Algoritmos são racistas’, diz fundadora do PretaLab

04 de novembro, 2019

Sil Bahia lança plataforma on-line para conectar mulheres negras e empresas de tecnologia. Para ela, é fundamental que o desenvolvimento de aplicativos e softwares não continue somente nas mãos de homens brancos

(O Globo, 04/11/2019 – acesse no site de origem)

RIO – Formada em Jornalismo, Sil Bahia, de 34 anos, não conseguia trabalho na área: chegava até a última fase dos processos seletivos, mas não era contratada. Bisneta, neta e filha de empregada doméstica, tinha contrariado a estatística ao se tornar a primeira mulher da família a entrar na universidade — e, mais tarde, se tornar mestre, em Cultura e Territorialidades, pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Ela acabou indo trabalhar em organizações não governamentais, onde entendeu mais sobre sua realidade de mulher negra e pobre. Ali, teve contato com as novas tecnologias e da produção conteúdo com elas.

Em 2015, Sil Bahia foi trabalhar no Olabi, laboratório de inovação e tecnologia. Mas se deu conta de que os espaços por onde circulava não tinham a presença de negros. Viu também que não bastava produzir conteúdos com as novas ferramentas: era preciso criar as tecnologias, já que normalmente essa função está concentrada nas mãos de homens brancos.

Foi pensando em mudar essa realidade que ela criou o PretaLab, um guarda-chuva de iniciativas voltadas para mulheres negras dentro da área de tecnologia.

Depois de mapear quantas delas trabalham na área no Brasil — e chegar a cerca de 600 nomes —, ela realizou uma pesquisa em parceria com a ThoughtWorks, que mostrou que o mercado de tecnologia no país é formado predominantemente por homens (68,3%) e pessoas brancas (58,3%).

Em 21% das equipes de tecnologia, não há sequer uma mulher, enquanto em 32,7% dos casos não há nenhuma pessoa negra. A falta de diversidade foi, então, comprovada com números. Agora, a PretaLab acaba de dar um novo passo: está lançando uma plataforma que busca conectar profissionais negras da área e companhias.

— O que estamos querendo dizer com essa ferramenta é: essas mulheres existem, são qualificadas, olha o que elas estão fazendo — comenta ela. — Muitas empresas falam: “Ah, a gente está não está achando…”. Estamos acostumados com isso. E respondemos: “Se não está achando, está procurando no lugar errado”.

Confira abaixo a entrevista concedida por Sil Bahia à CELINA.

O que é exatamente o PretaLab?

A resposta mais engessada é que é um projeto do Olabi que quer estimular o protagonismo de mulheres negras no campo da inovação e da tecnologia. Só que, na realidade, o PretaLab é uma causa, sobre como a gente faz pra incluir mulheres pretas nesses espaços, entendendo que tecnologia é um lugar de poder, de política. O que muda quando uma mulher trans pode pensar um aplicativo, por exemplo? Há dois ano e meio, olhando para esse cenário e com a vontade de pensar uma produção mais diversa de tecnologia, veio a ideia de trabalhar para estimular essa camada da população que está na base da pirâmide social e que representa 27% dos brasileiros, que são as mulheres negras.

Eu acho que tem uma visão de que tecnologia é uma coisa muito distante da vida. As pessoas pensam logo em robôs — e é isso também, mas tem outras faces. Tentamos estourar bolhas e chegar até mulheres diferentes no Brasil inteiro. A gente fez um formulário e distribuiu nas rede institucionais e de afeto, com a ideia de chegar a essas minas, entender as demandas delas, o que está rolando, onde elas estão mais concentradas. A gente também faz curadoria, programas de imersão, mil coisas dentro desse guarda-chuva da causa que é a PretaLab.

E como surgiu a ferramenta que estão lançando?

No ano passado, fomos muito procuradas por empresas de tecnologia para ajudar a trabalhar a diversidade dentro delas. Isso se desdobrou na nossa novidade deste ano: uma plataforma para reunir perfis de mulheres negras em tecnologia. Temos pelo menos três objetivos: um é o de conectar mulheres negras entre si, para que a gente se conheça, consiga se organizar; o segundo é trazer visibilidade, mostrar que essas mulheres existem e que elas estão fazendo coisas diferentes; e o terceiro é dar uma resposta para esse mercado de trabalho, sobretudo de tecnologia, que diz que não encontra mulheres negras qualificadas para esses cargos.

Embora a discussão de gênero e tecnologia tenha crescido muito nos últimos anos, e embora existam dados que mostram que existe uma disparidade entre mulheres e homens nesse mercado, nunca pesquisa apontou questões de raça. Então, em 2018, começamos a fazer o protótipo da ferramenta on-line. Queremos resolver um problema: a questão da empregabilidade das mulheres negras. E a gente lançou também, junto dessa ferramenta, uma página de dados, criando uma narrativa sobre onde as mulheres negras estão no mercado de trabalho hoje, qual a situação de empregabilidade delas, onde elas estão mais.

Segundo pesquisa, apenas 10% das mulheres negras têm curso superior no Brasil.

Exato. E aí a gente fez uma pesquisa (a #QuemCodaBR, divulgada no fim de agosto) em parceria com a ThoughtWorks sobre o perfil dos profissionais em tecnologia. Queríamos saber como a diversidade estava inserida nos times de tecnologia. Na verdade, a gente já sabia que ela não estava. Só que precisávamos de números: a questão da escolaridade, cor, sexo, entre outros fatores. Existem dados mostrando que, até 2024, serão criados mais de 420 mil postos de trabalho na área de tecnologia. Só que não tem mão de obra qualificada. O que a gente quer? Dialogar com esses dois públicos. Com um a gente já conversa muito, que são as mulheres negras. O outro público são as empresas. ver mulheres negras nessa área significa muito. Para você ter uma ideia, em 2016 e 2017, quando a gente jogava “mulheres negras em tecnologia” no buscador de imagens, não vinha nenhum resultado. Hoje em dia, isso mudou. Em tão pouco tempo. Mas ainda precisa mudar muito.

Quais são os caminhos?

A gente recebe pelo menos dois emails por dia falando: “Ah, por favor, preciso contratar mulheres negras, me ajuda a ter uma empresa mais diversa”. E a nossa primeira conversa é: a longo prazo, é preciso que você invista em uma cultura antirracista na sua empresa. Você tem que olhar para os seus cargos de liderança, ver que não tem nenhuma mulher, nenhum negro, nenhuma mulher negra, e não achar isso normal. Porque até aqui tudo isso foi considerado muito normal.

Como as mulheres negras devem fazer para entrar na plataforma do PretaLab?

Para se cadastrar, é muito fácil: é livre, qualquer mulher negra pode entrar lá e se inscrever. A ideia da plataforma é que elas coloquem uma minibiografia e um link direto para as redes sociais delas. O Olabi não media a relação. O que estamos querendo dizer com essa ferramenta é: essas mulheres existem, são qualificadas, olha o que elas estão fazendo. Muitas empresas falam: “Ah, a gente está não está achando…”. Estamos acostumadas com isso. E respondemos: “Se não está achando, está procurando no lugar errado”.

É uma justificativa como, não é?

Sim, e é mudança de mindset, de cultura. Nós, mulheres negras, lideramos todos os piores índices: de educação, saúde, violência, empregabilidade. E é por isso que nós trabalhamos por essa causa e para esse público. Porque entendemos que o maior problema do Brasil hoje é a questão racial. No entanto, eu acredito também que, no fundo, existem algumas leituras equivocadas nesse mercado. Hoje eu acho que a diversidade virou um selo. Todo mundo quer ser diverso, quer falar: “Olha como a gente é diverso, olha como aqui tem negro, tem pobre, tem trans”. Só que não sei se as pessoas estão a fim de lidar com a diferença de verdade. Ao memso tempo, várias pesquisas mostram que, quanto mais diversidade uma empresa tem, mais impacto positivo tem nos lucros. É aproveitando esse gancho que a gente acredita que pode colaborar para algum tipo de transformação social. Porque aí é: “Vocês querem ser diversos? Então vamos ser diversos mesmo? Como a gente pode criar uma política interna para que as pessoas possam de fato se sentir à vontade e acolhidas aqui?”. Enfim, é um desafio. Não é algo fácil de fazer.

Existe público também que quer ver mais diversidade nas empresas, certo?

Acho que tem uma coisa aí da ascensão das classes populares nos últimos anos em relação ao consumo. A galera não quer comprar estampa de pessoas escravizadas. As pessoas querem adquirir coisas que ressaltem suas identidades, que valorizem de onde elas vêm. Eu estou dirigindo um filme agora sobre essa geração negra que foi para a universidade. A gente está pegando dados: crescimento das universidades nos últimos 20 anos, o número de alunos negros hoje, e agora está na busca de dados de alunos negros anteriormente. Mas em 2006 isso nem era contabilizado em pesquisas nacionais.  Essa ausência de dados também deflagra muita coisa. Quando você não tem um dado, é como se aquele problema nem estivesse ali. Para que eu vou contabilizar quantas mulheres negras estão no mercado de tecnologia?

Além da ponte das mulheres negras com o mercado, tem a questão da formação também. Vocês têm feito cursos?

A gente faz muita parceria com cursos, tenta sempre inserir mais mulheres negras, faz os nossos cursos próprios. Este ano, a gente ficou mais focada na pesquisa e no desenvolvimento dessa ferramenta. Acabamos, porém, de fazer uma parceria com várias redes de mulheres em um treinamento para treinadoras, para pensar questões de cibersegurança, autocuidado na rede. O que pensamos é: como podemos ajudar a qualificar a relação das pessoas com a tecnologia? Acho que esse é o grande mote. O digital é uma realidade, ninguém vai voltar para o analógico.

A tecnologia, por ser feita basicamente por homens brancos, nunca é pensada para o negro. Você concorda com isso?

Sim, desde a fotografia. Para mim, ela foi o grande exemplo de de tecnologias racistas. Quando eu descobri, fiquei chocada. Ela tem um padrão que é para pele branca. E isso só mudou nos anos 60 ou 70: quando começaram as fotografias de publicidade, passaram a perceber a diferença na hora de registrar itens como chocolate. Porque achavam que era um problema com os negros: “Ah, não capta a pele negra bem, mas isso é uma questão dos negros.”

Muitas vezes se acredita que a tecnologia não é feita para se questionar. Mas o que a gente fala, há muito tempo, é que ela não é neutra, ela carrega visão de mundo. E hoje, com esse boom, a gente consegue mapear várias tecnologias racistas, desde dispenser que não reconhece a pele negra até carros automatizados, que têm mais chance de atropelar uma pessoa negra do que de atropelar uma pessoa branca. Há games que usam aquela tecnologia kinetic, de escanear o corpo, e não reconhecem pessoas negras, pessoas orientais. E tem um trabalho muito importante de uma mulher nos Estados Unidos, Joy Buolamwini, que se chama Liga de Justiça Algorítmica. Ela está no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) pesquisando isso e mostrando: os algoritmos são racistas. Porque eles consultam uma base de dados para fazerem o que têm que fazer. E essa base de dados não é diversa. Por isso eles não reconhecem a minha cor. Como é que se muda isso? Quando pessoas diversas puderem pensar essas tecnologias.

Se isso não acontecer, a gente, que tinha um sonho de achar que a tecnologia ia ajudar a diminuir a desigualdade — pelo menos eu tinha esse sonho em 2011 —, vai vê-la aumentar muito. Se começamos a pensar em reconhecimento facial, como é que isso se dá? Tem todo um estereótipo ali, a gente vê as cartilhas da própria segurança pública no Brasil: menino, negro, de boné. Isso é também uma forma de algoritmo. Ainda temos que pensar que os algoritmos trabalham com probabilidades, não são exatos. O quanto a gente delega das nossas vidas para isso, entregando decisões muito importantes para essas coisas? É um debate amplo, que deve ser feito, e a gente aqui no Olabi trabalha muito para discutir isso com o cidadão comum. Não quero falar só com os especialistas em tecnologia. Como a gente fala isso com a minha avó? As pessoas que mais propagam fake news, por exemplo, são pessoas acima de 60 anos. Então essas ideias e esses questionamentos têm que chegar até elas.

Por Kamille Viola

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