Instituto Patrícia Galvão, SOS Corpo e Data Popular apresentam os resultados de pesquisa inédita feita com mulheres brasileiras para compreender o estado da tensão entre o trabalho remunerado e o trabalho doméstico.
Leia mais sobre os objetivos do estudo e a amostra avaliada"Diante de um histórico de lutas promovidas por diversos movimentos feministas brasileiros, são inegáveis as conquistas das mulheres nas últimas décadas. Mas a tão almejada igualdade de gêneros ainda está longe de ser atingida”, Renato Meirelles, diretor do Data Popular.
Leia mais"A realização desta pesquisa tem como finalidade contribuir para subsidiar os movimentos de mulheres em suas lutas pela superação de desigualdades no mundo do trabalho, como também oferecer subsídios ao poder público na elaboração de políticas que respondam a essas demandas”, Maria Betânia Ávila e Verônica Ferreira, SOS Corpo.
Leia maisExaminar a rotina das mulheres brasileiras para compreender as tensões que existem em relação:
à forma como lidam com a jornada de trabalho remunerado e o trabalho doméstico;
às representações sobre os papéis da mulher e do homem.
Qualitativa - Grupos Focais | 26 e 27/03 – São Paulo | 11 e 12/04 – Recife | ||
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Perfil | Faixa etária | Cidade | Grupos |
Trabalhadoras domésticas mensalistas/diaristas com e sem registro em carteira profissional | 25 – 45 anos | São Paulo/ Recife | 2 |
Mulheres Classe C que sejam responsáveis pelo trabalho doméstico e que tenham trabalho remunerado | 25 – 45 anos | São Paulo/ Recife | 2 |
Mulheres Classe D que sejam responsáveis pelo trabalho doméstico e que tenham trabalho remunerado e mulheres Classe C sem filhos | 25 – 45 anos | São Paulo/ Recife | 2 |
Homens Classes CD casados que trabalham (inclui homens com e sem filhos) | 25 – 45 anos | São Paulo/ Recife | 2 |
Quantitativa – Entrevista em ponto de fluxo | Realização do campo: 29/06/2012 a 07/07/2012 | ||
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Perfil | Faixa etária | Praças | Amostra |
Mulheres que têm trabalho remunerado | 18 – 64 anos | 9 capitais e região metropolitana + Brasília* | 800 entrevistadas |
*Pará, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Distrito Federal |
Classes | Valor per capita / mês |
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Classe A | Acima de R$ 2.480,00 |
Classe B | De R$ 1.019,01 até R$ 2.480,00 |
Classe C | De R$ 291,01 a R$ 1.019,00 |
Classe D | De R$ 81,01 até R$ 291,00 |
Diante de um histórico de lutas promovidas por diversos movimentos feministas brasileiros, são inegáveis as conquistas das mulheres nas últimas décadas. Entre elas, o ingresso de um grande contingente feminino no mercado de trabalho e a leve tendência de redução da diferença de salários. Mas a tão almejada situação de igualdade de gêneros ainda está longe de ser atingida. Há um caminho extenso a ser percorrido.
Nesta pesquisa, constatamos em números o que já sabíamos na prática, nas conversas do dia a dia com centenas de mulheres do nosso convívio. Sim, as mulheres ainda acumulam mais funções cotidianas que os homens. Além de trabalhar fora, têm que tomar para si, muitas vezes integralmente, a responsabilidade dos cuidados com a casa e com os filhos. Embora a nova geração de mulheres seja mais escolarizada e tenhamos identificado a ampliação do número de internautas, o que ajuda a trazer mais informação para aquelas de classes mais baixas, a maior parte delas continua atarefada e cada vez mais sobrecarregada. E esse acúmulo de atividades está atrelado ao fardo da cultura machista que elas têm que lidar em sua realidade.
Tive a oportunidade de conversar com várias destas mulheres. Não foi difícil identificar mulheres que ainda preservam a alegria de viver, mesmo tendo de acordar muito cedo, preparar as refeições para a família e enfrentar transportes públicos abarrotados para chegar ao trabalho. E dentro deste caos diário têm que se desdobrar para arrumar quem tome conta dos filhos, sendo que as creches quase sempre são escassas ou fecham antes que consigam retornar para casa. Na volta, à noite, mais uma vez passam pelos inconvenientes das conduções lotadas, que trafegam lentamente pelas vias de grandes cidades, tornando a jornada ainda mais exaustiva. E depois de passar por tudo isso, mal chegam em casa e precisam retomar as atividades domésticas, como limpar a casa, lavar roupa e preparar o jantar. Quase sempre sem ajuda de maridos e filhos.
Essa é uma realidade frequente na vida das mulheres que precisa ser mudada. Entretanto, não podemos nos esquecer de seus ganhos neste longo período de lutas. Nos últimos anos, a renda delas tem crescido mais do que a dos homens. Isso faz toda a diferença. Uma renda maior possibilitou voz ativa e autonomia para tomar decisões que antes ficavam apenas a cargo dos maridos. Em outros casos, o aumento do número de mulheres na condição de chefes de família tornou-as socialmente mais influentes, embora a grande maioria em condições socioeconômicas desfavoráveis. Porém, com a ida ao mercado de trabalho e com renda própria, ela às vezes encontra a possibilidade, inclusive, de se desprender de um c asamento no qual não se realiza.
Ao confrontarmos o espaço conquistado pelas mulheres e as necessidades ainda existentes para atingirmos uma sociedade justa, concluímos que no Brasil de Verdade, palco da classe média que já desponta, devemos intensificar o debate por políticas públicas e por mudanças culturais que promovam a igualdade de gênero.
Renato Meirelles Sócio-diretor do Data PopularA vida cotidiana muitas vezes descrita como restrita à vida privada, e/ou como relativa apenas ao corriqueiro e ao que se repete está em oposição a uma noção de vida cotidiana como uma dimensão da vida social construída historicamente e marcada pelas estruturas e relações sociais.
A pesquisa que toma como ponto de partida o cotidiano pode revelar a inextricabilidade entre as várias esferas sociais, em geral tratadas como autônomas, ou fragmentadas, como é o caso da relação entre trabalho remunerado e trabalho doméstico gratuito, entre o lazer, o trabalho, o descanso e o desenvolvimento pessoal.
A pesquisa sobre vida cotidiana, de acordo com Lefebvre, foi um método para se estabelecer analiticamente um recorte da realidade social, que se constrói como possibilidade sociológica a partir do século XIX, quando o “centro da reflexão se desloca; abandona a especulação para acercar-se da realidade empírica e prática, dos dados e da consciência” (LEFEBVRE, 1972, p. 21).
No sistema social capitalista e patriarcal, o trabalho produtivo é uma dimensão central na organização da vida cotidiana. Este trabalho é a base a partir da qual as/os trabalhadoras/es, a grande maioria da população, têm acesso aos recursos e aos meios para viver. Na hierarquia que rege a organização do tempo social o tempo do trabalho produtivo e remunerado tem precedência sobre os outros tempos. São as mulheres, nessa forma de organização social, marcada pela divisão sexual do trabalho, que enfrentam, em geral, as tensões e os conflitos gerados pela dinâmica e as exigências do trabalho produtivo e do trabalho reprodutivo.
A divisão sexual do trabalho tem como princípios organizadores a hierarquização e separação entre trabalho produtivo/ homens e trabalho reprodutivo/mulheres, princípios esses que segundo Kergoat “se encontram em todas as sociedades conhecidas e são legitimados pela ideologia naturalista”. A autora acrescenta que isso isso não quer dizer “...que a divisão sexual do trabalho se ja um dado imutável. Ao contrário, essas modalidades concretas variam fortemente no tempo e no espaço, como o demonstraram abundantemente etnólogos/as e historiadores/as” (KERGOAT, 2001, p. 89).
As desigualdades entre homens e mulheres a partir de uma análise que considera o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo revelaram
... a necessidade de contemplar um cenário mais amplo do que o mercado de trabalho e a família: a vida cotidiana. Um território analítico no qual tem sido possível delimitar as presenças e as ausências masculinas e femininas, de maneira estrita, e reconhecer a divisão sexual e hierárquica que as preside (TORNS, 2002, p. 135).
A pesquisa realizada pelo Datapopular, SOS Corpo e Instituto Patrícia Galvão, buscou justamente conhecer como as mulheres brasileiras enfrentam as demandas do trabalho produtivo e reprodutivo - tensões, dificuldades, arranjos e demandas – tomando como base as percepções e descrições das mulheres de suas dinâmicas de trabalho no cotidiano. Baseada em uma metodologia qualitativa e quantitativa, entre os meses de março e julho de 2012, foram realizados 08 grupos de discussão com mulheres e homens, em São Paulo e Recife; em seguida, foram entrevistadas 800 trabalhadoras (18 aos 64 anos) de regiões metropolitanas de 08 estado s (PE, CE, BA, SP, RJ, MG, RS, PA e DF).
As alterações ocorridas no mundo do trabalho, como demonstra a pesquisa, não levaram a mudanças significativas na divisão sexual do trabalho. O que se observa é que essa divisão do trabalho permanece, produzindo consequências que afetam diretamente as mulheres, que continuam como as principais responsáveis pelos afazeres domésticos e cuidados com filhos. Falta de tempo e grande sobrecarga marcam seu cotidiano. Os homens e o Estado, segundo os resultados da pesquisa aqui apresentada, pouco contribuem para a mediação das jornadas. Segundo a pesquisa, na percepção das mulheres brasileiras, as demandas principais para a atua ção do poder público para o enfrentamento das tensões geradas pela dupla jornada de trabalho no cotidiano são creches, transporte público de qualidade e escolas em tempo integral.
A realização desta pesquisa tem como finalidade contribuir para subsidiar os movimentos de mulheres em suas lutas pela superação das desigualdades no mundo do trabalho, como também para oferecer subsídios ao poder público na elaboração de políticas que respondam a essas demandas. E, ainda, é uma contribuição ao debate e ao desenvolvimento das pesquisas e estudos no campo do trabalho e, em particular, da relação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo.
Esta pesquisa foi realizada no âmbito de um projeto coletivo, formado por sete organizações feministas – SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, Centro Feminista de Estudos e Assessoria – Cfemea, Coletivo Leila Diniz, Rede de Desenvolvimento Humano – Redeh, Cunhã Coletivo Feminista, Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Patrícia Galvão – , com apoio do Fundo para a Igualdade de Gênero da ONU Mulheres.
Maria Betania Ávila e Verônica Ferreira SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia