Justiça, reconhecimento e desenvolvimento: o componente inflamável da política global contemporânea

16 de junho, 2015

(Geledés, 16/06/2015) Ao escolher a justiça, o reconhecimento e o desenvolvimento como temas da “Década Internacional dos Afrodescendentes”, a ONU sinaliza para as questões nucleares que vêm ameaçando o projeto de desenvolvimento global. Essa tríade converteu-se em termômetro para avaliarmos as políticas em curso e propormos a refundação das chamadas sociedades modernas, marcadas pelos princípios de justiça, dignidade e igualdade.

Como sabido, a primeira linha do título deste artigo é o tema da “Década Internacional dos Afrodescendentes”, instituída pelas Nações Unidas, cujo ciclo recobre o período de 1º janeiro de 2015 até 31 de dezembro de 2024. Conforme consta no site da própria ONU, “o principal objetivo da Década Internacional consiste em promover o respeito, a proteção e a realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais dos afrodescendentes, como reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

Com o acirramento dos recentes acontecimentos ao redor do mundo não sobra espaço para tergiversações: o racismo e a xenofobia, que nunca desertaram da cena política e que geralmente andam de mãos dadas, são duas constantes num contexto de incertezas extremas. O que dizer da política xenófoba europeia que, em estágio exacerbado, vem provocando a morte de vários imigrantes africanos no mar Mediterrâneo? Ou do rechaço aos haitianos e a morte aos borbotões de jovens negros por aqui? E, ainda, da violência policial, também letal, nos Estados Unidos? Dos conflitos internos em África?

Nesses contextos – a história nos ensina –, o Outro reaparece, com contornos bem delineados, (negros, indígenas, africanos, ciganos e todos os Outros que mais couberem) como o responsável pelos “nossos” problemas, dificuldades e fracassos. Não vamos longe: num momento delicado da economia brasileira, ouvimos muitas vozes proclamando que a admissão de haitianos em postos de trabalhos, agora exíguos, representa a nossa inevitável ruína. Não é de estranhar que a entrada de espanhóis e outros europeus, também em condições adversas, não tenha causado a mesma reação; ao contrário, estão sendo recebidos com patente alegria e entusiasmo. Conclusão à vista: a questão racial negra vem mostrando-se como uma das mais importantes cifras em tempos de densa ebulição, incidindo no jogo da geopolítica.

Percurso das palavras nas trilhas da política

Não é preciso nenhum exercício de filologia para percebermos que as palavras portam sentidos e significados que percorrem uma trajetória pontilhada pelas condições sócio-históricas que as emolduram. Há muito aprendemos que texto e contexto operam em simbiose. Não há contexto de um lado e discurso de outro. Concebemos discurso como encarnado no social, portanto, portador da dinâmica da qual somos sujeitos; vimos insistindo que os discursos representam um modo de narrar o mundo e nesse modo vem junto o mundo a ser vivido. Algo nos desafia no trio de palavras adotado pela ONU, pois no mundo em que vivemos e no mundo a ser vivido tais palavras assumem peso político importante para operar a mudança necessária para a transposição dos problemas que atingem em cheio o coração da governança mundial.

Como sismógrafo de alta precisão, a “Década Internacional dos Afrodescendentes” capta os ruídos daquilo que obstrui, em escala global, os caminhos do pleno desenvolvimento. Não nos enganemos: justiça, reconhecimento e desenvolvimento não são palavras elegantes e pomposas para marcar uma efeméride, antes, expressam em sua profundidade reflexiva e política os desafios postos para os combalidos Estados-Nação. Um ligeiro recenseamento em  torno dos termos nos permite observar o quanto eles vêm sendo empregados recorrentemente em fóruns de discussão, nos espaços do ativismo político, em análises de pesquisadores e teóricos de diferentes quadrantes e latitudes. Retracemos, abreviadamente, o percurso de sentido de cada um deles:

Justiça: No seminário “Fronteiras do pensamento”, realizado neste mês em Porto Alegre, o historiador e ensaísta político britânico Perry Anderson afirmou que “em termos de dinâmica da ação política, você sempre precisa lembrar que provavelmente o material mais inflamável que existe é a injustiça.” Referindo-se às manifestações de junho de 2013 no Brasil, Anderson avalia: “o que politiza e mobiliza as pessoas é a realidade em que as coisas pioram em vez de melhorarem. Não é a esperança de crescimento, mas sim o sentimento de injustiça”. Nessa mesma chave, podemos inserir os conflitos em Ferguson nos Estados Unidos. Movida pelo sentimento de justiça, a população negra foi à rua para debelar o racismo, legitimado por um sistema injusto que autoriza a prática homicida da polícia.

No terreno filosófico, o tema da justiça sempre abrigou discussões contraditórias. O aspecto conflitante é emblematicamente ilustrado na figura da deusa Têmis, ou Minerva, que, de olhos vendados e uma balança na mão, mede dois pesos contrapostos, ocasionando, assim, derrota ou prejuízo a uma das partes disputantes. O filósofo político John Rawls, especialista no assunto, elaborou uma teoria da justiça baseada na suposição de um contrato social a fim de deliberar uma série de princípios que seriam responsáveis por fundamentar as regras do justo e os princípios da justiça. As instituições exerceriam papel capital nesse processo, uma vez que seriam as intermediadoras entre as pessoas no convívio social. Para Rawls, “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”.

Quando abrimos mão de deliberar sobre o justo, abrem-se as portas para o exercício da vingança. Aqui no Brasil estamos passando por um processo em que o legislativo cogita o triunfo da vingança sobre a justiça, com a PEC da Redução da Maioridade Penal. A psicanalista Maria Rita Kehl elucida: “sou obrigada a concordar com Friedrich Nietzsche: na origem da demanda por justiça está o desejo de vingança. Nem por isso as duas coisas se equivalem. O que distingue civilização de barbárie é o empenho em produzir dispositivos que separem um de outro. Essa é uma das questões que devemos responder a cada vez que nos indignamos com as consequências da tradicional violência social em nosso país”.

Sistemas injustos criam e aprofundam práticas racistas, sexistas, xenófobas, homofóbicas e assimiladas.

Reconhecimento: A expressão “Fulano(a) de tal ou tal coisa não me representa” tornou-se moeda corrente nas reinvidicações contemporâneas. Acentua essa tendência os regimes de visibilidade em voga, ainda presos a imagens reducionistas de grupos historicamente discriminados. Teóricos das políticas de reconhecimento e da alteridade são unânimes em afirmar que a assunção do Eu se dá pelo reconhecimento do Outro. Para Charles Taylor, por exemplo, o expediente do reconhecimento alcança urgência política pelo vínculo que possui com identidade, onde “identidade refere-se a uma compreensão de quem somos, de nossas características definitórias fundamentais como seres humanos”. (2006, 194).

Assegura Taylor que o não-reconhecimento ou o reconhecimento errôneo podem causar danos irreparáveis, causar imagens distorcidas e redutoras de alguém, ou como diria Alice Walker, pode provocar aprisionamento de imagens. Portanto, assegura o autor, “o reconhecimento, mais do que uma cortesia, deve ser visto como uma necessidade humana vital”. Sabemos que o discurso do reconhecimento e da identidade é obra da nossa aventura moderna. O ingresso dos dois termos na cena política se dá com o colapso das hierarquias sociais, que costumavam ser a base da honra. No antigo regime, a honra estava vinculada a exclusões, intrinsecamente ligada a desigualdades: para que alguns tenham honra, é preciso que nem todos tenham. Lembremos a descrição da monarquia pelas lentes de Montesqueieu e veremos o caráter seletivo da honra.

O discurso moderno solapa com a noção de honra para dar espaço ao de dignidade, concebida num sentido universalista e igualitário. Na esteira do reconhecimento e da dignidade, a identidade individual e autenticidade compõem-se na mesma atmosfera política. Lembremos o movimento dos “Indignados” na Espanha, em 2011, e veremos sua conexão com o sentido moderno de identidade e dignidade (ameaçadas pelas forças produtivas do capitalismo), pela via do reconhecimento.

Expulsos pela porta, os esquemas de diferenciação retornam pela janela nas ditas sociedades modernas, democráticas. Sem o mecanismo seletivo e excludente da honra, racismos, sexismos, homofobia, xenofobia passam a hierarquizar as estruturas sociais. O acirramento dessas práticas se dá quando aquele que reputamos ser diferente de nós (o Outro) ousa cruzar as linhas divisórias imaginárias. Uma fartura de exemplos se insinua: endurecimento nas políticas de imigração contra africanos e outros “indesejáveis”; mulheres em cargos de chefia; a anedótica situação dos aeroportos brasileiros em que a proximidade dos pobres, desvalidos, “feios”, “mal vestidos” (nas expressões correntes) faz com que a classe média vocifere contra “essa gente”. O ódio destilado nas redes sociais também pode ser inserido na lista.

A ideia do narcisismo das pequenas diferenças, de Freud, ilumina a questão. Para o pai da psicanálise, é quando a diferença se mostra quase inexistente, que o outro se torna motivo de intolerância; é quando territórios que deveriam estar com fronteiras bem distintas, e aí que se avizinham perigosamente; é quando nos vemos tão parecidos com o Outro que destilamos discurso de ódio. Similar raciocínio podemos encontrar em Estabelecidos e outsiders, de Norbert Elias e John Scotson. Os autores demonstram que as fronteiras estabelecidas entre os estabelecidos e os outsiders da comunidade de Wiston Parva (nome fictício dado ao bairro analisado) erigem-se em nome de motivo insignificante, “um quase nada”. O critério para a estigmatização dos outsiders era o tempo de moradia na comunidade.

Desenvolvimento: o médico congolês, Denis Mukwege, em sua passagem pelo “Fronteiras do Pensamento” declarou: “Não existe democracia sem direitos humanos. Há muito tempo, os direitos humanos eram considerados um luxo. Parece-me que isso continua sendo verdadeiro em muitos países africanos. De fato, poucos dos nossos países reconhecem a dignidade inerente a cada pessoa, sem qualquer discriminação. Ainda são raros os países no continente africano que garantem oportunidades e opções iguais a todos.”

A declaração de Mukwege serve como síntese ao esboçado acima. O desenvolvimento é integralmente dependente de uma política em que justiça e reconhecimento são valores inegociáveis. Há muito se vinculou o tema do desenvolvimento apenas a expedientes da economia e administração. O currículo das teorias desenvolvimento sob essa ótica é extenso. Não se demorou muito para se chegar a diagnósticos que não tomam a economia, em seu sentido restrito e ortodoxo, como parâmetro para se medir desenvolvimento das nações.

É preciso pôr em ação uma agenda em que justiça e reconhecimento, pilares das sociedades democráticas, não sejam apenas recurso retórico, mas alavancas essenciais para que desenvolvimento também não seja visto como triste eloquência. Como enunciamos no título deste artigo, o tema da “Década Internacional do Afrodescendente” reúne palavras que inflamam as políticas contemporâneas ao redor do mundo. Ou melhor, suas antagonistas – injustiça, atentado às identidades e negação do outro, são nitroglicerina pura com capacidade de implodir com o pouco que resta dos ideais da modernidade, valorados pela universalidade de direitos, igualdade, justiça e reconhecimento. A Década Internacional não diz respeito, portanto, apenas aos afrodescendentes, mas a toda a humanidade planetária e convida-nos a desviar as políticas contemporâneas de uma rota que vem se mostrando capaz de soterrar o projeto civilizatório instituído.

Rosane Borges: Jornalista, pós-doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, integrante do grupo de pesquisa Midiato da mesma Universidade, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial), coordenadora do curso de especialização da FAM e professora da UEL.

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