(Débora Diniz, especial para O Estado de S. Paulo) Ainda estou para entender o que os magistrados brasileiros descrevem como “realidade”. Muito antes da pós-modernidade, essa palavra provocava tremores nos cientistas sociais. A realidade depende de quem a descreve e, mais ainda, de quem experimenta sua concretude na própria pele.
A tese de que o Direito precisa se “adequar às mudanças sociais” foi a sustentada pela ministra do Superior Tribunal de Justiça Maria Thereza de Assis Moura para inocentar um homem adulto que violentou sexualmente três meninas de 12 anos. Não haveria absolutos no direito penal, defendeu a ministra, pois os crimes dependem da “realidade” das vítimas e dos agressores. Foram as mudanças sociais que converteram as meninas em prostitutas ou, nas palavras da ministra Maria Thereza, “as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo”.
Descrever meninas de 12 anos como prostitutas é linguisticamente vulgar pela contradição que acompanha os dois substantivos. Não há meninas prostitutas. Nem meninas nem prostitutas são adjetivos que descrevem as mulheres. São estados e posições sociais que demarcam histórias, direitos, violações e proteções. Uma mulher adulta pode escolher se prostituir; uma menina, jamais. Sei que há comércio sexual com meninas ainda mais jovens do que as três do caso – por isso, minha recusa não é sociológica, mas ética e jurídica. O que ocorria na praça onde as meninas trocavam a escola pelo comércio do sexo não era prostituição, mas abuso sexual infantil. O estupro de vulneráveis descreve um crime de violação à dignidade individual posterior àquele que as retirou da casa e da escola para o comércio do sexo. O abuso sexual é o fim da linha de uma ordem social que ignora os direitos e as proteções devidas às meninas.
Meninas de 12 anos não são corpos desencarnados de suas histórias. As práticas sexuais a que se submeteram jamais poderiam ter sido descritas como escolhas autônomas – o bem jurídico tutelado não é a virgindade, mas a igualdade entre os sexos e a proteção da infância. Uma menina de 12 anos explorada sexualmente em uma praça, que cabula aulas para vender sua inocência e ingenuidade, aponta para uma realidade perversa que nos atravessa a existência. As razões que as conduziram a esse regime de abandono da vida, de invisibilidade existencial em uma praça, denunciam violações estruturais de seus direitos. A mesma mãe que contou sobre a troca da escola pela praça disse que as meninas o faziam em busca de dinheiro. Eram meninas pobres e homens com poder – não havia dois seres autônomos exercendo sua liberdade sexual, como falsamente pressupôs a ministra.
O encontro se deu entre meninas que vendiam sua juventude e inocência e homens que compravam um perverso prazer. Sem atenuantes, eram meninas exploradas sexualmente em troca de dinheiro.
Qualquer ordem política elege seus absolutos éticos. Um deles é que crianças não são seres plenamente autônomos para decidir sobre práticas que ameacem sua integridade. Por isso, o princípio ético absoluto de nosso dever de proteção às crianças. Meninas de 12 anos, com ou sem história prévia de violação sexual, são crianças. Jamais poderiam ser descritas como “garotas que já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”. Essa informação torna o cenário ainda mais perverso: a violação sexual não foi um instante, mas uma permanência desde muito cedo na infância. Proteger a integridade das meninas é um imperativo ético a que não queremos renunciar em nome do relativismo imposto pela desigualdade de gênero e de classe. O dado de realidade que deve importunar nossos magistrados em suas decisões não é sobre a autonomia de crianças para as práticas sexuais com adultos. Essa é uma injusta realidade e uma falsa pergunta. A realidade que importa – e nos angustia – é de que não somos capazes de proteger a ingenuidade e a inocência das meninas.
* Debora Diniz é professora da UNB e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Acesse em pdf: Adequação ad hoc, por Debora Diniz (O Estado de S. Paulo – 01/04/2012)
Leia também: (Agência Patrícia Galvão) A decisão de STJ (Superior Tribunal de Justiça) – que inocentou um homem acusado de estuprar duas meninas de 12 anos sob a alegação de que não poderia ser usado o argumento da presunção da violência pelo fato de elas se prostituírem – gerou reações imediatas de repúdio, tanto por parte de autoridades – ministros/as e parlamentares – como de especialistas e de organizações e articulações de movimentos sociais.
Veja a seguir uma lista de matérias e manifestações:
30/03/2012 – Para secretária de enfrentamento à violência, decisão do STJ pode banalizar violência sexual contra crianças e adolescentes
29/03/2012 – Senadores repudiam decisão do STJ de relativizar crime de estupro de vulnerável
Lídice da Mata critica decisão do STJ de relativizar estupro de vulneráveis
Ana Rita repudia decisão do STJ que relativiza estupro de menores
Nota de repúdio da Campanha Ponto Final na Violência Contra Mulheres e Meninas
Rede Mulher e Mídia repudia decisão do STJ de inocentar acusado de estupro de menor de 14 anos
29/03/2012 – Ministro da Justiça diz que é contra decisão do STJ sobre estupro
29/03/2012 – Presidente do STJ diz que tribunal pode rever decisão sobre estupro de menor
29/03/2012 – CPI sobre Violência Contra a Mulher aprova repúdio à decisão do STJ sobre estupro de menor
29/03/2012 – Para instituto de advogados, STJ fez interpretação correta da lei em caso de estupro
29/03/2012 – Ministra de Direitos Humanos critica decisão de inocentar acusado de estupro de menor de 14 anos
29/03/2012 – Nota pública da SPM sobre absolvição de acusado de estupro
29/03/2012 – Por aqui, a pedofilia encontra terreno fértil para crescer (Blog do Sakamoto)
28/03/2012 – STJ decide que nem sempre sexo com menor de 14 é estupro
Para Associação Nacional dos Procuradores da República, decisão do STJ sobre estupro de menores é uma afronta à Constituição (Agência Brasil – 28/03/2012)