Mulheres são maiores vítimas de vazamento de fotos e perseguição na internet

25 de julho, 2019

Pesquisa da ONG SaferNet mostra que, em 2018, houve 16.717 denúncias de crimes virtuais contra a mulher, um aumento de 1.640% em relação a 2017

(Olhar Digital, 25/07/2019 – acesse no site de origem)

Em uma era em que todos se preocupam com a privacidade de dados em plataformas digitais, as mulheres estão expostas a riscos virtuais relacionados ao gênero. A verdade é que, ao aumentar os espaços de interação social, a conectividade não só reflete a violência contra elas que acontece no mundo offline, como também a potencializa. É assim que advogadas em direito virtual veem a internet para o público feminino.

As principais agressões desse tipo são os constrangimentos (importunações) moral e psicológico, a exposição não consentida de imagens e vídeos íntimos, o estupro virtual (conceito já reconhecido pelo judiciário), o stalking (perseguição obsessiva) e o sextortion (a ameaça ou a chantagem mediante materiais ou atos sexuais), o assédio sexual em redes sociais e os golpes.

Números de um relatório divulgado pelo Instituto Avon em 2018 comprovam que a agressão contra a mulher no ambiente virtual é sistêmica. A pesquisa “A Voz das Redes: O que elas podem fazer pelo enfrentamento das violências contra as mulheres” revela que o assédio virtual cresceu 26.000% entre 2015 e 2017. A divulgação de conteúdo íntimo é a ocorrência mais frequente.

A dimensão desse campo minado aumentou ainda mais em 2018, como mostra o relatório anual da ONG SaferNet, que promove a defesa dos direitos humanos nas redes. De acordo com o documento, em 2018, houve 16.717 denúncias de crimes na internet contra a mulher, um aumento descomunal em relação a 2017 — 1.640%! —, quando foram registradas 961 queixas do tipo.

Para Isabela Guimarães, especialista em direito virtual e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas, o ambiente digital incrementa a violência contra a mulher porque a tela causa dois efeitos: a sensação de anonimato do autor, que sente que não será descoberto, e o distanciamento físico da vítima. “A partir do momento que ele não a vê, é como se ela [a vítima] não existisse. Então, ele não sente remorso nem repressão moral por aquela conduta”, afirma.

Cristina Sleiman, também advogada em direito virtual, concorda com Isabela. Ela acrescenta que, muitas vezes, o agressor deixa de cometer o assédio presencialmente para fazê-lo no ambiente virtual, “porque acha que ficará impune”.

O impacto do assédio virtual na vida real

O assédio virtual não só afeta a vida da vítima como, para a advogada, pode ser pior do que a agressão presencial. “O assédio virtual pode ser qualquer pessoa, aparecer com um nome e ter outro e até perseguir a vítima. Veja a insegurança da mulher: alguém a incomoda e ela nem sequer sabe quem é esse agressor”, diz Cristina.

Por isso, a especialista prefere usar os termos virtual e presencial (em vez de real), para diferenciar os ambientes digital e físico. “Por acharem que é um mundo à parte, as pessoas fazem mais coisas erradas na internet — mas as consequências são bem reais”, afirma.

Bruna Ribeiro, que foi assediada e ameaçada por um motorista da Uber em São Paulo, sentiu o impacto real dos riscos presentes nas plataformas digitais. Depois de ter sido agredida psicologicamente pelo condutor, ela passou a ter medo de sair de casa sozinha e de pegar carona com desconhecidos: sentia que estava sendo perseguida e parou com as corridas por aplicativo.

Natural do interior de São Paulo, a jovem de 24 anos diz que ama a capital, mas ainda não consegue se imaginar vivendo na cidade. “Tudo lá me lembra aquele dia”, diz, ao recordar da corrida que aconteceu em 2018. Em vez de demorar 28 minutos até seu destino (como o aplicativo estimava), o trajeto durou 4 horas e incluiu ameaças com uma faca e direção em alta velocidade, além de uma parada que não foi permitida pela passageira.

Em consulta com um psicólogo, Bruna foi diagnosticada com transtorno pós-traumático e síndrome do pânico. “Hoje estou bem melhor e já consigo andar com desconhecidos aqui em São José do Rio Preto. Melhorei das duas crises e conto essa história ‘numa boa’.”

Como o dano mais recorrente do assédio virtual é psicológico, há uma sensação de que a violência online é menos grave e, muitas vezes, ela não é considerada agressão. “No Brasil, a sociedade ainda vê apenas a violência física. Quando não há um hematoma, uma perna quebrada, um rosto desfigurado, é como se a violência não fosse real”, observa Isabela. Para ela, nesses casos, a vítima pode também ser culpabilizada e considerada “fraca, alguém que não aguenta brincadeiras”.

A perseguição obssessiva tem consequências danosas

A aproximação de desconhecidos promovida pela internet abre brechas para a perseguição obsessiva. No caso dos meios virtuais, o autor da agressão psicológica manda mensagens e liga constantemente, constrange a mulher, faz insinuações de cunho sexual e até a ameaça.

A gestora comercial Vanina Machado, de 40 anos, passou por uma situação de stalking. Em 2013, ela usou o LinkedIn para buscar contatos profissionais e oportunidades. Como é comum na plataforma, ela recebeu pedidos para adicionar alguns desconhecidos à sua rede. Entre eles, um homem de Miami, na Flórida (EUA) — como ele dizia trabalhar em uma área parecida com a dela, Vanina aceitou.

Ele, então, mandou uma mensagem para agradecer o aceite e, depois disso, a dupla conversou algumas vezes sobre assuntos profissionais. “Quando percebi que ele estava sendo muito solícito, parei de responder às mensagens”, recorda ela, que já estava insegura com a insistência do americano.

Só que ele não parou: encontrou o telefone pessoal dela e começou a ligar com frequência para dizer que “gostava dela” e viria ao Brasil para conhecê-la pessoalmente. Além disso, enviava mensagens SMS com os mesmos pedidos. A partir daí, Vanina ficou assustada. “Me senti péssima e repassei todos os momentos em que interagi com ele para saber se tinha dado a entender que estava interessada em algo além de um contato profissional”, afirma.

Assim como abalou a vida de Bruna, o assédio virtual fez Vanina sentir-se mais insegura nas plataformas online — apesar de seu caso ser considerado pouco grave por não ser uma agressão presencial ou física. Ela mudou o jeito como navega na internet, mas ainda usa o LinkedIn. “Eu continuo a aceitar novos contatos em meu perfil profissional, mas não respondo mais a nenhuma mensagem que não seja bem objetiva sobre o assunto a ser tratado.”

A legislação brasileira ainda não tipifica o stalking como crime. Apesar de não estar previsto no Código Penal, entretanto, Cristina observa que ele não deixa de ser uma importunação e pode, sim, causar danos. Por isso, a depender do caso, o autor deve ser responsabilizado de alguma forma. “As pessoas pensam muito que ‘se não é crime, eu posso fazer’, mas se traz danos, o autor pode ser alvo de processo civil e, possivelmente, terá de pagar indenização”, explica.

Se a vítima não souber a identidade do autor da importunação, a especialista explica que ela pode pedir judicialmente que a rede social ou o aplicativo identifique o agressor. A empresa, então, terá de cumprir a ordem judicial que exige que ela forneça esses dados.

Em situações nas quais são usados dados sigilosos de um serviço digital para perseguir a vítima, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPDP)pode ser acionada. A norma determina como órgãos públicos e privados devem tratar e proteger as informações do cidadão.

Isso pode acontecer, por exemplo, com assédios a partir de viagens por aplicativo, em que o motorista guarda o nome e o telefone da passageira para persegui-la depois por outros meios. “Isso não deixa de ser um assédio, uma importunação”, opina Cristina. O autor de uma perseguição obsessiva seguida de roubo de dados e ameaças, por exemplo, pode ser acusado por esses crimes — e não com base no stalking em si.

No caso de Vanina, a perseguição acabou depois que ela bloqueou e denunciou o perfil do stalker ao LinkedIn. Além disso, ela trocou o número do celular. Ela não fez uma reclamação formal à empresa e, por isso, não sabe o que foi feito quanto à atitude do rapaz, nem se ele foi bloqueado ou não da plataforma.

Como o stalking não é crime na lei brasileira, “não existe nenhum aspecto legal, que obrigue a rede social a bloquear o usuário, a não ser que ele realmente cometa algo ilícito”, diz Cristina. “Entrar em contato com uma mulher, no sentido de só ficar mandando mensagens, não é ilícito”, acrescenta.

Isabela sugere o mesmo caminho para solucionar, criminalmente, o stalking. Ela explica que essas situações mais comuns, em que um homem incomoda uma mulher com perguntas inadequadas e insistentes, podem se encaixar como importunação sexual. A advogada lembra que a tipificação do delito foi incluída no Código Penal no ano passado para suprir a lacuna entre o crime de estupro e a contravenção penal de importunação ao pudor.

O vazamento de fotos íntimas é o assédio virtual mais recorrente

A Central de Ajuda SaferNet — canal voltado para auxiliar vítimas de crimes virtuais — registrou, em 2018, 669 denúncias relacionadas ao vazamento de nudes ou sextortion (crime em que o agressor usa material íntimo da vítima ou faz propostas sexuais para chantageá-la). O sextortion é classificado como estupro virtual, com base no artigo 213 do Código Penal, com pena de prisão de seis a dez anos.

Segundo dados da ONG, o número de relatos de divulgação não consentida de imagens íntimas aumentou 2.300% em dez anos: em 2008, apenas 29 casos foram atendidos pela central. Do mesmo modo que os outros tipos de assédio, as mulheres são as principais vítimas e aparecem em 66% das denúncias (ou 440 ocorrências).

Com a aprovação do Marco Civil da Internet e da lei de importunação sexual, que altera o Código Penal, a divulgação de “fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza à sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia” tornou-se crime.

Antes desses apoios judiciais, autoridades recorriam à Lei Maria da Penha para responsabilizar o autor desse tipo de divulgação. “Essa lei tem um artigo que menciona a agressão psicológica. Discutia-se muito que a agressão pela internet é psicológica, então a gente enquadrava a divulgação de fotos íntimas na Lei Maria da Penha”, comenta Cristina.

Sites de relacionamento são espaço para violência psicológica

O assédio virtual contra a mulher também é recorrente em sites que conectam usuários com interesses amorosos. O número de casos desse tipo em aplicativos ou sites de relacionamento aumentou mais de 250% em cinco anos só no estado de São Paulo.

Dados da secretaria de segurança pública paulista revelam que a maioria dos crimes ocorridos a partir dessas plataformas está ligada à violência psicológica — com importunação e ameaças. Há, ainda, casos de estupro, furto e lesão corporal. Os dados são de boletins de ocorrência registrados na capital de 2014 a 2018 e divulgados pela agência Gênero e Número, que promove a igualdade de gênero.

Mais popular aplicativo de encontros amorosos, o Tinder é o que mais aparece nos boletins de ocorrência: são 153 casos envolvendo o app, de um total de 338 registros no período. Plataformas como Badoo, POF, Happn e Grindr também são citadas nas denúncias.

Esta é a segunda de uma série de reportagens do Olhar Digital para mostrar que a violência contra a mulher é sistêmica no ambiente virtual. Crimes como assédio, perseguição (stalking), ameaças, chantagem e vazamento de fotos íntimas fazem parte do lado sombrio das redes para elas. 

Por Beatriz Trevisan | Editado por Roseli Andrion.

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