? São respeitadas?

Guilherme Gomes Ferreira – Eu não saberia responder muito bem no que se refere às leis vigentes, pois, embora haja algumas previsões na Lei de Execução Penal – LEP (Lei Nº 7.210/84), existem outros dispositivos legais que entraram em vigência depois (como resoluções e decretos) e que não estou muito por dentro. Mas é importante entender que são diversas as violações de direitos a que estão submetidas as pessoas presas, mesmo que previstas em lei. Por exemplo, a LEP assegura acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido, mas muitos presídios não contam com equipe de saúde suficiente para atender a todas as presas como deveria, o que contribui para a produção de agravos à saúde. Além disso, se a situação dos presídios das capitais já é precária, em prisões do interior dos Estados a realidade é ainda mais agravada. Encontramos casos de prisões masculinas com “puxadinhos” para as mulheres, quer dizer, uma ala ou pavilhão para prender mulheres em instituições historicamente sem atendimento à demanda dessas pessoas (várias das chamadas “prisões mistas” no Brasil foram construídas nessa perspectiva de primeiro serem “puxadinhos”). Por tudo isso, é bem factível dizer que as prisões no Brasil frequentemente não atendem adequadamente às demandas das mulheres grávidas ou que pariram durante o cumprimento da pena.

IHU On-Line – Na legislação que regula o sistema prisional, há algo específico no que tange ao gênero e à sexualidade da população carcerária? Ou cada instituição estabelece seus próprios protocolos em relação ao tema?

Guilherme Gomes Ferreira – Existem as duas coisas. Há legislações que tratam particularmente do gênero e da sexualidade na prisão, entre elas: a Lei Nº 11.942/2009, que aborda a questão do acompanhamento médico de gestantes no pré-natal e pós-operatório – essa lei dá nova redação à LEP, que tratei acima –, garantindo, entre outras coisas, a amamentação dos recém-nascidos por suas mães em berçários construídos nas unidades prisionais até, pelo menos, os seis meses de idade; a Resolução Nº 3, de junho de 2012, do CNPCP [Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária], que estabelece a não recomendação para uso de algemas durante o parto e durante o pós-parto; a Resolução Nº 4, de junho de 2011, também do CNPCP, que assegura o direito à visita íntima (e explicitamente estabelece esse direito para heterossexuais e homossexuais); e a mais recente, Resolução Nº 1, de abril de 2014, do CNPCP e do CNCD/LGBT [Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais], que discute aspectos do encarceramento da população LGBT.

Mas também existe a realidade de cada estabelecimento prisional regular as questões de gênero e sexualidade do seu modo porque não existe previsão legal, ou porque não tomou conhecimento do que existe em forma de lei, ou ainda por uma insurgência moral conservadora de quem é gestor da casa prisional. Essa última possibilidade é a mais certa quando se trata da população LGBT presa.

Veja, por exemplo, que não existe consenso sobre o argumento utilizado para prender travestis e mulheres transexuais em prisões destinadas a homens: ora é utilizado o argumento de que elas não possuem vagina (recorrendo por isso a uma noção biológica de gênero) e que elas poderiam estuprar ou engravidar outras mulheres (recorrendo a um discurso de segurança e proteção), ora é utilizado o argumento de que elas não possuem retificado o registro civil (recorrendo a uma noção jurídica do gênero).

Isso não é uma realidade apenas do Brasil, mas do mundo todo, de acordo com pesquisa que venho realizando no doutorado a respeito do tratamento penal destinado às pessoas trans em diversos países do globo (atualmente 12 países já sistematizados). Sobre esse caso, também pode ocorrer ainda de o estabelecimento prisional usar esses argumentos atrelados um ao outro; a travesti não é aceita em prisão de mulheres porque não tem o nome retificado, mas, para retificá-lo, o sistema de Justiça desse país requer que ela esteja na fila para a cirurgia de transgenitalização.

IHU On-Line – Travestis e transexuais sofrem muitas violações e desrespeito de seus direitos na sociedade. O que ocorre com essa população dentro do sistema prisional?

Guilherme Gomes Ferreira – Assim como as mulheres cis, as travestis e mulheres transexuais experimentam mecanismos particulares de encarceramento, o que inclusive tratei com centralidade no meu livro publicado pela editora Multideia em 2015, intitulado Travestis e prisões: experiência social e mecanismos particulares de encarceramento no Brasil. Em muitos lugares do Brasil, elas ainda são proibidas de usar roupas identificadas como femininas; têm seus cabelos raspados; são usadas pelo tráfico de drogas como mulas (ou seja, tendo de portar entorpecentes pelo ânus quando ocorrem as vistorias das celas); são tratadas como mercadoria e usadas como moeda de troca por bens materiais entre presos; são forçadas a casamentos dentro das prisões e/ou são estupradas por todos os homens da galeria onde cumprem pena; são excluídas da possibilidade de estudar e trabalhar na prisão por não poderem conviver com outros presos (e, portanto, também da possibilidade de remição de pena); ficam impedidas do exercício religioso quando não são católicas/evangélicas, já que a esmagadora maioria dos presídios contam apenas com capelas católicas e ingresso de instituições evangélicas; têm agravos particulares à saúde por muitas possuírem silicone industrial e outras modificações corporais pela ingestão de hormônios – que é sumariamente interrompida quando a pessoa é presa –; são mais fortemente controladas pelo sistema prisional nas suas relações afetivas… É mesmo uma série de inúmeras violações aos seus direitos, produzindo a privação não somente da liberdade, mas da totalidade das suas existências enquanto seres sociais.

A narrativa da violência é geral, e de novo, não apenas no Brasil como no restante do mundo. Encontrei muitas notícias de pura tortura (como em Cuba, onde foram mandados cães destroçarem travestis nas galerias e introduziram ferros no corpo delas pelo ânus), de suicídio por não aguentarem viver em condições de tamanha perversidade (na Itália e nos Estados Unidos), de estupro e assédio sexual (em todos os 12 países pesquisados) e, é claro, de negação da identidade de gênero dessa população.

IHU On-Line – No Brasil, homens trans condenados à prisão são encarcerados em instituições destinadas a mulheres. Como se dá a convivência deles com as detentas?

Guilherme Gomes Ferreira – Há poucas informações públicas sobre a situação de encarceramento dos homens trans, e eu tenho a impressão que isso tem a ver principalmente com a invisibilidade das suas identidades (geralmente tratados pela administração prisional como mulheres lésbicas masculinizadas). A experiência que eu tive no Presídio Madre Pelletier, em Porto Alegre, por ocasião de uma pesquisa junto à equipe de saúde dessa instituição, foi que a privação da liberdade para eles era bem menos violenta em comparação à experiência das travestis e mulheres transexuais.

É claro que eles também sofrem violência – muitas vezes não eram atendidos pelo nome social e eram tratados como mulheres –, mas a performance masculina também lhes garantia vantagens; não foi difícil encontrar relatos de homens trans líderes de galerias ou que exerciam poder em relação a grupos de detentas, ou ainda que eram desejados sexual-afetivamente por elas por trazerem segurança e poder às suas companheiras. Aqui temos novamente a análise do regime de gênero presente no sistema prisional, que não privilegia somente o exercício da identidade de gênero dos homens cis, mas também se materializa, em certos aspectos, em vantagens aos homens trans.

IHU On-Line – Para além do registro legal, existem regras criadas e implementadas mediante o uso de violência física e psicológica pelos próprios presos e também pelos agentes públicos. O que dizem essas regras acerca de sexualidades e gêneros considerados dissidentes?

Guilherme Gomes Ferreira – Assim como as leis, essas regras não são homogêneas e é possível encontrar diferentes usos delas em diferentes cadeias. O que eu posso dizer da pesquisa realizada na Cadeia Pública de Porto Alegre (anteriormente chamada Presídio Central de Porto Alegre, indicando agora se destinar apenas a presos provisórios e não mais também aos presos já condenados) é que as sexualidades e gêneros dissidentes são postos ora à exclusão, ora à inclusão perversa.

Explico: além dos relatos de violência de que já tratei (cujos autores eram presos e policiais), os presos tratam a sexualidade não heterossexual como um desvio, quase como tratam o crime de teor sexual. Não é por acaso que a tradição brasileira seja a de prender travestis e mulheres trans em alas destinadas aos criminosos sexuais, pois geralmente são as únicas alas que acolhem a população transgênero (mesmo que as próprias travestis também considerem os criminosos sexuais como a escória dentro da prisão). Os maridos das travestis, do mesmo jeito, são excluídos de atividades de recreação e convivência quando assumem relacionamento com pessoas trans: deixam de beber do mesmo copo que os outros homens, já não jogam mais futebol juntos e são tratados também pela categoria “bicha”, que serve como homogeneizadora de todas essas populações de gênero e sexualidade dissidentes.

Também é possível verificar – e acredito que essa é uma cultura mais fortalecida em países do norte global, por suas estruturas de gênero serem mais rígidas no estabelecimento do binômio masculino/feminino – que os homens gays são levados a não assumirem suas identidades sexuais, pois mesmo aqueles que não se identificam como homossexuais, mas sentem atração por outros homens, são tratados diferentemente pelo restante da massa carcerária. O sexo entre homens deve, por isso, não ter motivação erótica, mas de imposição da violência; aqueles que dominam sexualmente outros homens e o fazem com recurso à violência são tratados com distinção, enquanto quem é penetrado na relação sexual é tratado novamente como “bicha” e algumas vezes serve sexualmente vários homens.

IHU On-Line – Travestis, gays e mulheres trans são encarcerados em estabelecimentos prisionais próprios para homens. Em alguns presídios, como a Cadeia Pública de Porto Alegre, há alas específicas. Qual a situação dessa população?

Guilherme Gomes Ferreira – Nas prisões em que há alas destinadas a essa população – nomeadas de Alas LGBT, Alas GBT, Ala das Bichas, Ala Rosa etc. –, a situação de violência extrema tende a ser mais controlada. As travestis e mulheres trans presas na Cadeia Pública de Porto Alegre, por exemplo, relatam que estar presa já foi muito pior quando não havia esse espaço, por serem recorrentemente espancadas pela polícia e por outros presos. Com a emergência desse espaço e dos holofotes midiáticos, suas experiências com a prisão melhoraram. Por outro lado, a prisão encontrou nessas galerias um dispositivo de maior controle e repressão, já que, se não são mais espancadas, tampouco podem conviver com os outros homens em espaços de trabalho e educação, e sob o discurso da proteção são impedidas de exercer esses direitos.

Outra manifestação desse controle esteve presente na forma como alguém novo poderia entrar na galeria dessa população. Tendo o espaço ganhado visibilidade e as pessoas sabendo que se tratava de lugar menos violento, durante alguns anos – e eu não sei dizer se isso se mantém em Porto Alegre – a “prefeita” da galeria (assim chamada a representante) selecionava livremente quem poderia ou não ingressar e informava essa decisão à administração prisional.

Algumas vezes essa decisão era feita para o “bem geral”, como o fato de não entrar travestis envolvidas com o tráfico e que desejassem tornar a galeria uma das que recebem drogas. Entretanto, em outras vezes essa decisão era tomada pela simpatia nutrida entre elas lá fora: “aqui ela não entra”, “já ouvi falar muito mal dela” e coisas assim eram ditas sem rodeios no período em que pesquisei esse fenômeno na Cadeia Pública de Porto Alegre. O movimento social organizado que lutou pela criação desse espaço também tinha poder de veto e de “viajar” as travestis para outros presídios – termo usado para designar a transferência de pessoas entre estabelecimentos.

Apesar de tudo isso, vale destacar que ainda são poucas as prisões que têm espaços específicos para essa população, de modo que Porto Alegre foi a terceira cidade no país que criou uma ala para essas pessoas, em 2012.

IHU On-Line – Há levantamentos estatísticos acerca da população de travestis, gays e trans encarcerados?

Guilherme Gomes Ferreira – O único levantamento estatístico de que tenho conhecimento no Brasil está sistematizado no estudo do pesquisador Marcio Zamboni, que afirma que “a distribuição de travestis e transexuais entre regiões do estado [de São Paulo][…] é proporcional ao número total de presos. A relação de aproximadamente 1 travesti ou transexual para cada 500 presos se mantém sem grandes variações nas cinco regiões (na totalidade do estado, são 450 travestis e transexuais para aproximadamente 230.000 presos)” [1].

IHU On-Line – Em presídios masculinos, ambiente de muita violência e de fortes protocolos de masculinidade, há casais que acabam legitimados. De que maneira isso ocorre?

Guilherme Gomes Ferreira – Eu não diria que esses casais são legitimados, não pelo menos por completo. O que ocorre, do meu ponto de vista, é um esforço de legitimação através de políticas penitenciárias que buscam avançar o nosso processo civilizatório e que procuram, por isso, um tratamento penal mais próximo do ideal, entre elas aquelas que tematizam o gênero e sexualidade. Essas políticas são idealizadas sobretudo por movimentos sociais e intelectuais orgânicos, que acabam por tensionar a possibilidade de existência com menor violência desses “casamentos” ou desses relacionamentos afetivo-sexuais.

É claro que esses casamentos respeitam também esses protocolos de masculinidade e, por consequência, a ordem de gênero vigente na sociedade: entre travestis e seus companheiros, por exemplo, há uma intensa divisão sexual do trabalho entre quem cuida e quem é cuidado, quem exerce o trabalho doméstico e o trabalho “de resistência física”, quem lava a roupa e quem distribui a comida, etc. – e até entre quem lembra de usar preservativo e quem dispensa mais facilmente o seu uso. Todas essas atividades respeitam a ordem de gênero e se expressam também algumas vezes entre casais gays, como, por exemplo, em relação a quem cumpre o papel sexual de ativo/passivo, quem é mais masculinizado e quem é mais afeminado etc.

IHU On-Line – Por conta da identidade de gênero, da sexualidade e da estética, travestis e mulheres trans encarceradas são mais vulneráveis à violência do que o restante dos detentos?

Guilherme Gomes Ferreira – Sem dúvida, pois não podem “esconder” suas identidades de gênero do mesmo modo que alguns homens gays podem não revelar, pelo menos por um tempo, suas identidades sexuais. No entanto, não é simplesmente as suas identidades de gênero que as tornam vulneráveis, mas, principalmente, o fato de serem presas em presídios de homens – é preciso dizer isso ou estaremos de algum modo colocando na identidade a responsabilidade pela violência. Frequentemente eu ouvi de técnicos penitenciários que as travestis e mulheres trans “não se davam o respeito” e que suas roupas curtas “provocavam” os outros homens, no mesmo sentido do que é dito quando se quer culpar a mulher cis vítima de violência, e não o agressor. Então, evidentemente suas identidades e estéticas as tornam mais vulneráveis à violência, mas isso não ocorreria com tanta intensidade se estivessem em presídios de mulheres.

Apesar de eu dizer isso, advogo pela ideia de que as pessoas devem ser ouvidas e não ser mandadas a presídios de acordo com suas identidades automaticamente. Parece contraditório, mas o fato é que diferentes travestis presas me relataram que, no caso da Cadeia Pública de Porto Alegre, preferiam poder ficar em galeria separada junto dos seus companheiros do que em presídios de mulheres, mas isso por conta dessa configuração particularizada. Então, quando a prisão dá possibilidade de as travestis e mulheres trans cumprirem pena em espaço só delas, e ainda por cima possibilita que elas estejam com seus maridos, isto é melhor para algumas delas.

IHU On-Line – Classe social e raça agravam a violência contra travestis e mulheres trans presas?

Guilherme Gomes Ferreira – Sim e não. Eu diria que agravam a violência contra travestis e mulheres trans na sociedade, pois, obviamente, essas categorias se articulam com as de gênero e sexualidade e produzem uma nova experiência no social (experiência de privilégio ou de subalternidade). Mas a prisão é, por excelência, a instituição que mais seleciona por questões raciais e de classe social – exercendo aquilo que o sociólogo Loïc Wacquant [2] chama de criminalização da pobreza, de modo que a imensa maioria dos presos brasileiros hoje é caracterizada por negros das classes economicamente dominadas.

Ocorre que quando uma travesti é negra e pobre, sua identidade é desqualificada por completo, na totalidade, e não somente a parte que se refere ao gênero. É isso que as teóricas dos estudos interseccionais vão chamar a atenção, para o fato de que essas articulações de gênero, raça e classe social não se sobrepõem, mas se articulam, produzindo uma experiência nova. Muitas das coisas ditas sobre as travestis (de que são criminosas por natureza, barraqueiras, ladras, perigosas) têm a ver com as ideias sobre uma classe social e uma raça/etnia específicas também, conjugando um sentido único às pessoas.

IHU On-Line – Sua pesquisa de mestrado investigou como se processam as experiências sociais de travestis encarceradas em regime fechado. Qual foi a conclusão?

Guilherme Gomes Ferreira – A conclusão que cheguei é que embora a criação de uma ala específica para travestis e mulheres trans, no caso da Cadeia Pública de Porto Alegre, tenha trazido a elas proteção de inúmeras violências cotidianas, também acabou representando uma mão invisível que, de cima, remexeu o interior da prisão e separou todos os corpos não desviantes, deixando restar ali as travestis, os homossexuais e os homens que assumidamente praticam sexo com elas. Esses corpos, da mesma forma que são protegidos da violência cotidiana que sofriam dos outros presos e dos próprios policiais, sofrem agora uma potencialização dos mecanismos de repressão e controle do Estado. Ao mesmo tempo que a prisão representa o lugar da violência e da repressão como próprias de um funcionamento geral, existem formas mais perversas de opressão no caso dessa população que se materializam no não acesso à educação e ao trabalho dentro do cárcere; na relação com os outros presos e na transfobia institucional; nos modelos de comportamento ditados pela administração prisional; no abandono familiar; e no aumento de controle penal.

A captura das travestis e mulheres trans pela prisão lhes confere padrões distintos de controle sobre os corpos, até então não experimentados. Para elas, a experiência prisional é um instrumento de corroboração da violência sofrida no cotidiano, pois legitima o status que lhes confere o lugar da pervertida, da marginal, da obscena, da ladra. A própria ala específica é um modo de enfrentamento organizado coletivamente por elas de acordo com os seus interesses de maior proteção institucional. Assim, lidam melhor com o modo de funcionamento da prisão; por outro lado, são apartadas de oportunidades de estudo/trabalho por esse mesmo modo de funcionamento. Suas identidades de gênero, de modo geral, não são reconhecidas, seja no uso do nome social, seja nas práticas de violência que atentam sobre suas experiências com o corpo e a sexualidade. Suas demandas e requisições por acesso a direitos entram “na fila” das requisições de toda a população prisional, negligenciadas também pela defasagem de corpo técnico.

Essas conclusões vêm não somente da pesquisa de mestrado já concluída como também da pesquisa de doutoramento atualmente em curso.

IHU On-Line – Atributos próprios da feminilidade e que costumam ser adotados por travestis e mulheres trans, como cabelo comprido, unhas pintadas, roupas e maquiagens, são admitidos em presídios masculinos?

Guilherme Gomes Ferreira – Isso depende de cada presídio. Os casos de penitenciárias brasileiras que têm alas ou galerias específicas para o cumprimento da pena dessa população tendem a respeitar mais o desejo de travestis e mulheres trans usarem vestimentas, cortes de cabelo e adereços de acordo com os seus gêneros. No entanto, as realidades são diversas, de modo que ainda existem presídios masculinos que não admitem essa possibilidade, e são muitos.

IHU On-Line – A partir da sua vivência em lidar com travestis e gays no sistema prisional, que observações gerais podem ser feitas no que se refere à violência motivada por gênero nesses ambientes?

Guilherme Gomes Ferreira – Acredito que já fiz observações diversas, por isso gostaria, no lugar, de fazer recomendações gerais para a efetivação de um tratamento penal destinado à população LGBT privada de liberdade mais próximo do ideal, isto é, que dialogue com a dignidade dessas pessoas: i) que haja respeito ao nome social de pessoas travestis e transexuais e ao uso de vestimentas de acordo com o gênero com o qual a pessoa se identifica; ii) que se criem alas ou galerias específicas para a população LGBT privada de liberdade que desejar fazer uso deste espaço específico, ficando à escolha da pessoa LGBT decidir a este respeito; iii) que travestis, homens e mulheres transexuais sejam encaminhados a casas prisionais de acordo com o desejo de cada pessoa, e não desde uma perspectiva biomédica; iv) que se garanta verdadeiramente a visita íntima sem necessidade de tempo de relacionamento específico ou outros condicionantes para a população LGBT, bem como que se efetivem os direitos de seguridade social decorrentes do relacionamento entre pessoas homossexuais quando do aprisionamento de um membro da unidade familiar; v) que haja continuidade da hormonoterapia de travestis e transexuais e que esse tratamento seja administrado por profissionais das equipes de saúde das casas prisionais; vi) isonomia de acesso à educação e ao trabalho, possibilitando à população LGBT, mesmo aquelas de celas/alas específicas, o direito a estudar, trabalhar e remir pena; vii) e possibilidade de expressão religiosa ou não religiosa e de culto às divindades, sem imposição de matriz específica.

Notas:

[1] Zamboni, Marcio (2016). Travestis e transexuais privadas de liberdade: a (des)construção de um sujeito de direitos. Revista Euroamericana de Antropología, Salamanca, n. 2, pp. 15-23, jun. 2016. ISSN: 2387-1555. (Nota do entrevistado)

[2] Loïc Wacquant (1960): professor de sociologia e pesquisador associado do Institute for Legal Research na Boalt Law School da Universidade da Califórnia, onde é filiado ao Global Metropolitan Studies Program, ao Program in Medical Anthropology, ao Center for the Study of Race and Gender, ao Designated Emphasis in Critical Theory e ao Center for Urban Ethnography. Wacquant também é pesquisador do Centre Européen de Sociologie et de Science Politique, em Paris. Seus interesses perpassam estudos comparativos sobre marginalidade urbana, dominação étnico-racial, pugilismo, o Estado penal, teoria social e a política da razão. É cofundador da publicação interdisciplinar Ethnography, da qual foi coeditor de 2000 a 2008, e apresentou regulares contribuições para o Le Monde Diplomatique de 1996 a 2004. (Nota da IHU On-Line)

Vitor Necchi

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