Um brevíssimo e triste retrospecto das origens do assédio sexual, por Breno Rosostolato

15 de janeiro, 2015

(Maxpress, 15/01/2015) Na Europa do século 17, em plena Idade Moderna, o momento histórico era pautado em intensas transformações sociais, no qual a Reforma Protestante atuava como meio de diminuir a rigidez dos conceitos católicos. As mudanças mais emblemáticas ocorreram devido ao surgimento da Revolução Francesa, cujo movimento causou metamorfoses cruciais nas relações sociais e, principalmente, no sexo e no desejo. Mas a população europeia pouco sabia o que acontecia em outros continentes. Mas será que eles achavam que não existia pecado no lado de baixo do Equador?

O fascínio europeu pela sexualidade tropical aconteceu quando 50 índios tupinambás realizaram uma apresentação de dança, no qual tinham seus corpos pintados com urucum, ao rei Henrique II da França e à sua mulher Catarina de Médici quando eles visitaram a Normandia em 1550. Foi o pensador holandês Gaspar Barléu que refletiu sobre este interesse despertado pelos corpos dos índios com uma afirmação que circulou pela Europa – ‘Não existe pecado do lado de baixo do Equador’ – e que mais tarde foi resgatado pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda e posteriormente musicado por seu filho, o cantor e compositor Chico Buarque. Mas é a partir daqui que veremos que existe muito mais pecado deste lado do Equador e que infelizmente, o estupro é um pano de fundo na famigerada história do Brasil.

Na miscigenação, expressão muito usada para explicar a mistura de raças muito enaltecida em nossa sociedade, em época de colonização, o estupro era muitas vezes uma prática comum. Os colonizadores eram homens que foram requisitados pela Coroa para contribuir com a colonização. Homens degradados, retirados das cadeias, ladrões, saqueadores, bêbados, assassinos. Eles podiam usufruir dos habitantes da colônia e assim, constituíram famílias, baseadas no poder do “senhor” e num sistema patriarcal. Família, inclusive, que na acepção da palavra é originada do latim “famulus”, que significa escravos domésticos. Esposa e filhos pertenciam ao senhor, assim como suas terras e escravos. O estupro ficou a cargo de colonizar e controlar os selvagens. Mas quem é selvagem mesmo?

A escravidão foi marcada pelo estupro. Os negros escravos eram mercadorias e utilizados ora como meio de reprodução, ora como objetos dos caprichos sexuais dos senhores da casa grande. Os interesses econômicos estavam relacionados à escravatura. O valor da mulher escravizada era a de dois homens escravizados, porque ela, além de exercer os trabalhos nas plantações e minas, exercia o serviço doméstico e gerava mão de obra gratuita e lucro para o escravizador.

Os ‘baguás’, negros reprodutores, robustos, obedientes e serviçais, recebiam a ordem do senhor para ir ‘capinar’ junto com as escravas e assim cumprir sua missão: engravidá-las. Os filhos destes estupros eram vendidos, gerando lucro para o senhor. Sim, lógico. A escravidão, entre muitos absurdos, cultuou o estupro como método de reprodução.

Na República Velha, o coronelismo dava as ordens. Violência e práticas misóginas davam a tônica na sociedade. O marido impunha suas vontades e desejos, enquanto, sem alternativa, a esposa cedia à arbitrariedade. O clássico Gabriela, Cravo e Canela de Jorge Amado retratou entre muitas histórias a do fazendeiro Jesuíno Mendonça, casado com Dona Sinhazinha, o estereótipo do machista chauvinista que tratava a esposa com rispidez e violência. Na adaptação para a TV pelo diretor Walcyr Carrasco, o personagem Jesuíno, interpretado por José Wilker, usava um bordão sempre que queria transar com a esposa – ‘deite que vou lhe usar’. Bordão extraído do livro ‘Entre a luxúria e o pudor — História do sexo no Brasil’, de Paulo Sérgio do Carmo.

Existem relatos de punições às mulheres que iam desde apanhar com varas cravejadas de espinhos, dormir ao relento, passar fome por vários dias, até serem amarradas ao pé da cama enquanto o marido, no mesmo aposento, deitava-se com a amante. O sistema jurídico que vigorou durante todo o período do ‘Brasil-Colônia’ foi o mesmo que vigorava em Portugal, as Ordenações Filipinas. Garantiam ao marido o direito de matar a mulher caso ele suspeitasse ou a apanhasse em adultério. A violação do corpo da mulher e o estupro sustentado no casamento.

Avançando um pouco mais na história, descemos aos porões da ditadura. A atriz Claudia Alencar, durante sua participação no programa ‘Agora é tarde’ de Rafinha Bastos, deu seu depoimento quando foi presa durante este período. Relatou que muitas colegas foram duramente agredidas e estupradas.

E a violência continua. É severa e perturbadora. Vivemos ainda em uma sociedade onde há indivíduos que consideram que a mulher vítima de estupro provocou a situação. E olha que não preciso de pesquisa do Ipea para comprovar esta triste realidade. Recentemente nos deparamos com depoimentos assustadores de universitárias denunciando abuso sexual em festas na maior e mais respeitadas instituição de ensino superior do país.

Mas eis que, como nunca na história deste país, o estupro foi uma das principais causas da destruição de dignidades, sentimentos e honras. ‘Estupra, mas não mata’ é a morte. Uma declaração abismal, no mesmo patamar da mais recente declaração famigerada ‘Não estupro você porque não merece’. As duas frases de políticos. Representantes da população. Pessoas públicas, defensores da lei, da moral e dos bons costumes.

Existe muito pecado deste lado da linha do Equador. O Brasil está muito longe de ser um país de liberdade sexual, justo e igualitário. Vivemos em uma sociedade reacionária que faz do passado cada vez mais o presente.

Breno Rosostolato é professor de psicologia da Faculdade Santa Marcelina – FASM

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