Violência doméstica na favela traz ‘impossibilidade da denúncia já que a polícia não vem até agressor’, diz pedagoga

14 de dezembro, 2019

Ex-vítima e idealizadora de roda de conversas com mulheres, Fabbi Silva tem sua trajetória retratada no filme ‘Histórias para contar’, no Festival do Rio

(Universa, 14/12/2019 – acesse no site de origem)

RIO — Numa comunidade em que a polícia não chega, embora a violência seja diária, há pouca empatia do sistema de saúde, e as mulheres não têm oportunidade de estudar ou trabalhar, oferecer alguma perspectiva para vítimas de agressão doméstica é um desafio.

A pedagoga Fabbi Silva, 38 anos, conseguiu driblar esses desafios, e o caminho para isso foi a criação de uma rede entre as moradoras da comunidade Parque das Missões, em Duque de Caxias (RJ).

Idealizadora do projeto “Roda de mulheres — Apadrinhe um Sorriso”, ela mesma já havia sido vítima da violência doméstica. E foi graças a outras mulheres que, quando as violações aconteciam em sua vida, deu um jeito de sobreviver, estudar, trabalhar e criar o grupo que hoje conta com 64 cadastradas.

Além das rodas, ela criou um chat no Whatsapp para ampliar o campo de ação contra a violência.

— Quando a mulher chama, a gente vai pra lá. E eu sou a maluca, chego e digo “vamos conversar, o que tá acontecendo, por que tá batendo nela? Olha as crianças, você passou por isso, quer repetir aqui?”. Eles me xingam. Mas às vezes funciona — conta.

Sua história é retratada no documentário “Histórias para contar”, de Julia Lemos Lima, que será exibido neste fim de semana no Festival do Rio.

Você foi vítima de violência doméstica. Como tudo aconteceu? 

Minha história é a história de muitas mulheres. Me envolvi muito nova com meu ex-marido, tinha 14 quando comecei a namorar. Aos 17, e ele com 24, fomos morar juntos. Existia uma questão de não poder fazer sexo, eu era evangélica. Minha mãe era do tambor, e quando falei que ia casar, ela perguntou: “Você tá doida?”. Mas é a imaturidade. Quando me casei, ainda estava estudando, terminei o ensino fundamental aos 19. Comecei a trabalhar numa loja e cursava o ensino médio à noite. Foi aí que surgiu o primeiro indício da violência, ainda verbal, para tentar me impedir de estudar, me colocar para baixo. Ele dizia que não tinha necessidade de eu estudar. Foi também meu primeiro enfrentamento contra a igreja e o pastor, que dizia que eu tinha que obedecer meu marido. Era um inferno: ele dizia que eu estava procurando homem, queimou meu caderno, escondia meu anticoncepcional para eu engravidar.

No primeiro encontro, uma delas perguntou: ‘Mas quem é você na fila do pão? Só porque estudou? Você já foi estuprada hoje?’.

Fabbi Silva, pedagoga.

E quando começou a agressão física? 

Fiz um processo seletivo para trabalhar numa creche e, quando foram à minha casa dizer que eu tinha sido aprovada, ele disse que eu não precisava (da vaga) e dispensou. Quando fiquei sabendo, tivemos uma das nossas principais brigas. A agressão deixou de ser verbal e passou à física. Ele me pegou e me jogou pro outro canto da sala, aí eu gritei, disse que ele tinha me batido. Ele negava, pois na visão dele bater era deixar de olho roxo. Fui trabalhar, e uma amiga me alertou: “Meu relacionamento era assim, só agressão verbal até que ele bateu minha cabeça na porta do carro”. Depois que ele exagerava, vinha com ursinho de pelúcia, com um cuidado que eu via que era uma coisa para comprar meu silêncio.

O que aconteceu quando você se formou na escola? 

O ensino médio me possibilitou ter um outro olhar tanto para a questão da violência quanto para entender que não acabava ali o meu estudo. Descobri a filosofia, que me abriu os olhos para coisas que a igreja não trazia para mim, então saí da igreja. Ele achava que eu estava “endemoniada”, que tinha que sair do trabalho, que minhas amigas estavam fazendo minha cabeça. Eu não queria mais. Um dia pedi para a gente dar um tempo. O homem surtou, pegou a TV e jogou longe, gritava, quebrava as coisas. Aí pegou no meu pescoço e me jogou contra o sofá. Bati a cabeça, mas comecei a gritar, chamando a vizinha, pedindo socorro. Quando minha mãe chegou, ele estava tentando me sufocar. Dizia que, se eu não fosse dele, não ia ser de ninguém, que ia me matar.

No México, as mulheres colocavam tecidos vermelhos na janela quando o companheiro chegava bêbado e agressivo, então as moradoras da comunidade iam para a casa dela, para tomar um café, ver TV, e o cara não batia

Fabbi Silva, pedagoga.

Como você sobreviveu a essa agressão? 

Minha mãe tirou ele de cima de mim e me levou embora. Até voltei, mas não queria mais. Consegui um terreno, um fogão, e, no dia 1º de janeiro de 2006, falei que estava saindo de casa. Ele não acreditou. Quando ele saiu para trabalhar, tirei tudo que era meu e fui embora. Ele ia atrás de mim, dizia que eu estava jogando fora um homem correto porque eu não aceitava rédeas, como se eu fosse uma égua. Fiquei desempregada, fui trabalhar como camelô, mas tinha passado na faculdade e isso me deu um gás. Me mudei para meu barraco de madeira, que chovia mais dentro do que fora, e foi a melhor decisão da minha vida.

Quando você sentiu que precisava ajudar outras mulheres?  

Na graduação, resolvi trabalhar com as mulheres do Parque das Missões. Decidi fazer roda de conversa, mas me achava o suprassumo do conhecimento. No primeiro encontro, uma delas perguntou: “Mas quem é você na fila do pão? Só porque estudou? Você já foi estuprada hoje?”. Tentei fazer o encontro umas três vezes, mas não consegui. No primeiro foram muitas mulheres, no segundo diminuiu e no terceiro não foi ninguém. Quando contava que passei pela violência doméstica, mudava “caramba, e você conseguiu?”, mas vi que tudo que passei não era um terço do que elas passam. Primeiro porque eu não tenho filho. Passei dificuldade, mas não passei fome. Tinha uma mãe que me incentivou a estudar e me ajudou muito. São diferenciais. Tenho noção do meu privilégio.

Como você conseguiu emplacar as rodas, então? 

Tive que repensar. Vi que as crianças da comunidade tinham deficiências, falta de cuidado, muito também por conta da violência em casa. Então comecei a fazer um trabalho de leitura com elas, o “Apadrinhe um Sorriso”, e me reaproximei das mães. Anos depois, fui ao México num encontro de lideranças comunitárias. Lá vi o trabalho que mulheres estavam fazendo. Elas colocavam tecidos vermelhos na janela quando o companheiro chegava bêbado e agressivo, então as moradoras da comunidade iam para a casa dela, para tomar um café, ver televisão, e o cara não batia. Quando voltei, chamei uma reunião com as mães das crianças.

Daquela vez elas toparam?

Trouxe uma lembrancinha, um chaveiro vermelho de uma santa que protege as mulheres. Contei sobre o trabalho que vi, como tinha ficado impactada. Disse que a presença delas nos encontros impactaria no desenvolvimento dos filhos, mostrei um vídeo sobre violência intrafamiliar e o impacto na vida das crianças. E aí pedi para elas falarem. Quer falar sobre filhos? Violência no território? Marido ou filho preso? Dificuldade de entrar no ônibus porque tá gorda? Ou querem falar da violência sexual que sofrem pelos companheiros? Vamos falar de tudo, e a gente vai exercitar a confiança e o que falar aqui, não vai falar para ninguém.

Tem uma mulher que tem várias facadas pelo corpo, outra que o marido preso mandou rasparem a cabeça e todos os pelos do corpo porque descobriu que ela estava em outro relacionamento, o que é um estupro também.

Fabbi Silva, pedagoga.

Você usou a estratégia dos lenços vermelhos? 

A gente usa uma coisa que não é o lenço, é o Whatsapp mesmo (risos). Temos um grupo, e quando a mulher chama, a gente vai pra lá. E eu sou a maluca, chego e digo “vamos conversar, o que tá acontecendo, por que tá batendo nela? Olha as crianças, você passou por isso, quer repetir aqui?”. Eles me xingam. Mas às vezes funciona. Por exemplo: um dos maiores agressores hoje é parceiro do trabalho, participa das rodas e não bate mais. Eu chamo para conversar: “Vocês falam que a criança não quer aprender, mas já pararam para pensar que ver essa briga todo dia interfere no desenvolvimento dela? Já pararam para refletir sobre isso?” A mudança não é da noite pro dia, é fruto de muito trabalho, um trabalho delas. Eu motivo, mas elas que fazem.

Que tipo de resultado as rodas têm produzido?

É possível vencer a violência com afeto e escuta. É criar uma rede, deixar elas falarem. Muitas conseguiram sair de relacionamentos abusivos. Teve uma mãe achando normal o que o marido fazia com a filha porque ela já tinha passado por aquilo, até ela falar “opa, a gente não precisava passar por isso”. Tenho amor pelo “Apadrinhe um sorriso”, mas tenho paixão pela “Roda de mulheres — Apadrinhe um sorriso”.

É um cotidiano de muita violência. Enquanto pedagoga, como lida com isso?  

Tem uma mulher que tem várias facadas pelo corpo, outra que o marido preso mandou rasparem a cabeça e todos os pelos do corpo porque descobriu que ela estava em outro relacionamento, o que é um estupro também. Mas a história que mais me chocou foi a de uma menina de 13 anos que foi morar com o cara de 28, engravidou e cinco dias depois de parir, ele quis sexo. Ela estava de resguardo, toda cheia de ponto. Ela acordou com o olho roxo, toda machucada, ponto destruído, porque ele a estuprou desacordada. São essas as verdades que não estão nos livros. Não tem autor que explique como é trabalhar isso.

Você encara esse trabalho como uma forma de feminismo? 

Esse é o feminismo possível, não é o feminismo branco, que não chega na favela. Falar que somos todas “vadias”, isso não dialoga com a realidade dessa mulher. É preciso pensar na violência que atravessa a favela, a impossibilidade da denúncia porque a polícia não vem até o agressor, o policial que diz que ela vai voltar para o companheiro mesmo “porque é safada”, equipe médica que diz “você apanha sempre, por que está chorando?”. É uma violência que perpassa o racismo estrutural, falta de empatia. O que mais ouço é sobre violência obstétrica, uma das coisas que mais me impacta, médico que bate na cara, sobe na barriga… Esses relatos surgem na roda e são trabalhados com poesia, empatia. As relações de confiança geram um impacto, temos uma rede que possibilita a continuação desse trabalho.

As meninas também participam? 

As mães levam porque entendem que é importante. Temos uma de 14, outra de 13 e uma de 11. Tem gente que diz: “Mas vai falar sobre esses assuntos na frente delas?”. Meu amor, elas ouvem coisas muito piores. A infância da menina preta e da favela tem data para acabar porque a violência atravessa esse corpo.

A roda mudou a vida delas?

Queria muito que, na época em que passei pela violência, tivesse o que tenho hoje. Talvez não tivesse chegado ao enforcamento que me deixou sequelas fortes. Não consigo ter um relacionamento. Se eu não tivesse tido força de gritar pela vizinha, se ela tivesse ouvido o marido que mandou não se meter e se a minha mãe não tivesse conseguido empurrar um homem duas vezes o tamanho dela… Mas eu tive essas mulheres. E lembra daquela menina lá atrás que perguntou se eu tinha sido estuprada? Fez o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e conseguiu sair daquela relação.

Por Constança Tastch

 

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