Somente em 2023, foram registrados 354 casos de estupro contra LGBTQIA+ no Brasil
“Para pessoas que passaram por experiências de estupro corretivo, a luta pelo direito ao aborto não é apenas uma questão de escolha, mas uma questão de sobrevivência e dignidade”, defende o escritor Jordhan Lessa, 57.
Aos 16 anos, ele foi vítima de um estupro corretivo que deu origem a uma gravidez indesejada. À época da violência, Lessa ainda se identificava como mulher cisgênero e lésbica. Sua transição de gênero aconteceu mais tarde, aos 48 anos. Hoje, ele se autodeclara homem transgênero.
Quando olha para trás, o escritor percebe o quanto sua vida foi marcada pelo trauma de ter sido violado na adolescência. “Como ter uma vida plena, ser feliz e ter as mesmas condições psicológicas para encarar o dia a dia com toda essa bagagem de dor?”, questiona.
Ele conta que nutre um profundo complexo de inferioridade e tem dificuldade de manter uma vida sexual satisfatória, pois reage à dor bloqueando o desejo.
“Perdi o medo de falar sobre o que aconteceu comigo, porque falar sobre, ao contrário do que muitos pensam, ajuda a dissipar a dor e as lembranças ruins ao mesmo tempo que serve de alerta e encorajamento para que outras pessoas falem, denunciem ou saibam que não estão sozinhas”, fala.
De fato, Lessa não está sozinho. Somente em 2023, de acordo com dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 354 registros de pessoas LGBTQIA+ estupradas em todo o Brasil.
O número de vítimas registrado pelo Anuário só aumenta. Em 2019, foram 73 casos contabilizados; em 2020, foram 95; em 2021, 199; em 2022, 252 casos. O Fórum Brasileiro de Segurança Público, responsável pela pesquisa feita com base em dados estaduais, aponta que, embora o aumento, ainda há subnotificação.
Estupro corretivo e direito ao aborto
O termo “estupro corretivo” é usado para descrever a violência sexual cujo objetivo é forçar uma mudança na orientação sexual ou identidade de gênero da vítima. Paula Damasceno, mestra em Saúde Coletiva e pesquisadora do estupro corretivo, explica que “a violência corretiva é marcada pela motivação de punir e controlar pessoas que não se conformam com as normas cisheteronormativas”.
Esse tipo de violência ganhou visibilidade a partir de denúncias oriundas da África do Sul, no início dos anos 2000. No Brasil, o estupro corretivo é tipificado desde 2018 como um crime contra a dignidade sexual, com aumento de pena previsto na Lei nº 13.718.
Em uma pesquisa conduzida pelo Lesbocenso em 2021, aproximadamente 17% das mulheres lésbicas e bissexuais entrevistadas relataram ter sido vítimas de estupro corretivo. Além delas, homens trans, pessoas transmasculinas e não-binárias também são alvos desse tipo de violência. Os agressores geralmente são conhecidos das vítimas, muitas vezes pertencendo ao círculo familiar ou social próximo.
Atualmente existem três permissivos legais para o aborto no Brasil: risco de vida para a pessoa gestante, anencefalia fetal e gravidez resultante de violência sexual.
Considerando que o estupro corretivo pode resultar em gravidez indesejada, é fundamental que as vítimas recebam, nos serviços de saúde, um atendimento humanizado e pleno acesso às orientações pertinentes ao aborto legal e seguro. Porém, não é assim que as coisas funcionam na prática.
“A realidade é que muitas vítimas enfrentam barreiras significativas, incluindo a recusa de atendimento, exigências como boletins de ocorrência e/ou discriminação”, afirma Laura Molinari, uma das coordenadoras da Campanha Nem Presa Nem Morta.
A ativista explica que não há necessidade de autorização judicial para o aborto em casos de estupro, tampouco é preciso apresentar boletim de ocorrência ao hospital. Sua recomendação para quem se depara com esse tipo de barreira é procurar a Defensoria Pública, que costuma ser aliada na garantia de acesso à interrupção legal da gravidez.