Dois meses da morte da italiana, entrevista com Mirian França

25 de fevereiro, 2015

(Diário do Nordeste, 25/02/2015) Série especial aborda os elementos traçados por defesa e acusação em torno da misteriosa morte de Gaia Molinari 

Na tarde do último Natal, há exatos dois meses, um casal que passeia entre o caminho da Pedra Furada e a Vila de Jericoacoara avista um corpo de mulher deitado sobre areia rodeada de vegetação rasteira em cima da duna. De lá para cá, não se sabe quem matou a italiana Gaia Molinari. Vestida de biquíni, com uma mochila nas costas, cabeça ferida como se a golpes de pedra. Forte pancada na testa, outra evidente agressão no queixo. Mãos roxeadas, como se houveram amarrado, e marcas no pescoço que, depois, a perícia confirma estrangulamento. Quem matou Gaia? Foi encontrada na região do Serrote, mas ali mesmo assassinada?

Conhecido paraíso de tranquilidade, Jericoacoara, pertencente ao município de Jijoca, é repercutida, mas não por seu cartão postal.

Gaia estava a passeio e foi encontrada no vazio da região do Serrote. Crime cercado de mistérios. Nas primeiras horas em que o corpo é encontrado, um suspeito logo foi apontado. “Edinho é perturbado da cabeça e já furou um”, diz um dono de pousada. “Ele acabou morrendo”, esclarece o próprio ‘Edinho’. Do lado de fora da casa de Edson Veríssimo, ali considerado suspeito, pessoas se aglomeravam. Policiais o pegam em casa para prestar depoimentos, depois é liberado para casa. Para a polícia, continua suspeito de envolvimento. Assim como um italiano, um uruguaio e brasileiros, entre eles Mirian França.

Suspeita principal, a farmacêutica carioca viajou para Jericoacoara com Gaia. As duas teriam se conhecido em Fortaleza com desejos parecidos. Passear. Mas Mirian voltou para Fortaleza sem Gaia e esse é apenas um dos muitos questionamentos levantados pela delegada Patrícia Bezerra, que preside o inquérito.

Acusada, presa, exposta e se dizendo pressionada psicologicamente, Mirian França se torna peça importante de um quebra-cabeças. Sua prisão tem repercussão na medida em que a morte de Gaia causou interesse público.

Mas há muitas peças soltas, e os desdobramentos podem ser imprevisíveis. Tentamos, se não montar, encontrar quem as encaixe. Com exclusividade, Mírian França, Patrícia Bezerra e Gina Moura nos concedem entrevistas em que ouvem a pergunta: Quem matou Gaia?

Assista à entrevista com Mirian França:

Entrevista com Mirian França

“Não menti para a Polícia, não posso pagar pelo que não fiz”

Você matou Gaia, ou teve algum envolvimento no crime de morte dela?

Não tive nada a ver com isso, absolutamente, nenhuma relação com isso. Ajudei a Polícia desde o início. Não vieram atrás de mim. Eles me ligaram, falaram hora e onde eu deveria me apresentar, às 6h da manhã, que era o horário que estaria aberto. Eu me apresentei no posto policial (em Canoa Quebrada, para onde foi depois de Jeri), eles me trouxeram pra Fortaleza prestar depoimento. Eu sempre falei que estava com dificuldades de me lembrar de tudo que tinha acontecido. Estava fazendo um esforço grande para poder ajudar. A medida que fui me lembrando de outras coisas procurei a Polícia, liguei, informei. Foram me buscar pra fazer reconhecimento de suspeito, mostrar fotos. Tinham o meu endereço o tempo inteiro.

A Polícia fala em contradições suas. Porque teriam colocado você da posição de testemunha para suspeita?

Não entendi ainda como fui envolvida nisso. Desde o meu primeiro depoimento, quando falei para a delegada que estava com dificuldade de lembrar de toda a situação ali, mas que estava fazendo um esforço para lembrar. Contei pra ela o que tinha acontecido, um pouco da nossa viagem, do que conheci da Gaia. O meu segundo depoimento já foi muito sob pressão. Mas falei novamente toda a história do primeiro depoimento. As ditas contradições eu não entendo, pois no terceiro depoimento eu também falei novamente as mesmas coisas.

Que pressões são essas a que se refere?

As pessoas estavam pressionando muito. Reiterei o que tinha dito, mas as pessoas me olhando com desconfiança. Não tinha ninguém ali do meu lado e já foi um momento bastante tenso porque a Polícia me pegou no dia 28 (de dezembro) pela manhã onde eu estava hospedada, me levaram para Jeri. Passei o dia inteiro escoltada. Não percebi o que estava acontecendo comigo. No final da tarde, fui colocada numa delegacia para prestar depoimento, numa sala isolada de outras pessoas. O celular já tinha sido tirado de mim. Mostrei pra Polícia como acessava o celular. Nesse dia, antes de eu chegar na delegacia, uma policial tinha falado que estavam achando que a Gaia tinha morrido no dia 25 e não no dia 24. Fiquei pensando: caramba, ela passou a noite inteira sendo torturada, agredida? Eu estava sentindo muito medo, desesperada. E não percebendo por que já estava sendo considerada suspeita.

Como ficou sabendo da morte de Gaia?

A reserva lá em Jericoacoara estava no meu nome. Quando a dona da pousada soube, o contato da Gaia era eu, meu número estava lá nos registros. Eu já estava em Canoa Quebrada. Fiquei chocada, paralisada, não aceitando aquilo.

Vocês viajaram juntas. Porque saiu de Jericoacoara sem ela?

Tínhamos que estar no ônibus de 22h30 para voltar pra Fortaleza. A maior parte do tempo fiquei na pousada. Quando deu a hora, a Gaia não estava por lá. Procurei por ela, mandei mensagem no ‘whatsapp’, mas estava na hora do ônibus sair, eu pensei que ela tinha ficado para uma das festas que aconteciam no local. Estava me sentindo tão segura naquele local, e acho que a Gaia também. O fato de ter saído sem ela não foi falta de amizade, de preocupação, que abandonei a menina pra morrer. Era um dia de festa. Eu achei que ela estava ali, perdeu a hora do ônibus e ficou para uma festa. Nunca imaginei que uma coisa dessa iria acontecer.

Você chegou a imaginar o que pode ter ocorrido?

Depois da notícia, eu não lembrava direito de tudo que tinha acontecido ali. Comecei a ir lembrando de todas as coisas, desde o dia em que a gente chegou, com quem a gente conversou, coisas que tinha me falado, o que comentou de outras pessoas. Procurei resgatar todas essas lembranças para ajudar o máximo possível. Claro, elaborei várias coisas na minha cabeça, do que poderia ter acontecido, mas não quero entrar nesse aspecto para não influenciar na investigação e expor outras pessoas. Eu passei para a Polícia, mas não quero dizer aqui.

Como foram os dias na prisão?

Muito difíceis. A cadeia é um ambiente muito hostil. Passei os primeiros seis dias na sela comum, com as outras presas que chegavam ali, sem nenhuma condição de higiene. É um local em que eles te jogavam ali, você só recebia almoço e janta. Nem água a gente tinha. Bebia do chuveiro. Nem era chuveiro, na verdade, era um cano em que caía água. Antes de ser entregue na Decap (Delegacia de Capturas) eu passei a noite inteira com os policiais, sob pressão psicológica. Sendo acusada de coisas que não fiz.

Como o quê?

Como por exemplo mentir. Fui levada de Jericoacoara direto para a ‘Captura’. Cheguei ali não lembrava direito das coisas que aconteceram comigo naquela noite. Eu cheguei na sela gritando muito, falando para as pessoas que estava sendo acusada de assassinato e não lembrava o que tinha acontecido. Eu conheci muitas meninas e todas elas nessa mesma solidariedade. Fiquei surpresa com isso. Não pensava que na cadeia era assim, a hostilidade maior veio mesmo do sistema carcerário.

Acha que ser mulher, negra, em algum momento isso interferiu diante das acusações?

O racismo hoje em dia é uma coisa que você só sente, as pessoas não falam abertamente sobre isso. Se fui vítima de racismo, não sei porque as pessoas não falam nada abertamente. Mas é claro que achei estranho, dentre várias pessoas que estavam sendo consideradas suspeitas, pessoas estrangeiras que estavam ali, eu, que sou uma negra, fui exposta desse jeito, considerada suspeita e nem entendo o porquê. O que eu senti muito, vi e escutei de verdade, foi um preconceito muito grande contra a mulher. Eu tive que me justificar várias vezes porque eu sou uma mulher viajando sozinha. Porque não tenho namorado, não sou casada, ainda não tenho filhos. A minha vida sexual foi muito exposta, investigada pela Polícia, como se isso tivesse alguma relevância para o caso. Se está acontecendo um preconceito racial não se fala, mas contra a mulher foi uma coisa gritante que percebi ali.

O inquérito não terminou. Sua prisão foi revogada, mas tem medo de ser apontada culpada?

Medo não, porque já tem muito tempo que estou sendo investigada e não encontraram e nem vão encontrar nada que me associe com esse crime. Mas não sei o que pensar em relação a isso. Tem muita coisa errada nessa situação toda.

Em que sentido?

Tinha muitas pessoas que estavam sendo consideradas suspeitas e eu fui a única que fui exposta. Desde o primeiro momento que estava ainda sendo considerada uma testemunha. Não fui eu que procurei a imprensa, que liberei meu nome. Saiu ali como testemunha de um caso de assassinato, ninguém sabia o que tinha acontecido, quem fez isso com a Gaia e meu nome foi liberado como testemunha. Eu achei um absurdo. No segundo momento, que fui considerada suspeita, fiquei chocada. Eu não fiz isso, eu não tenho nenhuma relação com isso. Meu nome foi exposto como quem estava mentindo durante o depoimento. Ninguém expôs ainda quais foram as mentiras que poderiam ter prejudicado o caso, se tiveram.

O que vai fazer de agora em diante?

Daqui a pouco o País vai esquecer disso, esses 15 minutos vão passar rapidamente. Mas enquanto não descobrirem o que aconteceu com a Gaia, sempre vai ter a dúvida, que eu de alguma forma possa ter feito ou participado do assassinato de uma pessoa.

Eu sempre estudei, minha mãe zelou muito pela minha educação. Fui aluna de escola pública. Com muito sacrifício consegui passar para o vestibular numa universidade pública também. Eu me formei na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em Farmácia, fui direto para a pós-graduação, fiz mestrado, hoje, estou no doutorado. Investigo a imunologia da doença da leishmaniose para o desenvolvimento de uma vacina preventiva, mas também para identificar como que se dá a resposta imunologica a doença. É essa a minha linha de pesquisa atualmente. Nao sei como vai ficar agora com essa situação toda. Vai existir sempre a dúvida. O preconceito está aí na cabeça, não só da polícia, mas da sociedade.

Melquíades Júnior

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