Precisamos enegrecer e feminilizar espaços de poder’, diz socióloga acreana Jaycelene Brasil

03 de junho, 2018

No mês passado, o Página 20 mostrou que no Acre a desigualdade salarial entre negros e brancos é uma das cinco maiores do país, com R$ 770 de diferença, em média. Enquanto o salário dos brancos que vivem no Estado tem média de R$ 2.511, o de pretos e pardos fica em torno de R$ 1.739 – equivalente a 69,2% do rendimento do primeiro grupo.

(Página 20, 03/06/2018 – acesse no site de origem)

Mulher negra e militante dos direitos humanos há 15 anos, a socióloga Jaycelene Brasil foi consultada pela reportagem para comentar o assunto e transitou além do debate de raça. Ela também trouxe para a discussão a questão de gênero, onde foi categórica: “a mulher negra segue levando o país no braço, segurando a pirâmide social”.

Na entrevista a seguir, a socióloga explica sua afirmação, os motivos da disparidade econômica entre brancos e negros, como o racismo age no Brasil e as possíveis saídas para essa problemática, que perdura por séculos.

Página 20 – Como se dá essa interface entre gênero e raça?

Jaycelene Brasil – Dentro da minha militância nos direitos humanos procuro discutir a desigualdade social que a gente tem no Brasil entre homens e mulheres, mas sobretudo a que afeta o segmento da população negra. E quando a gente olha a condição de ser uma mulher negra, no Brasil e no mundo, é uma questão ainda muito mais séria que precisamos discutir com honestidade e seriedade, porque nós continuamos a sustentar o mundo com nossa força de trabalho mal remunerada e estamos segurando a pirâmide social arduamente. Lá em cima está o homem branco, depois a gente tem a mulher branca, o homem negro e, por fim, a mulher negra segurando toda essa estrutura.

P20 – E como isso reflete na questão econômica desse grupo específico?

JB – Do ponto de vista do acesso ao mercado de trabalho, a gente vê a população branca mantenedora de seus privilégios sociais, ao contrario de homens negros, que, para galgar oportunidades, enfrentam dificuldades, esbarrando com o impeditivo do racismo, mesmo quando apresentam o nível superior. Quando comparamos a trajetória de oportunidades para mulheres negras, mesmo com nível superior, o cenário de pesquisas mostra que ela ganha bem abaixo do salário dos homens, e que mesmo comparando com o dos homens negros que têm ascensão, ainda continua inferior. Quando falamos de mulheres, temos que entender que há uma desigualdade excludente gritante, potencializada pela cor de pele e classe social. Temos o racismo estrutural, impedido a ascensão social e inclusão nas políticas públicas da população negra. Gosto de exemplificar situações reais: a intelectual negra Sueli Carneiro é certeira ao cunhar o termo genocídio epistemológico, referindo-se às justificativas que mulheres negras cotidianamente têm de fazer quando disputam as narrativas nas universidades.

P20 – Fale mais sobre esse genocídio epistemológico.

JB – Mesmo construindo carreiras brilhantes e tendo acúmulos e títulos, não é o suficiente para elas terem a respeitabilidade do mundo acadêmico, em geral administrado por homens brancos. Elas sempre terão que exigir respeito. E a estrutura eurocêntrica do conhecimento fará julgo da capacidade intelectual dessas mulheres. O imaginário social da academia é um espaço elitista, machista e racista. Se para uma mulher branca é difícil pautar escritas e falas, materializar livros e lançá-los no mercado, para uma mulher negra, a quem o silêncio historicamente foi dado, ter qualquer protagonismo é incômodo social, porque ela sempre vai ter de estar justificando sua capacidade intelectual e brigar para estar nos lugares que nunca estiveram historicamente. É dessa maneira que a academia tenta ‘assassinar’ o conhecimento e as pesquisas, invisibilizando toda e qualquer tentativa de visibilidade desse capital intelectual empretecido.

P20 – E aí tudo isso impacta na questão salarial?

JB – Exato. Nós temos 18% somente de negros em cargos de destaque no nosso país. Se você parar pra pensar e imaginar profissões elitizadas, existe um branqueamento das profissões liberais. Quando você olha, por exemplo, para dentro das universidades do Brasil, você vai ver uma minoria negra nos espaços acadêmicos, inclusive na gestão, com o poder da caneta. Isso é explícito em um percentual de 89% de reitores brancos no Brasil. Então você quase não tem pessoas negras determinando e conduzindo esses espaços.

P20 – Além das universidades, que outros exemplos você citaria?

JB – Quando você para pra pensar, por exemplo, em presidentes de empresas e vai em busca de pesquisas, é revelado que 95% dessa representatividade pertence a pessoas brancas, enquanto que um percentual baixíssimo é de negros. Na área da Medicina, é possível enumerar a presença de profissionais negros ou negras; na TV, ainda temos uma expressividade pequena de atores e atrizes frente ao número de protagonistas brancos.

P20 – Por que isso acontece?

JB – Como já citei anteriormente, isso sé dá pela negação de direitos para essa população, por conta do racismo estrutural no Brasil, que é resquício do período escravocrata de três séculos. Temos somente 130 anos de fim da escravidão e 14 de políticas públicas de Igualdade racial, pensadas por um governo de esquerda que implementou ações afirmativas. Consequentemente, podemos acessar o Fies e o Prouni, objetivando visibilidade, entrada e expansão nas universidades. A Lei 10.639/2003 também foi um marco quando pauta a importância de se falar positivamente da história africana e afro-brasileira nas escolas e na academia. Importante dizer que nesse pouco tempo de ganhos de direitos, de 2004 para 2014, saímos de 16,7% e saltamos para 45,5% no quesito presença dentro das universidades. E isso deveria continuar para não quebrar a cadeia inclusiva, considerando o fosso de acesso às politicas inclusivas que existem no Brasil.

P20 – Então essa demora de atitude do Estado brasileiro perpetuou o racismo, certo?

JB – Correto. Isso impactou no mercado de trabalho, isso impactou na televisão, porque não nos vemos com representatividade positiva, a história não é contada pautando a verdade e sim um único lado, uma única versão, estruturando ainda mais o racismo. E a falta dessa representação da diversidade das pessoas, sobretudo nós, negros e negras, reverbera de forma negativa em todos os outros espaços. Isso é tão sério que nos é tirado o direito de ter direitos básicos. Como por exemplo um atendimento humanizado na área de saúde, prevalecendo o racismo institucional que também está no imaginário social das pessoas e é naturalizado e que nesse sentido também exige um olhar cuidadoso da gestão pública.

P20 – Fale mais sobre essa história única.

JB – Como disse a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, é muito perigoso você só ter uma versão da história pra contar. E a versão que a gente teve a vida inteira de história no Brasil dos livros didáticos foi a de que o berço da humanidade é a Europa, e não é. O berço do mundo é o continente Africano, o Egito, por exemplo, está incluso nele. Essa negação da nossa verdadeira história é muito perigosa e tem consequências terríveis para todas as gerações.

P20 – Você citou políticas públicas nos últimos 14 anos. Vamos abordar melhor isso?

JB – Então, a gente teve muitos ganhos do ponto de vista de políticas, de implementação de leis que objetivaram democratizar os espaços de poder, proporcionando a entrada de negros, negras e indígenas nos espaços universitários. Nós tivemos, por exemplo, em 2010, a Lei 12.288/2010, que foi o Estatuto da Igualdade Racial. Ele é o nosso marco regulatório porque define o que é população negra, define todas as políticas públicas para a população negra no Brasil. O Estatuto é o nosso referencial positivo, que diz: “olha, Estado brasileiro, você tem que garantir direitos pra essa população aqui”. Porque se há uma garantia de saúde, ou seja, se o Estado olha com cuidado todas as doenças que a população negra tem específicas, isso quer dizer que a gente vai ser cuidado, então a gente não vai morrer antes do tempo. Quando o Estatuto diz: “olha, educação, você tem que falar positivamente da história africana e afro-brasileira”, uma criança vai ter orgulho de dizer que é negra, se autodeclarar negra, um jovem vai ter orgulho de deixar o cabelo dele black porque o cabelo dele implica em empoderamento, traz a ancestralidade presente, então não vai ser uma coisa feia, não vai ser uma coisa dolorosa pra ele e nem pra ela.

P20 – Vamos voltar à questão do racismo. Explique como ele age.

JB – Vou começar citando um exemplo. Se você tem uma pessoa branca de olhos verdes na rua vivendo em condições precárias, e ao lado dela você tem uma pessoa negra na mesma situação, muito mais pessoas serão solidárias à branca. Isso acontece por conta do peso do racismo presente no imaginário social do ser humano, que, na sua subjetividade, e isso está cristalizado, aquela pessoa negra não merece receber a sua ajuda porque é indigna e que é natural permanecer ali naquela condição desumana. É o “castigo social”.

P20 – Do ponto de vista econômico, o que o país perde com o racismo?

Existe um estudo que diz que se houvesse uma igualdade entre brancos e negros do ponto de vista da representatividade na mídia, por exemplo, nós movimentaríamos R$ 800 bilhões no mundo. E com isso se constata que muitas empresas ainda não acordaram pra questão. Porque como a maioria desses espaços é gestado por pessoas brancas e não atentas à gravidade do racismo, elas acabam achando que só o que vende é a imagem eurocêntrica, de uma mulher branca afilada e de um homem branco afilado. Existem algumas experiências de sucesso no mundo, considerando a inclusão de negros, indígenas, pessoas com deficiência, porque, no âmbito financeiro, vender essas imagens também é negócio e impacta na subjetividade das pessoas. O empresariado precisa acordar para a inclusão de verdade.

P20 – Você concorda que hoje muitos ainda tratam o racismo como brincadeira?

JB – O antropólogo e professor brasileiro-congolês Kabengele Munanga afirma que o racismo é um crime perfeito. Em geral, de vítima do crime de racismo a pessoa negra ainda passa a ser criminalizado duplamente. O exemplo disso foi o que aconteceu na Universidade Federal do Acre, com o blackface envolvendo o ato racista de um professor de Medicina. Pra muita gente, o caso foi banalizado e ele saiu como herói quando se caracterizou de pessoa negra e ainda expôs um pênis arrastando no chão, chacotando e expondo ao ridículo todo um segmento populacional que não quer ser retratado dessa forma. Você não vê pessoas negras se pintando de branco e indo para festas, por exemplo. Desconheço essa informação. Então, que nos respeitem e falem da nossa história e nos representem positivamente, sobretudo nos espaços de produção de conhecimento, que devem trabalhar e falar da inclusão, e não potencializar o racismo, a LGBTfobia, o machismo, o sexismo e a discriminação.

P20 – E quais os desafios pra superar esse problema?

JB – O grande desafio é a gente ter oportunidades iguais, acessar oportunidades, ter escolas e universidades inclusivas, que façam o debate do racismo com a seriedade que a questão exige, porque temos essa esquizofrenia social presente diariamente nas relações de vida das pessoas e isso mata e segrega. A população negra precisa ter clareza do que foi nos tirado socialmente para que a gente tenha força e convicção que merecemos sim a outra metade da fatia do bolo. Precisamos que o país nos compense com políticas públicas sempre. Assim, haverá um tensionamento na pirâmide social, fazendo com que ela trema e, com isso, poderemos disputar os espaços de poder de igual para igual. Como diz a filósofa Djamila Ribeiro, precisamos discutir não só as pontes que nos ligam, mais os muros que nos separam.

Leandro Chaves

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