“Discípulas de Herodes”, “assassinas de bebês”, “covardes com sede de sangue”, estão entre as imagens evocadas por deputados federais conservadores para falar de pessoas que lutam pelos direitos reprodutivos no Brasil. Os discursos na Câmara refletem uma agenda antiaborto, mesmo quando ele é permitido por lei.
A Revista AzMina analisou 376 discursos sobre aborto proferidos na tribuna da Câmara dos Deputados de 2019 a 2023. Em lugar de representar e fortalecer os direitos das mulheres e meninas, quase metade das falas sobre o tema (44,4%) são explicitamente contrárias à interrupção da gravidez. Em 38,6% dos discursos, o assunto aparece é citado num contexto conservador. Independentemente do gênero de quem está proferindo, a maioria das falas se baseiam em crenças pessoais e moralidade.
Reuniões das comissões e eventos na Câmara também são palco de defesa das agendas de cada parlamentar, mas a tribuna é um dos espaços mais cobiçados. Além da visibilidade pública dada pelos meios de comunicação da Casa – TV Câmara, Rádio Câmara, Agência Senado, Jornal Câmara -, os discursos rendem cortes de vídeos para divulgação nas redes sociais e aplicativos de mensagens, como Telegram e WhatsApp.
Seis parlamentares fizeram 30,4% (95) dos 312 discursos críticos ao aborto ou que citavam o procedimento em falas conservadoras no período analisado pela reportagem. A concentração das ocorrências neste pequeno grupo revela o quanto alguns deputados adotam a negação do direito ao aborto como causa.
A linguista Jana Viscardi considera que a tribuna é um espaço privilegiado na construção da persona do político, do que ele quer mostrar aos eleitores e possíveis eleitores. Ela alerta que os grupos antidireitos definem os pontos centrais do debate, ignorando a autonomia das mulheres e os direitos reprodutivos, como se tudo se resumisse a concordar ou discordar. “Eu preciso me render à discussão pela lógica dos fundamentalistas, dos extremistas de direita? É preciso sair da pauta do aborto como questão de ‘a favor’ ou contra”.
Mandatos Antiaborto
A deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) é a líder em discursos antiaborto. Foram 24 falas no período, sendo 20 direcionadas especificamente ao tema e 4 citações em pronunciamentos conservadores. Depois dela, os que mais atacam os direitos reprodutivos são Bia Kicis (PSL-DF), Eli Borges (Solidariedade-TO), Otoni de Paula (Bloco/PSC-RJ), Carlos Jordy (PSL-RJ) e Luiz Lima (PL-RJ).
Chris se apresenta no Instagram como pró-vida, expressão muito usada pelos que são contra a interrupção da gestação. Em seu discurso de posse em 2019, ela ressaltou o tema central do primeiro mandato: “Quero reafirmar aqui o meu compromisso moral em defesa da vida, desde a concepção, em defesa da família, dos valores cristãos, em combate ao aborto…”.
Entusiasta das expressões “discípulos de Herodes” e “patrulha ideológica dos Herodes da contemporaneidade”, a deputada coordena a Frente Parlamentar contra o Aborto e em Defesa da Vida. Segundo a narrativa bíblica, Herodes mandou matar todos os recém-nascidos de Belém, para impedir que Jesus, profetizado como rei da Judeia, pudesse sobreviver.
Criada em março de 2023 com 172 deputados e 10 senadores, uma das finalidades da Frente, comandada por Chris Tonnieto pela segunda legislatura consecutiva, é “acompanhar o processo legislativo, no Congresso Nacional, quanto às matérias referentes ao direito à vida e contra a legalização do aborto no Brasil”.
No período analisado, 2023 teve maior concentração de discursos sobre aborto (63% do total), motivada pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 no Supremo Tribunal Federal (STF). A então presidente da corte, ministra Rosa Weber, deu voto favorável à descriminalização da interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana, mas o julgamento foi suspenso e segue parado.
Em sua primeira abordagem do tema na tribuna, Tonietto afirmou que a ADPF foi proposta “para que a nossa bandeira seja manchada com sangue inocente”. Na opinião da deputada, o julgamento era a situação de maior gravidade já enfrentada no país. “Nós estamos diante de uma grande ameaça para a vida do nascituro, a vida do mais frágil dos seres, a vida desse bebezinho que ainda não tem voz”. Uma das estratégias dos grupos antiaborto é, por meio de apelo emotivo, nomear embriões ou feto como bebês.
Durante a polêmica discussão do PL 1904, também conhecido como PL do Estupro, a linguista Jana Viscardi discutiu o uso dos termos, com destaque para a diferença entre os binômios mãe/bebê e gestante/feto. “O fato de uma mulher estar gestante não implica que ela vá ser mãe. E o fato de um embrião ter sido gerado, não implica que ele se tornará feto, depois, um recém-nascido e, finalmente, um bebê”, concluiu.
Antifeministas no debate
As mulheres representam apenas 17,3% da Câmara dos Deputados nesta legislatura, mas proporcionalmente se pronunciam sobre o aborto com maior frequência. No período analisado por AzMina, as 19 parlamentares que abordaram o assunto fizeram 24,5% dos discursos contrários ao procedimento.
A deputada Bia Kicis (PSL-DF) tem uma pauta difusa em seu mandato, mas com destaque para a proibição do aborto, abordagem que costuma incluir em discursos conservadores. “Isso é uma vergonha! Querem falar de genocídio? Isto é genocídio: bebês assassinados no ventre de suas mães. Isso é genocídio!”, disse a parlamentar na tribuna, ao criticar a descriminalização do aborto até 24 semanas na Colômbia. Vale lembrar que genocídio é o “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso”. Não faz sentido comparar o exercício dos direitos reprodutivos das mulheres à destruição de grupos de pessoas já nascidas.