Alta de microcefalia reacende debate sobre aborto legal

10 de janeiro, 2016

(Folha de S.Paulo, 10/01/2016) Com 12 semanas de gestação, Joana (nome fictício) foi infectada pelo vírus zika. Sua cidade, no interior da Bahia, registrou um surto da doença em março de 2015. Na 30ª semana, um ultrassom morfológico mostrou que o feto tinha graves lesões cerebrais, como dilatação dos ventrículos (cavidades), calcificação e microcefalia.

Diante do prognóstico de uma vida de muita limitação, ela o marido decidiram interromper a gravidez. O obstetra particular que a atendia desde o início da gestação indicou um outro colega para fazer o procedimento.

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No consultório, foi aplicada uma injeção de cloreto de potássio no coração do feto. Com o diagnóstico de “óbito fetal”, Joana foi levada a um hospital privado. Lá recebeu medicação para induzir o parto normal. Dois dias depois, ela recebeu alta.

A história foi relatada à Folha pelo obstetra de Joana. “As lesões cerebrais eram gravíssimas, a criança teria sérios problemas físicos e mentais. Eles [Joana e o marido] não se arrependeram da decisão”, diz o médico, que não quer ser identificado.

Também na condição de anonimato, outros dois obstetras que atuam na rede privada de Pernambuco e Paraíba relatam situações parecidas. Os casos configuram crime contra a vida. A gestante pode sofrer pena de detenção de até três anos. Já os médicos podem ser condenados a reclusão de até quatro anos, além de perda do registro profissional.

Para especialistas, casos de feticídio (morte provocada do feto) por microcefalia podem estar ocorrendo de forma isolada e clandestina. “Pessoas que têm recursos e acesso à assistência podem fazer o aborto, como já fazem em outras situações, até para síndrome de Down. Mas ninguém fica sabendo. Para quem tem dinheiro no Brasil, as leis são diferentes”, afirma o ginecologista Olímpio de Moraes, professor na Universidade de Pernambuco.

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CASOS

Segundo o último boletim do Ministério da Saúde, há 3.174 casos suspeitos da microcefalia em recém-nascidos de 684 municípios de 21 Estados. Existem 38 óbitos de bebês sendo investigados. O Ministério da Saúde diz que esses óbitos se referem a bebês que nasceram vivos e morreram depois. Informa ainda que desconhece casos de abortos legais ou ilegais em razão de microcefalia.

Para sete especialistas ouvidos pela Folha, o aumento de casos de microcefalia deverá reacender o debate sobre a ampliação do aborto legal no país para outras situações de más-formações graves.

O Código Penal permite o aborto em casos de estupro e de risco à vida da mãe. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal autorizou a interrupção da gravidez de anencéfalos (fetos sem cérebro) sob o argumento de que os bebês não sobrevivem fora do útero.

Segundo o obstetra Cristião Rosas, delegado do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), há várias síndromes genéticas incompatíveis com a vida, como Edwards e Patau, que merecem o mesmo tratamento jurídico dado aos casos de anencefalia. “Muitos juízes já autorizam o aborto nesses casos, mas são decisões individuais, dependem de cada um.”

Uma dessas decisões foi a do juiz Jesseir de Alcântara, de Goiânia, que autorizou o aborto de um feto de 25 semanas com a síndrome de Edwards, doença que causa uma série de más-formações. O juiz considerou a morte “certa” e que não haveria procedimento médico capaz de corrigir as deficiências desenvolvidas pelo feto.

Para o advogado Paulo Leão, procurador no Rio de Janeiro e membro do Movimento Brasil sem Aborto, interromper a gravidez no caso de microcefalia ou em qualquer outra má-formação é “inaceitável sob todos os pontos de vista”. “É eugenia.”

Cláudia Collucci

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