Da esquerda à direita não se olha o racismo como problema estrutural, por Joice Berth

27 de abril, 2016

(Justificando, 27/04/2016) O ator José de Abreu, semana passada, foi atacado por um casal desses que compõe a massa abduzida pelo mantra dos meios de comunicação que apoiam o golpe contra a atual presidente, o famigerado #ForaPt. Eles alegam que pessoas que tem um direcionamento político pautado na ideologia esquerdista, não devem usufruir dos subprodutos do sistema capitalista.

Cabe lembrar que a abordagem agressiva do casal e que foi revidada à altura pelo ator e sua esposa é o efeito provocado pelo insistente caso de marginalização de um partido que, segundo a mídia, seria o precursor da corrupção no país. Cabe também lembrar que esse efeito está sendo reproduzido em todos os meios sociais e sempre direcionado a pessoas que comungam da cartilha política esquerdista e isso não é de hoje. Em outros tempos, quem se posicionava de forma destoante do sistema político que comanda o país era acusado de terrorista e perseguido. Esse pensamento de demonização da ideologia política esquerdista é uma herança da ditadura militar que os meios de comunicação, sutilmente estimulam em suas programações.

A população brasileira absorveu de tal forma os equívocos propagados sobre as políticas esquerdistas que não conseguem refletir sobre a distância que existe entre um sistema ditatorial e um sistema de esquerda. Nunca tivemos, a exceção do governo deposto covardemente em 64, uma política claramente esquerdista. Embora o PT seja o mais expressivo partido esquerdista que temos, seu governo quando muito implantou algumas políticas sociais, ensaiando alguma atitude que nos remetesse ao que o socialismo tem como proposta. E paga caro por isso.

Nossa ditadura, bastante violenta por sinal, foi capitalista e o ônus que pagamos até hoje é silenciosamente reproduzido por uma camada da sociedade que mergulha no mar de alienação e desinformação que os militares implantaram lindamente e que é um coadjuvante perigoso da crise política que vivemos, mais de 20 anos depois.

A questão é: de onde sai mais esse equívoco que impõe que alguém que vive em um sistema capitalista não pode usufruir daquilo que lhe é imposto? Será que essas pessoas, em seus delírios de ignorância, não conseguem pensar, que o desejo de uma outra forma de governo com foco na igualdade de direitos e ausência de privilégios, quer dizer única e exclusivamente que se deseja que todos possam ter acesso, entre outras coisas, a um jantar de boa qualidade, como o que o autor desfrutava?

Essa postura, advém do pensamento egoísta que é a base dos privilégios que motivam o ódio às políticas sociais que tentam equiparar as desigualdades sociais. Para a elite e seu eterno cosplay, a cansativa classe média, ou se tem tudo ou nada. Ou se mantém todos os privilégios ou que o país afunde em meio a implantação de uma cleptocracia capitaneada por Cunha e seus correligionários golpistas.

Essa é a grande insanidade da direita no Brasil.

Mas e a insanidade da esquerda, mora onde?

Essa mora na negação constante de que só se pode articular um pensamento concreto e praticável ao considerar que a luta de classes tem um teor racial inseparável. São os pretos em sua maioria esmagadora, componentes involuntários das classes C e D. A cada vez que se evoca essa verdade é uma enxurrada de contra-argumentos que evidenciam que o racismo ainda está longe de ser eliminado. Basta uma mulher negra mostrar algum poder e o racismo velado se ergue em forma de críticas duras e ataques questionáveis sobre a legitimidade de seu trabalho.

Então temos uma crítica maciça a uma cantora pop que geograficamente está distante, mas no coração de centenas de pessoas negras está presente como uma espécie de representatividade, lembrando que nesse país a representatividade é escassa e isso, nem esquerda e nem direita assumem ou questionam com o mesmo fervor com que insultam petistas ou se colocam contra o golpe.

E essa representatividade é questionada por uma esquerda que se nega a desconstruir seu racismo e não consegue enxergar que, embora compactuem com outra linhagem política com foco na igualdade, ainda detém privilégios, porque é majoritariamente branca e acadêmica.

Essa esquerda branca e bem nascida, com seus conceitos muito bem amparados pelos impecáveis escritos acadêmicos, resolve pontuar que negros que se valem dos produtos do capitalismo, não podem mais falar sobre as questões raciais que vivenciam.

Essa esquerda branca, que não faz uma crítica aos seus privilégios, inclusive os que lhes asseguram que podem falar dessas questões que a pŕopria negritude tenta digerir. E na ânsia de defender essa ideia absurda, presenciamos um mar de silenciamento racista e apontamentos infundados e rasos sobre a condição do negro no Brasil.

Não se vê questionamento quando ligamos a TV e assistimos a um filme, novela ou programa qualquer, onde 90% do elenco é de pessoas brancas em um país onde já temos 54% da população negra (o IBGE precisa eliminar a categoria “pardo”, porque não é informação racial; é cor de papel!).

Não se encontra questionamento quando apuramos que as cúpulas e os espaços de poder de norte a sul do país são ocupados por pessoas brancas.

Não encontramos questionamento quando um artista resolve se apropriar da dor do genocídio da população negra para capitalizar vendendo como “anti-souvenir” o que para o cotidiano da pessoa negra é um temor. Também não há questionamento quando mulheres negras são ridicularizadas, seja pelo cabelo, seja pelos traços “grossos”, seja lá pelo que for, como fizeram com Nayara Justino, ex-globeleza.

O movimento contra o programa do ator Miguel Falabela, Sexo e as Negas, que entre outras coisas reforçava estereótipos que tanto lutamos para dizimar do imaginário da sociedade, foi achincalhado por uma farta camada de pessoas brancas que achavam absurdo ver racismo onde se dizia ser uma homenagem. Absurdo era não ver que homenagear uma mulher negra não é compactuar com a desumanização de seu corpo.

Beyoncé, como mulher e negra sabe que o dinheiro não apaga a sua cor.

A pessoa negra não nasce negra, ela inicia uma saga rumo ao descobrimento das correntes invisíveis que estão presas ao pé e que se arrasta por todos os lugares, mesmo quando a conta bancária é farta.

Como bem pontuou uma cientista social negra e ativista, Eliane Oliveira, difícil falar de sujeitos políticos para aqueles que nem se reconhecem como tal.

Pessoas negras, por vezes, nem chegam a saber que são sujeitos políticos. São engolidos antes pelo racismo que internalizam e os atolam na ignorância sobre si mesmo e as questões que norteiam suas vidas. Ser negro(a) é um ativismo ambulante e por vezes inconsciente. Seja para Beyoncé, seja para qualquer anônimo, falar de sua negritude é difícil, solitário e doloroso – e os espaços são quase inexistentes. Portanto, a representatividade que Beyoncé toma nas mãos é mais do que válida. O que não é válido é usar apontamentos infundados para disfarçar que se trata apenas de uma reação racista frente a uma mulher negra que detém poder porque conquistou fama e dinheiro.

Cabem inúmeras críticas, sempre cabem.

Mas elas não devem passar pelo achismo que invalida o discurso porque a indústria da música é capitalista. Existem lugares de discussão racial que não cabem conceitos políticos e esse lugar é o da autoafirmação identitária. Primeiro, sabemos quem somos e no que isso implica. E depois, iniciamos o processo de empoderamento que culminará na conclusão de que o sistema capitalista tem no racismo um de seus pilares. O que o ator global e a cantora pop norte-americana tem em comum?

Nada.

Exceto o fato de serem atacados por pessoas equivocadas, preconceituosas e desinformadas.

Exceto serem vítimas direta ou indiretamente dos meios de comunicação, pouco comprometido com a informação e muito comprometidos com a negligência e a parcialidade na exposição dissimulada de suas opiniões.

As duas reações, a de José de Abreu e a Beyoncé, têm em comum o nível de violência, desinformação e falta de empatia para com questões que demandam um olhar mais demorado sobre questões que precisam ser discutidas com o mínimo de ponderação e discernimento.

Se as pessoas que agridem petistas pelas ruas se ocupassem em entender de fato o que é uma democracia, e principalmente, como e quando seus privilégios ferem esse conceito, estaríamos em outro nível de debate político, mais coerente e mais eficiente.

Se as pessoas que atacam o despertar racial de Beyoncé, tentassem entender o que é ser negro em um mundo preparado para te rejeitar não importando o quanto de dinheiro você tem, onde e quando as identidades negras se confluem e quando se definem as formas de luta anti racismo, fariam um mea-culpa saudável, apurando onde e quando podem se dispor de seus privilégios para o bem de uma minoria que eles acham que apoiam. Apoiar é primeiramente entender.

E o equívoco da direita e da esquerda nacional nesse momento é não saber que não devemos combater indivíduos onde o problema é estrutural. Nosso problema nesse momento, para além da política é social. Não estamos exercitando a necessidade básica que justifica o porque somos seres humanos: o diálogo, o jogo do fala/escuta/compreende/argumenta. Também não nos desprendemos da herança terrível da ditadura militar que confina as inúmeras possibilidades de articulação social a um único pensamento. Não estamos pensando, propondo, tentando o acerto, estamos muito ocupado combatendo inimigos que não são inimigos, são modos de pensar o social e o político de forma diferente da que foi imposta.

Beyoncé não é o capitalismo. José de Abreu não é o PT.

E enquanto se mantém o sistema político que temos atualmente, podemos sim ser de esquerda e almoçar em restaurante japonês em bairro nobre e podemos, sim, ser negros(as) e vestir Givenchy e Calvin Klein.

Porque talvez, não é uma questão de escolha e sim de imposição.

Joice Berth é Arquiteta e Urbanista pela Universidade Nove de Julho e Pós graduada em Direito Urbanístico pela PUC-MG. Feminista Interseccional Negra e integrante do Coletivo Imprensa Feminista.

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