Mulher negra é invisível na publicidade, aponta vice-diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão

23 de setembro, 2013

(Luciana Araújo/ Agência Patrícia Galvão, 23/09/2013) Para 65% o padrão de beleza nas propagandas está muito distante da realidade das brasileiras e 60% consideram que as mulheres ficam frustradas quando não se veem neste padrão. Na percepção da sociedade, as mulheres nas propagandas são majoritariamente jovens, brancas, magras e loiras, têm cabelos lisos e são de classe alta.

retrato mara

Mara Vida, Vice-Diretora Executiva do Instituto Patrícia Galvão.

De acordo com a pesquisa Representações das mulheres nas propagandas na TV, Realizada pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão, a maior parte dos entrevistados deseja que a diversidade da população feminina brasileira esteja mais representada: 51% gostariam de ver mais mulheres negras e 64% gostariam de mais mulheres de classe popular nas propagandas. A pequisa realizou 1.501 entrevistas com homens e mulheres maiores de 18 anos, em 100 municípios de todas as regiões do país, entre os dias 10 e 18 de maio deste ano.

Para a vice-diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, Mara Vidal, o mercado publicitário ainda não retrata a mulher negra. “Nós, mulheres negras, somos invisíveis para a mídia, que não enxerga que tomamos banho, usamos xampu, comemos margarina, fazemos serviços domésticos, e, em particular, somos pessoas com poder aquisitivo”, exemplifica. Confira abaixo a entrevista na íntegra:

A pesquisa mostrou que a maioria dos entrevistados, homens e mulheres, querem ver mais mulheres negras nas propagandas na TV e que 80% percebem que são mostradas mais mulheres brancas. Como você avalia esse dado e que reflexos você avalia que ele tem na população?
Em primeiro lugar é importante dizer que as pessoas querem se ver e a população negra não se vê na mídia, ou quando se vê é em situações que o colocam como uma pessoa sem poder. Um exemplo disso são as propagandas da Caixa Econômica, que no imaginário da população está muito ligada à pobreza, ao pagamento de benefícios assistenciais. Ou quando o Milton Gonçalves aparece como o senhor idoso negro que vai buscar remédios na farmácia popular ou tomar a vacina contra a gripe oferecida pelo SUS. Essas representações não nos qualificam e nem nos empoderam, pois esses espaços são tidos no imaginário como o lugar dos desempoderados, desprovidos aquisitivamente, didficilmente se pensa que é o lugar que todos devem a ter acesso e que há um serviço/atendimento de qualidade. Quando o espaço, o lugar está desqualificado automaticamente ele dá a mesma denotação a pessoa/personagem que ocupa aquele determinado lugar.

E na hora em que mostram uma família feliz, a família da propaganda de margarina, ou mesmo quando vai mostrar a mulher bem-sucedida que faz o “xô neura” mandando a neurose da limpeza para longe e ficar deitada no sofá, com tempo livre, a mulher negra não aparece como alguém possivel de viver e fazer isto. E mesmo que essas propagandas também sejam questionáveis por nos colocarem enquanto mulheres como responsáveis pelas tarefas domésticas, nem assim o negro ou a negra aparece em um condição de primeiro plano. Quantas vezes apareceu uma mulher negra “de boa”, no sofá, mandando a neura embora? Nenhuma.

A família negra – e já existem vários estudos sobre isso – raramente é apresentada como a família “feliz”.
Mesmo nas propagandas de xampus para cabelos enrolados, não aparecem cabelos crespos. No máximo cabelos com babyliss. Não tem xampu para o nosso cabelo pixaim. As propagandas de cremes para a nossa pele, que é um misto de oleosa com seca, uma empresa de produtos de higiene e beleza apresentou algumas coisas interesssnte há um tempo atrás, mas a propaganda atual mostra duas mulheres brancas e uma negra de cabelo cacheados.

Esses exemplos mostram como somos invisíveis para a mídia, que não enxerga que tomamos banho, usamos xampu, comemos margarina, fazemos serviços domésticos, e, em particular, somos pessoas com poder aquisitivo. Mesmo a empregada doméstica quando vai no supermercado está usando seu poder aquisitivo.

Não é à toa que essa população diz: ‘olha, eu não estou aí’. E se é verdade que ela não pode parar de comprar, porque precisa viver, existe uma insatisfação porque vemos um racismo manifesto com relação à nossa capacidade, às nossas qualidades e ao nosso poder de compra.

E que desconsidera o fato de que há mais negros e negras com maior poder de compra e também maior consciência de sua condição negra.
Sim, e é isso que tem levado a ações de boicote a algumas marcas e produtos.

Você avalia que existe mesmo uma postura da consumidora negra de rejeitar marcas e produtos com os quais não se identifica?

Existe e funciona. Pode não funcionar em grande escala, mas felizmente hoje a internet e as redes sociais nos possibilitam fazer esse diálogo crítico. Por exemplo, a última propaganda de uma marca de cosméticos e perfumaria, que não tinha nenhuma mulher negra e mostrava um perfil de consumidora da marca americanizado, saiu da televisão depois de uma enxurrada de críticas pelas redes sociais e de uma campanha na web por boicote à marca.

E é lógico que também tem a solidariedade de pessoas não negras em relação à atitude dessas marcas e o resultado da propaganda boca a boca, que leva a um aumento do peso de campanhas de boicotes. Porque o negro faz a crítica ou a propaganda boca a boca no trem, no ônibus, no bairro, principalmente a mulher, que tem maior poder de incidência e, na população negra, maior poder de consumo.

É possível dizer que não é mais tão fácil empurrar um perfil publicitário apoiado na ideia de que a sociedade aceitará seja lá qual for esta representação?

Sim. A retirada da propaganda de linha de maquiagem da empresa acima citada do ar, é um exemplo.

Isso mostra que a manutenção dessa mentalidade gera reações. Até porque a população negra começa a desenvolver também alternativas de mercado. Foi divulgado recentemente um estudo do Sebrae que mostra que em dez anos o número de empreendedores negros no país cresceu de 43% para 49%. Ainda que essas alternativas hoje não disputem o mercado em pé de igualdade com as grandes companhias, mas é um mercado que está crescendo.

Por exemplo, hoje existe uma Feira Preta, com vários produtos. A Expo Mulher Negra e Cia, por exemplo, acontecia só na internet e agora acontece como um evento físico em São Paulo. Muitos produtos de beleza destinados a pele da população negra são novos, estão chegando e significa que as pessoas vão deixar de usar o produto X e passar ao Y. Não vai ser de uma hora para outra, mas a ação da população negra para ser empreendedora e para ter produtos que dialoguem mais proximamente com a identidade do ser negro está acontecendo.

No ano passado, toda uma linha de biquínis voltada para a simbologia dos orixás, que é a religião afro, foi apresentada na São Paulo Fashion Week. Não é um produto só para negras, até pelo preço, mas dialoga com a icones/referencia simbolicas da cultura negra.

E como fica a discussão sobre essa representação e a política de cotas?

A propaganda não tem que ser responder à política de cotas, ela tem que entender que 51% de nossa população é negra. Então, nossos publicitários têm que entender que não adianta só dar à agência o nome África se não compreende que essa metade da população consome, produz e conduz o desenvolvimento do país, seja no lugar do serviço doméstico ou num posto de alto comando.
Tenho certeza de que sou atuante nessa sociedade e contribuo efetivamente para o desenvolvimento dela. E essa sociedade me deve respostas. Então, as cotas são importantes, mas tê-las como horizonte é pequeno demais. Se a minha família é bem sucedida, se eu faço parte das mães chefes de família, é importante que essa diversidade seja mostrada e que se mostre que também somos agentes de consumo, de produção e de desenvolvimento.

Infelizmente, ficamos reféns da política de cotas porque no Brasil não existe nenhuma política afirmativa para colocar o negro enquanto sujeito histórico. Nesse sentido, a política de cotas é importante mas nos coloca numa situação limítrofe, porque no país as pessoas cumprem as leis, mas não enxergam a realidade de que existem negros e não-negros das classes A à E. Não podemos continuar só na novela de época, como a empregada ou como a representação que fica no tem de pele “mais clarinha”, como se desse conta de representar o todo das tonalidades da negritude.

E essa representação tem repercussões na vida real?

Eu sou uma pessoa concreta, conheço outras mulheres e homens concretos que ganham bem, consomem, vivem, têm momentos felizes e tristes, como todo mundo. Mas nós não somos retratados e não temos identificação com o que as propagandas na TV apresentam como pessoas negras. Eu quero ver a negra de pigmentação forte nas propagandas, vendendo de sabão a caderno, a bolsa, fazendo a família da Doriana margarina. Porque nós gostamos e compramos também produtos de qualidade.

E isso ajuda também a romper a barreira do preconceito quando vamos à loja, porque quando aparece uma propaganda e eu vou comprar aquele produto, muitas vezes quando chego na loja o vendedor não quer me atender. E isso é reflexo do fato de que não existe um consumidor parecido comigo nas propagandas. Não é à toa que as pessoas responderam o que responderam na pesquisa. É um indicador de que a realidade precisa mudar. E isso vai para além do consumo. Até porque toda mensagem que aparece na televisão está para além do consumo, constrói ideias e ideologias, é uma mensagem para as relações sociais, para a participação política, para a crítica social. E as ideologias e representações atuais nas propagandas não geram igualdade.

Muita gente que não tem TV a cabo e recebe uma enxurrada de propaganda. E as crianças são quem mais assimilam essas ideologias. Outro dia a filha de uma amiga falou para a mãe que queria comer um chocolate, mas que teria que ficar de cabelo liso para poder comer o chocolate. Então, o que passou na cabeça daquela criança? Que tinha um código do cabelo liso para lhe permitir o acesso a algo que ela queria.

Muitas vezes quando se pauta essa questão das repercussões sociais há uma tendência de apontar uma postura “militante”. Mas a pesquisa mostrou também que um percentual muito acima dos 51% negros da população veem que as propagandas na TV não mostram a mulher real e especialmente não mostram a mulher negra.

Porque as pessoas estão dialogando sobre isso. Quando uma negra ou um negro vai à universidade, onde ainda somos minoria, começa a dialogar com os não negros e a expor essas questões. Nossa reação militante também gera percepção. Além disso, a gente vive no mundo real. Quantos amigos loiros de olhos claros cada pessoa tem? Quantos a gente vê no trem ou no metrô todos os dias? Na TV essa representação é absoluta maioria. E as pessoas estão percebendo que há uma distancia entre esse estereótipo e o mundo real.

Às vezes a indignação aparece sob a forma que apareceu na pesquisa, que muito mais gente que os negros estão incomodados com o padrão atual de representação da mulher e especialmente da mulher negra.
E as agências precisam entender que para as negras e os negros poderem consumir com maior tranquilidade é necessário sair desse estereótipo e compreender que negras e negros não compram só nas lojas populares.

Mara Vidal – vice-diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão. Tel.: (11) 3262.2452 / 3266.5434 / email: [email protected]

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