Violência contra a mulher: tratam-se os sintomas, não as causas. Entrevista especial com Patrícia Grossi

28 de novembro, 2014

(Instituto Humanitas Unisinos, 28/11/2014) “Muitas violências são naturalizadas e não são percebidas, sendo difícil o enfrentamento. Urge a necessidade de ampliação da rede de atendimento e o fortalecimento da rede de enfrentamento à violência contra a mulher”, diz a assistente social.

“As mulheres vítimas de violência, em geral, são vistas no sistema de saúde como as ‘poliqueixosas’ crônicas. O problema é que se tratam os sintomas da violência, e não a raiz”, comenta Patrícia Grossi em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo ela, em casos de estupros, “ainda se pergunta à vítima o que ela estava vestindo, questionando também o comportamento da mesma, como se ela fosse merecedora ou causadora do ato de violência”.

De acordo com os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado recentemente, o Rio Grande do Sul é o estado que contabiliza o maior número de tentativas de estupro no país e o quarto em que se registram mais casos de estupro. Para Patrícia, os dados podem ser explicados pelo fato de o estado ainda ter “resquícios de machismo e conservadorismo que contribuem para o alto índice de crimes como o estupro contra mulheres”.

A pesquisadora lembra que os números do Anuário de Segurança Pública também demonstram que “as vítimas de estupro, em geral, não denunciam”. Atualmente, 35% das mulheres denunciam as agressões. Contudo, diz a pesquisadora, “há algumas décadas, esse índice ainda era menor, em torno de 5%. É como a teoria do iceberg, somente vemos o topo, e submerso, milhares de mulheres ainda sofrem no silêncio com esse tipo de violência. Em geral, não denunciam por vergonha, medo de represálias por parte do agressor, desejo de manter a imagem da família, dependência econômica do agressor, dependência emocional, falta de perspectivas, falta de uma rede de apoio, entre outros fatores”.

Na avaliação de Patrícia Grossi, a falta de denúncias está relacionada também com a “negação da violência” e a “uma atribuição a fatores externos que acabam contribuindo para a desresponsabilização do ato. Nas falas dos homens agressores também é comum a racionalização, a minimização e a negação dos atos de violência, não assumindo a responsabilidade pelo ato”, pontua. E acrescenta: “Existem ainda alguns estigmas em relação às mulheres em situação de violência que resultam na culpabilização pela situação em que se encontram. Se não reagem, são vistas como passivas. Se reagem, são vistas como violentas”.

Patrícia Grossi: professora do Programa de Graduação e de Pós-graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica – PUCRS (Foto: Reprodução)

Patrícia Grossi é professora do Programa de Graduação e de Pós-graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica – PUCRS, professora do Programa de Pós-graduação em Gerontologia Biomédica da PUCRS e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Violência, Ética e Direitos Humanos – NEPEVEDH.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como interpreta os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de que o RS é o estado com maior número de tentativas de estupro no país e quarto colocado no país em relação ao número de ocorrências de estupro, sendo contabilizados 3.528 registros em 2013? Os dados surpreendem? Como é possível interpretá-los à luz da atual situação de violência contra as mulheres no estado?

Patrícia Grossi – O Rio Grande do Sul ainda é um estado com resquícios de machismo e conservadorismo que contribuem para o alto índice de crimes como o estupro contra mulheres. Aliado a esse fator, as mulheres gaúchas estão mais conscientes dos seus direitos e, com o advento da Lei Maria da Penha, têm procurado mais os órgãos públicos para denunciar este tipo de violência. Salienta-se, nos dados da pesquisa do anuário, a estimativa de que somente 35% dos casos de estupro sejam denunciados. Isto significa que, apesar do crescente aumento de denúncias, existe ainda uma subnotificação, e campanhas são necessárias para sensibilizar as mulheres para a importância de romper o silêncio através da denúncia, além de programas de atendimento às vítimas.

IHU On-Line – Quais são as demais ações violentas cometidas contra as mulheres no estado?

Patrícia Grossi – Existe também o femicídio de mulheres no RS que continua alto, 92 mulheres foram assassinadas em 2013, de acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública, sendo que houve 241 tentativas de assassinato de mulheres. O maior número de ocorrências registradas pelas mulheres em 2013 foi de ameaças, 42.891, seguido das lesões corporais, com 25.964 ocorrências. Essas ações violentas, em geral, vêm acompanhadas da violência psicológica, que contribui para a diminuição da autoestima das mulheres, depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, entre outros agravos na saúde física e mental, podendo levar a tentativas de suicídio e suicídio, em casos mais extremos. Também existe a violência patrimonial, o assédio moral, o uso dos filhos, o cárcere privado, entre outras formas de violência vivenciadas pelas mulheres.

IHU On-Line – Como as vítimas de estupro e violência em geral lidam com essas situações? Ainda há muitos casos que não são denunciados?

Patrícia Grossi – As vítimas de estupro, em geral, não denunciam, somente uma minoria (35%), de acordo com os dados do Anuário de Segurança Pública. Há algumas décadas, esse índice ainda era menor, em torno de 5%. É como a teoria do iceberg, somente vemos o topo, e submerso, milhares de mulheres ainda sofrem no silêncio com esse tipo de violência.

Em geral, não denunciam por vergonha, medo de represálias por parte do agressor, desejo de manter a imagem da família, dependência econômica do agressor, dependência emocional, falta de perspectivas, falta de uma rede de apoio, entre outros fatores.

IHU On-Line – Quais são os principais estigmas e tabus em torno da violência contra a mulher?

Patrícia Grossi – Os principais tabus em torno da violência contra a mulher ainda são de que a “mulher que apanha não sai de casa porque não quer”, ignorando os múltiplos determinantes culturais, sociais, econômicos, que fazem com que ela permaneça na relação.

Outro mito é o de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, contribuindo para a não interferência nas situações de violência. Outro mito é de que a violência só acontece com mulheres de baixa renda, sendo que esse é o fenômeno mais democrático do mundo, segundo a socióloga Saffioti, pois não tem fronteiras de classe social, idade, religião, etnia, entre outros. No Brasil, uma mulher é agredida a cada 24 segundos, de acordo com uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, de 2010, enquanto no Canadá a mulher é agredida a cada 4 minutos.

Existem ainda alguns estigmas em relação às mulheres em situação de violência que resultam na culpabilização pela situação em que se encontram. Se não reagem, são vistas como passivas. Se reagem, são vistas como violentas. Se permanecem anos em uma situação de violência, são sadomasoquistas. As mulheres vítimas de violência, em geral, são vistas no sistema de saúde como as “poliqueixosas” crônicas. O problema é que se tratam os sintomas da violência, e não a raiz. Em relação ao estupro, ainda se pergunta à vítima o que ela estava vestindo, questionando também o comportamento da mesma, como se ela fosse merecedora ou causadora do ato de violência.

IHU On-Line – Como tem se dado a assistência às mulheres vítimas de violência no Rio Grande do Sul? Percebe avanços em relação aos últimos anos?

Patrícia Grossi – Existem avanços, como a implantação das Salas Lilás para acolhimento às vítimas de violência nos IMLs, que oferecem um atendimento mais humanizado às mulheres em situação de violência; os Centros de Referência das Mulheres; a ampliação das Delegacias Especializadas das Mulheres, que contará com atendimento interdisciplinar às vítimas, através de psicólogos e assistentes sociais e estagiários, antes de realizarem a denúncia. Outro avanço foi a criação das Patrulhas Maria da Penha, com dupla de policiais treinadas na área da violência doméstica, que fazem rondas na comunidade e visitas às mulheres que possuem medidas protetivas de afastamento do agressor. Esse trabalho realizado pelas Patrulhas Maria da Penha visa ao monitoramento da execução das medidas protetivas e também ao trabalho com a comunidade. A idéia da criação da Patrulha Maria da Penha surgiu a partir de análise dos casos de femicídio no Estado, onde 60% das mulheres não realizaram denúncias, e aquelas que haviam denunciado já tiveram várias ocorrências registradas antes de serem assassinadas. Uma das metas é prevenir os femicídios, pois muitos agressores descumprem a medida protetiva e se aproximam da mulher, em busca de vingança.

Campanhas na mídia, como a divulgação do Disque 180 e o Escuta Lilás para as mulheres serem encaminhadas à rede de atendimento quando houver necessidade, também são importantes. Iniciativas como a “Maria na Escola” e“Maria na Comunidade”, para divulgar a Lei Maria da Penha nas escolas e na comunidade, e a criação de um grupo reflexivo de gênero para homens agressores no Juizado Especializado da Violência Doméstica e Intrafamiliar, para que esses possam refletir sobre suas relações de violência e construir uma nova sociabilidade, auxiliam a prevenir a reincidência. Precisamos investir ainda mais em ações de prevenção para desconstrução da cultura machista e sexista no Estado, que ainda faz com que muitos homens considerem suas companheiras como “objeto de posse”, uma propriedade, e fazem uso da violência para subjugar a companheira às suas vontades.

Muitas violências são naturalizadas e não são percebidas, sendo difícil o enfrentamento. Urge a necessidade de ampliação da rede de atendimento e fortalecimento da rede de enfrentamento à violência contra a mulher com programas de prevenção à violência nas escolas, na comunidade, na associação de moradores, nos grupos de igreja, entre outros espaços formais e não formais. Existem espaços coletivos de enfrentamento à violência, como os movimentos sociais de mulheres, as marchas de mulheres, campanhas na mídia para divulgação dos serviços e disque denúncia. Porém, urge a necessidade de estimular a comunidade para participação nas instâncias de controle social das políticas, audiências públicas sobre o tema e fórum de políticas para mulheres, visando à articulação da rede de atendimento com diferentes setores e o monitoramento da implementação do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher no Estado.

IHU On-Line – É possível avaliar os resultados da Lei Maria da Penha no Rio Grande do Sul?

Patrícia Grossi – A Lei Maria da Penha contribuiu para dar maior visibilidade aos crimes de violência contra a mulher no estado, sendo que possui em torno de 22 mil ocorrências desde a implantação do Juizado Especializado de Violência Doméstica e Intrafamiliar. Um dos avanços com a Lei Maria da Penha foi a criação, em 2012, da Patrulha Maria da Penha no RS. A Patrulha Maria da Penha é composta de quatro policiais militares que fazem rondas nos quatro territórios da Paz de Porto Alegre para acompanhar os casos de violência doméstica contra mulheres e o cumprimento das medidas protetivas. As visitas são realizadas durante o dia por uma equipe de dois policiais homens e duas policiais mulheres, para que as mulheres vítimas se sintam mais acolhidas, e também realizam rondas à noite. A ideia é acompanhar todas as mulheres que tiverem solicitado medida protetiva na Delegacia de Mulheres para mostrar que o Estado se importa com a sua segurança, poder verificar se o agressor a está importunando ou ameaçando. A iniciativa é pioneira em Porto Alegre e está sendo ampliada para outros 25 municípios do RS e outros Estados do Brasil, recebendo um prêmio internacional pela iniciativa na área de enfrentamento à violência contra a mulher. Já foram capacitados mais de 600 policiais.

IHU On-Line – Quais são os órgãos estaduais e federais que atendem às mulheres vítimas de violência hoje no estado? Em alguns casos as vítimas são acompanhadas de assistentes sociais? Quando e como esse trabalho é feito?

Patrícia Grossi – Existe o Centro de Referência da Mulher Vânia Araújo, no âmbito do estado, que oferece atendimento social, jurídico e psicológico, com atuação de assistentes sociais; o Centro de Referência de Atendimento à Mulher — Márcia Calixto oferece este atendimento no âmbito municipal. A mulher que chega a esse centro, na maioria das vezes, vem encaminhada pela Delegacia da Mulher — ou por indicação de mulheres que já foram assistidas no CRAM. O primeiro passo é o acolhimento da mulher, no qual a equipe procura identificar os tipos de violência sofridos pelas mulheres, é oferecido atendimento psicológico, e se houver boletim de ocorrência a mulher também é acompanhada por um advogado que a orientará sobre os seus direitos. Em situação de risco de morte, a mulher poderá ser encaminhada a uma casa-abrigo ou para a residência de um amigo ou parente. Dentro desse trabalho, o essencial é avaliar o risco da violência, identificar qual é a rede de apoio que essa mulher pode contar e estabelecer também estratégias que garantam a segurança da vítima. A assistente social também realiza encaminhamentos para a rede de serviços conforme as demandas apresentadas pela mulher. Também são ofertados às mulheres grupos mensais de reflexão de gênero.

O Centro de Referência às Vítimas de Violência costumava atender as mulheres em situação de violência doméstica, mas atualmente estão atendendo somente mulheres idosas, que estejam vivenciando situações que não se enquadram na Lei Maria da Penha, como violência racial, violência contra a população LGBT, violência e assédio moral e sexual no trabalho.

Assistência social

No âmbito da política de assistência social, existem os Centros de Referência Especializados da Assistência Social que fazem parte da rede de atendimento não especializada a mulheres em situação de violência conforme o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, assinado pelo RS em 2011. Os CREAS atendem a população que vivencia situações de violação de direitos decorrente de violência, drogadição, situação de rua, entre outras, sendo essas, crianças, adolescentes, mulheres ou pessoas idosas e com deficiências.

Também existem os Centros de Referência em Direitos Humanos, que atendem mulheres vítimas de violência através de equipe interdisciplinar, realiza oficinas de cidadania, entre outras, os organismos de políticas para mulheres, núcleos de atendimento jurídico na perspectiva feminista, ONGs feministas, promotoras legais populares que fazem um trabalho de sensibilização na comunidade, orientação às mulheres quanto aos seus direitos, sendo multiplicadoras de conhecimento. Atuam no Sim, Serviço de Informação à Mulher, no Tudo Fácil.

Um dos entraves é a questão do horário de funcionamento dos serviços, que só estão abertos durante a semana, até às 18h, sendo que a maior incidência dos casos de violência contra a mulher é no horário noturno e aos finais de semana, restando somente a Delegacia como local para recorrer.

IHU On-Line – Quais são as principais evidências do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Violência, Ética e Direitos Humanos em relação à violência contra a mulher na contemporaneidade?

Patrícia Grossi – O Núcleo de Estudos e Pesquisa em Violência, Ética e Direitos Humanos, especialmente através do Grupo de Estudos e Pesquisa em Violência – NEPEVI, tem realizado várias pesquisas no âmbito da violência contra a mulher e políticas públicas, desde 2000, na PUCRS. Durante esses anos, percebe-se que foi ampliada a rede de atendimento à mulher, com a criação de mais casas-abrigo, em torno de 12 no Estado atualmente, a ampliação das Delegacias das Mulheres, criação de Centros de Referência da Mulher, em torno de 20, criação do Juizado Especializado da Violência contra as Mulheres, que será ampliado para oito no estado, entre outras estruturas de apoio. As nossas pesquisas buscam realizar o mapeamento da rede de atendimento à mulher, mas também identificar os desafios para o atendimento das necessidades das mulheres a partir da perspectiva dos gestores, técnicos e das próprias mulheres em situação de violência. Existe ainda a necessidade de fortalecimento da rede de serviços e a articulação intersetorial entre as políticas, capacitação dos profissionais da rede na questão de gênero, direitos humanos e violência contra a mulher.

Muitos profissionais buscam essa capacitação por iniciativa individual, pois não é oferecida no serviço. Existem mulheres mais vulneráveis e com menor acesso à rede de proteção, como as mulheres rurais.

Violência contra mulher rural

A pesquisa que estamos desenvolvendo atualmente, intitulada“Violência contra a Mulher Rural e a Rede de Proteção Social no Estado do Rio Grande do Sul”, tem apontado para várias questões que ainda dificultam a denúncia, a longa distância dos serviços, a falta de transporte, a falta de informação sobre os seus direitos e a naturalização da violência vivenciada.

Urge a necessidade de romper com o ciclo de violência intergeracional e oferecer programas de reabilitação aos homens agressores conforme prevê a lei Maria da Penha, pois muitas mulheres não desejam romper com seus casamentos e sim com a violência. Metade das mulheres entrevistadas consideraram positivas as medidas protetivas e eficazes, sentindo-se seguras, sendo que a medida protetiva de afastamento do agressor é a mais conhecida. Outra medida considerada importante é a promoção da autonomia econômica da mulher, pois a vulnerabilidade social contribui para a permanência em situações de violência.

Outra dificuldade apontada pelos profissionais da rede de proteção à mulher em municípios pequenos é a dificuldade de a mulher denunciar se não tiver o apoio de algum familiar e a vergonha que sente ao denunciar. O isolamento social e a falta de apoio familiar dificultam o rompimento da violência. O medo de “ficar mal falada na comunidade e sofrer o ostracismo social também dificultam o rompimento do silêncio. Outra questão refere-se ao status social, mulheres de poder aquisitivo mais alto resistem mais em denunciar a violência, muitas vezes em função do medo de perder o status quo, não querem dividir o patrimônio e acabam dividindo o mesmo teto, com o agressor, separados por cômodos. As evidências dos nossos estudos mostram que as mulheres em geral associam a violência à violência física, emocional e sexual, sendo que relatam que “uma palavra às vezes machuca mais que um tapa”, pois o hematoma vai embora, mas a dor emocional que afeta a psique da mulher permanece. O uso de drogas, desemprego, maus-tratos na família de origem são fatores que contribuem para a violência contra a mulher. Não raro, muitas mulheres alegam que “quando ele não bebe, é um amor”.

Existe uma negação da violência e uma atribuição a fatores externos que acabam contribuindo para a desresponsabilização do ato. Nas falas dos homens agressores também é comum a racionalização, a minimização e a negação dos atos de violência, não assumindo a responsabilidade pelo ato. Compartilho a posição de Saffioti de que a mulher não consente com a violência, ela cede. Assim, a mulher cala, não porque é submissa ao agressor, mas como uma estratégia de sobrevivência, para evitar novas violências. Reconhecer as diferentes estratégias de enfrentamento às violências utilizadas pelas mulheres, a rota percorrida e as respostas que essas mulheres obtiveram poderá auxiliar os profissionais da rede a compreender suas demandas, reconhecendo suas trajetórias, vulnerabilidades e potências. A partir da criação do vínculo e de uma atitude de escuta e não julgamento podemos colaborar na construção de estratégias coletivas de enfrentamento às múltiplas opressões que as usuárias enfrentam, o que muitas vezes exige respostas de diferentes políticas sociais (saúde, educação, assistência social, trabalho, habitação e segurança pública), entre outras, na perspectiva da transversalidade de gênero.

IHU On-Line – É possível identificar as causas de ainda haver violência contra a mulher?

Patrícia Grossi – A violência contra a mulher é um fenômeno histórico, social e cultural, que está enraizado na nossa sociedade. Não existe uma causa única, é um fenômeno complexo e multicausal, que envolve fatores sociais, culturais, psicológicos, econômicos, religiosos, entre outros, que contribuem para que isso ocorra. O sistema patriarcal existente favorece a manutenção de estruturas de desigualdade de gênero que se evidenciam desde a educação sexista, que perpetua estereótipos de papéis de gênero, as desigualdades salariais no mercado de trabalho, no qual a mulher ainda recebe em torno de 67% do que recebe o homem pela mesma função exercida, menor número de mulheres em cargo de chefia, aumentando a disparidade, quando se considerar a questão das mulheres negras.

Apesar dos avanços na área dos direitos das mulheres e de elas estarem conquistando vários espaços, antes ocupados somente por homens, a violência contra a mulher, principalmente na esfera doméstica, ainda é alarmante. Porém, compartilho a posição de que a violência também é uma construção social e pode ser um fenômeno aprendido e, como tal, também pode ser desaprendido.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Patrícia Grossi – Existe uma tendência a resolver os casos que chegam ao Juizado Especializado de Violência Doméstica e Intrafamiliar através de práticas conciliatórias, pois a mulher já fez as pazes com seu agressor, sendo que na maioria das vezes esse agressor é o companheiro ou marido. Essas práticas muitas vezes resolvem a situação aparentemente, pois os conflitos não são trabalhados e pode ocorrer a revitimização da vítima.

Compartilhamos a posição de Bárbara Soares de que o conflito pode ser mediado, mas a violência não.

Para análise da violência contra a mulher, devemos levar em consideração também o contexto da violência estrutural a fim de podermos compreender a estrutura de oportunidades que a mesma possui para romper com a violência, as formas de acesso às políticas sociais existentes para si e os filhos e também levar em conta a violência institucional, a forma como são acolhidas pelos serviços, pois não raro são questionadas sobre o que fizeram para acontecer aquilo com elas.

Destacamos a importância da implementação de políticas intersetoriais que possam atender as necessidades das mulheres, como habitação pós-abrigo, atendimento psicossocial para todos os membros da família, acesso a tratamento para dependência química, educação, renda e principalmente, a humanização no atendimento, respeitando as singularidades do processo de violência vivenciado por cada mulher e contribuindo para a criação de estratégias coletivas de enfrentamento às múltiplas formas de opressão. A Lei Maria da Penha é o primeiro passo para mostrar à sociedade que em “briga de marido e mulher se mete a colher”, porém a rede de atendimento à mulher deve estar disponível e esta precisa se sentir segura, pois o enfrentamento da violência contra a mulher vai além da denúncia. Romper com as amarras da opressão de gênero, raça/etnia e classe social e com os resquícios da cultura patriarcal e patrimonialista torna-se o primeiro passo para que as mulheres possam ser resgatadas em sua condição de sujeito de direitos e não serem mais assujeitadas pelas marcas de um sistema patriarcal, capitalista e racista que perpetua as desigualdades. Isto envolve a capacitação profissional dos operadores da rede de serviços, dos operadores jurídicos e a sensibilização dos gestores públicos para a implementação de ações que desconstruam os padrões e estereótipos culturais sexistas e machistas que reforçam este quadro.

Acesse no site de origem: Violência contra a mulher: tratam-se os sintomas, não as causas. Entrevista especial com Patrícia Grossi (Instituto Humanitas Unisinos, 28/11/2014)

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