Marinha agride, intimida e ameaça comunidade quilombola na Bahia

08 de fevereiro, 2017

Os poucos quilômetros que separam a guarita fortemente vigiada por oficiais da Marinha do vilarejo de casas pertencentes às famílias que resistem no Quilombo Rio dos Macacos contam mais do que uma história recente: fazem parte de um cerco.

(The Intercept Brasil, 08/02/2017 – acesse no site de origem)

A palavra quilombo vem do Quimbundo, língua banta falada em Angola, e significa união, acampamento, arraial, povoação. No Brasil, no contexto da escravidão, tornou-se lugar de resistência dos povos escravizados e, segundo o mestre Nei Lopes, tem dupla conotação: uma toponímica e outra ideológica. Para acabar com um quilombo era necessário fazer o cerco – tática que vem sendo aprimorada e empregada há séculos pelo governo brasileiro.

Nesse caso específico, a Marinha brasileira quer atacar o quilombo na sua raiz, na fonte que lhe deu o nome: o Rio dos Macacos. Já tinha construído uma barragem, que tirava o curso do rio de dentro do território quilombola, e, agora, segue com a construção de um muro, que vai impedir que os moradores tenham acesso à água. É o cerco se fechando.

Mapa Complexo Naval de Aratu (BA)

Os moradores são descendentes de escravizados das fazendas que produziam cana de açúcar para o antigo Engenho Aratu. Com a falência do engenho, muitas famílias permaneceram no local, uma área de aproximadamente 900 hectares, até que, nas décadas de 1950 e 1960, foram surpreendidas pela doação de suas terras para a Marinha do Brasil.

Apesar de estarem no município de Simões Filho, a doação foi feita pelo então prefeito de Salvador, Nelson Oliveira. Desde então, foi feita a barragem do rio, construída uma Vila Militar para 450 famílias, e o único acesso ao quilombo é feito através de uma guarita controlada pelos militares. A vila conta com estrutura de escola e hospital que não podem ser usados pelos quilombolas.

O acesso é restrito aos moradores cadastrados e, durante muito tempo, cada um deles teve que portar uma carteirinha que o chamava de “invasor”. Mas mesmo esta carteirinha não garantia o acesso, que continua sendo dificultado em muitas situações, a depender da boa vontade ou da maldade de quem está de guarda.

Esses casos são julgados e analisados pelos próprios militares que, quase que invariavelmente, inocentam-se a si mesmos

Moradores contam que que, apesar de autorizados, nem sempre a Marinha permite a entrada de carros da SAMU para fazer atendimento médico dentro do quilombo, e o índice de analfabetismo é bastante grande porque crianças e jovens, ao saírem do território para buscarem as escolas na região, tinham a entrada dificultada. Inúmeros casos de intimidação e agressão física já foram relatados.

Quando denunciados pelos moradores, esses casos são julgados e analisados pelos próprios militares que, quase que invariavelmente, inocentam-se a si mesmos, alegando falta de provas e apontando a existência de uma campanha de difamação por parte dos quilombolas. Muitos deles, analfabetos ou analfabetos funcionais, foram obrigados a assinar depoimentos contendo declarações que não tinham feito. Fica o dito pelo não dito.

Da área de 900 hectares, o Incra reconheceu apenas 301, sendo que, destes, 196 ficaram para a Marinha, que alega serem de “interesse estratégico à defesa nacional”. Os outros 104, divididos em duas áreas não contíguas, foram destinados à comunidade. Insuficientes, segundo eles, para o modo de vida que levam.Pela dificuldade de entrar e sair, mesmo porque o acesso é precário, eles têm dificuldades em encontrar emprego fora do quilombo. Basicamente precisam ser autossuficientes, tendo lá dentro tudo de que necessitam para viver. Uma das atividades era a pesca na barragem, que foi proibida.

A Marinha ainda briga para ficar com tudo, resultando em ordens de despejo que precisavam ser contestadas periodicamente. Na área ocupada pelos moradores não há saneamento básico ou água encanada. Energia elétrica foi conquistada apenas agora no início de fevereiro, ainda por ser instalada. Os quilombolas moram em casas bastante precárias, boa parte delas construídas em adobe, que a Marinha não deixa reformar. Na maioria delas não há sequer banheiro, que precisa ser improvisado. Eles também são impedidos de realizar novas construções. Nem mesmo podem repor as casas que foram destruídas, sem qualquer explicação ou mandado, pelo próprio governo. As que permanecem de pé, resistindo como seus moradores, podem ser invadidas a qualquer momento, inclusive por militares montados a cavalo; caso que já aconteceu.

Quilombo Rio dos Macacos

Cerca de 90 famílias vivem em casas precárias em que não conseguem fazer reformas (Foto: Thiago Dezan)

Estive no Rio dos Macacos no início de 2016, numa grande reunião celebratória dos avanços na luta pela regularização do território, e estas foram apenas algumas das histórias de horror que ouvi.

Recentemente, o governo brasileiro achou por bem acrescentar mais um capítulo na luta dos resistentes. Depois de protestarem contra a construção do muro que os separa da barragem de onde retiram, artesanalmente, a água para sua subsistência, os moradores foram surpreendidos com o que se pode chamar de retaliação. No ano passado, haviam conseguido que o Exército construísse uma estrada de acesso à comunidade, sem que fosse necessário passar pela guarita da Vila Naval. A obra foi suspensa, com os militares recolhendo materiais e equipamentos. Os quilombolas resistem, mas o cerco se fecha. Topográfica e ideologicamente.

The Intercept Brasil solicitou à Marinha um posicionamento a respeito das denúncias sobre o quilombo Rio dos Macacos, mas não recebeu resposta.

Ana Maria Gonçalves

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